18 novembro 2011

luis vaz de camões / esparsa





     Os bons vi sempre passar
no mundo graves tormentos;
e, para mais m´espantar,
os maus vi sempre nadar
em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
o bem tão mal ordenado,
fui mau, mas fui castigado:
Assi que, só para mim
anda o mundo concertado.




luís vaz de camões
poesia lírica


17 novembro 2011

mário cesariny / ortofrenia






Aclamações
dentro do edifício inexpugnável
aclamações
por já termos chapéu para a solidão
aclamações
por sabermos estar vivos na geleira
aclamações
por ardermos mansinho junto ao mar
aclamações
porque cessou enfim o ruído da noite a secreta alegria por escadas
               de caracol
aclamações
porque uma coisa é certa: ninguém nos ouve
aclamações
porque outra é indubitável: não se ouve ninguém





mário cesariny
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998




16 novembro 2011

ibn 'ammâr /a al-mutamid





  fitei intensamente a lua:
  era o teu rosto
  na noite do desespero.
  de ti tive abundância
  em tempo de penúria.
  pude viver em graça
  no abrigo que me davas.

  ai, a saudade dessa estima antiga!
  doce era ser sob a tua sombra:
  errava no verde prado
  perto da fonte de água fresca!





  ibn 'ammâr
  1031-1084
   o meu coração é árabe - a poesia luso-árabe
   tradução de adalberto alves
   assírio & alvim
   1999





15 novembro 2011

gil t. sousa / eis o lugar



41

 
eis o lugar
da secura súbita dos rios

o deserto estridente
das horas

onde a palavra
se apaga

e os lábios
talham

o novíssimo nome
da morte

eis o tempo
que se esconde
no tempo

a paisagem falsa
da noite
iluminada

o rosto assassino
a mão que esmaga
a luz

no frágil ofício
da doçura

eis o amor
o secreto sangue

no incêndio
dos espelhos

a cinza solta
sobre a ilusão

dos pássaros




gil t. sousa
falso lugar
2004



14 novembro 2011

luis buñuel / polisoir milagroso




No inverno os gritos dos semáforos caem ao mar
crivados de vento e de crucificação
Numa gota do meu sangue pode afundar-se um
        barco
do meu sangue caindo sobre o peito
de uma marquesa Luís XV de espuma

Esta paisagem gela menos ao espelho
do que sobre as unhas dos mortos
que hão-de ressuscitar com os dedos em flor
flor de agonia extinta e de salvação

Dividida como um vale de Josafat
espera-a a risca do meu cabelo
enquanto Cristo condena
a virgem Maria com um penteador branco
dará um naco de pão aos condenados
e porá um pássaro de carícias
na testa dos que se salvarem





luis buñuel
poemas
trad. de mário cesariny
arcadia
1977


13 novembro 2011

ezra pound / despedida de um amigo




Serras azuis a norte das muralhas,
Um rio branco a serpentear por elas;
Aqui nos devemos separar
E seguir por mil milhas de erva morta,

A mente como ampla nuvem flutuante,
O pôr do sol como o adeus de velhos conhecidos
Que à distância se curvam de mãos postas.
Os nossos cavalos relincham um para o outro
                  quando nos afastamos.


Rihaku






ezra pound
cathay
tradução gualter cunha
relógio d´água
1995



11 novembro 2011

philip larkin / janelas altas





Quando vejo um casal de miúdos
E percebo que ele a anda a foder e ela
Usa um diafragma ou toma a pílula
Sei que isto é o paraíso

Com que os velhos sonharam toda a vida —
Compromissos e gestos postos de lado
Que nem debulhadora fora de moda,
E toda a gente nova a descer pelo escorrega,

Interminavelmente, para a felicidade. Será
Que alguém olhou para mim, há quarenta anos,
E pensou: Isso é que vai ser boa vida;
Nada de Deus, ou de suores nocturnos,

Ou medo do inferno, ou ter de esconder
Do padre aquilo em que se pensa. Ele
E a malta dele, c’um raio, hão-de ir todos pelo escorrega
Abaixo, livres que nem pássaros? E de imediato,

Em vez de palavras, vêm-me à ideia janelas altas:
O vidro que acolhe o sol, e mais além
O ar azul e profundo, que não revela
Nada e está em lado nenhum e não tem fim.





philip larkin
janelas altas
trad. rui carvalho homem
cotovia
2004




10 novembro 2011

rené char / o barulho do fósforo




Fui educado entre as fogueiras, junto a brasas que não acabavam em cinzas. Nas minhas costas o horizonte móvel de uma janela cor de açafrão reconciliava a penugem castanha dos canaviais com o plácido pântano. O Inverno favorecia a minha sorte. As achas caíam sobre esta frágil ordem mantida em suspenso pela aliança do absurdo com o amor. Ora me sopravam na cara o abrasamento ora uma fumarada acre. O herói doente sorria-me deitado na cama quando não fechava os olhos para sofrer. Perto dele terei aprendido a ficar em silêncio? A não impedir o caminho do calor cinzento? A confiar a lenha do meu coração à chama que o conduziria até às centelhas ignoradas dos enclaves do futuro? As datas apagaram-se e não conheço as convulsões do compromisso.




rené char
sete apanhados pelo inverno
contos da balandrane
este fanático das nuvens
trad. y. k. centeno
livros cotovia
1995



09 novembro 2011

alexandre o´neill /pela voz contrafeita da poesia





Dá-nos os passos os teus passos
de manhã triunfal de cidade à solta
os gestos que devemos ter
quando a alegria descobrir os dedos
em que possa viver toda a vertigem
que trouxer da noite
os primeiros dedos do sonho
do teu sonho nosso sonho mantido
mesmo no mais íntimo abandono
mesmo contra as portas que sobre nós:
em silêncio e noite
em venenosa ternura
em murmúrio e reza
se fecharam já
mesmo contra os dias vorazes
que por todos os lados nos assaltam
e consomem
mesmo contra o descanso eterno
a viagem fácil
com que nos ameaçam vigiando
todo o percurso do nosso sono
interminável sono coração emparedado
no muro cruel da vida
desta que vivemos que morremos
assim esperando
assim sonhando
sonhando mesmo quando o sonho
ignorado recua até ao mais íntimo de cada um de nós
e é o gemido sem boca
a precária luz que nem aos olhos chega

Não digas o teu nome: ele é Esperança
vai até aos que sofrem sozinhos
à margem dos dias
e é a palavra que não escrevem
sobre as quatro paredes do tempo
o admirável silêncio que os defende
ou o sorriso o gesto a lágrima
que deixam nas mãos fiéis

Não digas o teu nome: quem o não sabe
quem não sabe o teu nome de fogo
quem o não viu entrar na sua noite
de pobre animal doente
e tomar conta dela
mesmo só pelo espaço de um sonho

O teu nome
até os objectos o sabem
quando nos pedem um uso diferente
os objectos tão gastos tão cansados
da circulação absurda a que os obrigam

As coisas também gritam por ti

E as cidades as cidades que morreram
na mesma curva exemplar do tempo
estão hoje em ti são hoje o teu nome
levantam-se contigo na vertigem
das ruas no tumulto das praças
na espera guerrilheira em que perfilas
o teu próprio sono


                           *


Ah
onde estão os relógios que nos davam
o tempo generoso
os dedos virtuosos os pezinhos
musicais do tempo
as salas onde o luxo abria as asas
e voava de cadeira em cadeira
de sorriso em sorriso
até cair exausto mas feliz
na almofada muito azul do sono

Onde está o amor a sublime
rosa que os amantes desfolhavam
tão alheios a tudo raptados
pela mão aristocrática do tempo
o amor feito nos braços no regaço
de um tempo fácil
perdulário
vosso

Hoje não é fácil o tempo
já não é vosso o tempo
viajantes do sonho que divide
doces irmãos da rosa
colunas do templo do Imóvel
prudentes amigos da vertigem
deliciados poetas duma angústia
sem vísceras reais
já não é vosso o tempo.

Noivas do invisível
não é vosso o tempo
Relógios do eterno
não é vosso o tempo


                          *


Impossível

Impossível cantar-te
como cantei o amor adolescente
colorindo de ingenuidade
paisagens e figuras reduzindo-o
à mesma atmosfera rarefeita
do sonho sem percurso no real
Impossível tomar o íngreme caminho
da aventura mental
ou imaginar-te pelo fio estéril
da solitária imaginação

Tão-pouco desenhar-te como estrela
neste céu infame
dizer-te em linguagem de jornal
ou levar-te à emoção dos outros
pela voz contrafeita da poesia

Impossível

Impossível não tentar dizer-te
com as poucas palavras que nos ficam
da usura dos dias
do grotesco discurso que escutamos
proferimos
transidos de sonho no ramal do tempo
onde estamos como ervas
pedrinhas
coisas perfeitamente inúteis
pequenas conversas de ferrugem de musgo
queixas
questiúnculas
arrotos comoventes


                            *


Mas de repente voltas
numa dor de esperança sem razão de ser

Da sua indiferença
agressivamente as coisas saem
Sentimo-nos cercados
ameaçados pelas coisas
e agora lamentamos o tempo perdido
a dispô-Ias a nosso favor

Porque é tempo de romper com tudo isto
é tempo de unir no mesmo gesto
o real e o sonho
é tempo de libertar as imagens as palavra!
das minas do sonho a que descemos
mineiros sonâmbulos da imaginação

É tempo de acordar nas trevas do real
na desolada promessa
do dia verdadeiro


                               *


Nesta luz quase louca
que se prende aos telhados
às árvores aos cabelos das mulheres
aos olhos mais sombrios
falamos de ti do teu alto exemplo
e é com intimidade que o fazemos
falamos de ti como se fosses
a árvore mais luminosa
ou a mulher mais bela mais humana
que passasse por nós com os olhos da vertigem
arrastando toda a luz consigo



alexandre o´neill
poesias completas
assírio & alvim
2000


08 novembro 2011

georg trakl / melancolia




Sombras azuladas. Oh, olhos de mágoas
Que me olham longamente ao deslizar.
Guitarras nos jardins, a acompanhar
O Outono e a dissolver-se em escuras águas.
Duras trevas da morte, construídas
Por mãos nínficas, rubros seios sugados
Por lábios podres, e os cabelos molhados
Do jovem nas águas enegrecidas.




georg trakl
a alma e o caos
100 poemas expressionistas
trad. joão barrento
relógio d´água
2001



07 novembro 2011

mário henrique leiria / triângulo kabalístico





Eu sei que as túlipas
são os olhos de todos os aviões perdidos

Eu sei que as cidades
são os esqueletos das aves de rapina

Eu sei que os candeeiros ardendo de noite
são os pulmões dos peixes-voadores

Eu sei que o mistério
é uma dentadura abandonada

Eu sei que a loucura
é um braço solitário sorrindo eternamente

Eu sei que os meus olhos
são as tuas pernas frementes

Eu sei que os teus cabelos
são o meu acendedor de pirilampos

Eu sei que a tua boca
é o meu uivo solar

Eu sei que o teu peito e o teu sexo
são a minha água profundamente azul
onde se encontram todos os fantasmas
já perdidos há séculos.







mário-henrique leiria
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998




05 novembro 2011

ruy belo / a primeira palavra



Acompanhando a recente curvatura da terra
o primeiro olhar descreveu a sua órbita
sobre as oliveiras. Só mais tarde
a pomba roubaria o ramo
e iria de árvore em árvore propagar a primavera.
Foi então que os olhos se cruzaram
e estava dita a primeira palavra
a superfície do tempo.




ruy belo
dedicatória
todos os poemas I

assírio & alvim
2004



04 novembro 2011

luís muñoz / termómetro




Por então mediam-na as noites de estio,
a queda de luzes nas bocas do mar.
A minha resistência à tristeza, digo,
a pequena estrutura de uma emoção recente,
de um encontro intrépido,
de umas poucas palavras embebidas em doce,
do esvoaçar oculto numa carta,
de um sopro que torna alegres os dragões do tempo.

Outras vezes, porém, não existia nada,
ou o que existia tornava-me fraco.





luís muñoz
trípticos espanhóis vol. III
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2004