29 julho 2011

maria gabriela llansol / XCII. beirais

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__________ se estiveres ausente ( automóvel, comboio, avião, mudança de estação ou de cidade ), compra um papel simples que te comunique e envia-mo pelos meios mais eficazes ao teu alcance, e que te revelem como comprimido a desfazer-se debaixo da língua.





maria gabriela llansol
amigo e amiga
curso de silêncio de 2004
assírio & Alvim
2006
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28 julho 2011

paulo da costa domingos / averbamento

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Este real foi reaquecido, já
não anda nem desanda.
A igualdade não fez de nós
indivíduos: transformou-nos
 
numa frota. Estacionada. Somos
a prostituída decepção da mecânica
e, como borra do café,
adubamos estranhos requisitos.
 
 
 
 
 
paulo da costa domingos
averbamento
& etc
2011
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27 julho 2011

pedro tamen / madame butterfly, velha

 
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Engano: não, não me matei,
suguei
a vida que outros deram.
 
Gueixa nasci e aqui estou de gueixa,
borboleta que fui, borboleta que sou,
mosca, ah, sim, mosca,
mas de manteiga.
 
E envelheço porque não morri.
Envelheço? Não pode envelhecer
quem sempre foi assim.
Dizem-me velha? Olhem-me as pinturas:
todos os dias chegam barcos,
barcos, marinheiros,
todos os dias chegam.
 
 
 


 
pedro tamen
relâmpago nº. 13 10-2003
revista de poesia
fundação luís miguel nava
2003
 
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26 julho 2011

antónio osório / o regresso

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Regressado da morte
procurava o calor das fogueiras
o cheiro lêvedo do pão,
o passo dos cegos na rua,
o ninho ancorado à varanda
com o seu frágil, suspenso
voo de barro, as grandes rugas
das casas que envelhecem.
 
Oh a alegria
de tocar na própria carne,
no rosto que vira inquietantemente crescer.
 
Nem que fosse um instante,
seguia o rasto ido do futuro
e sonhava ser aquilo que não fui:
o Inca clandestino, a coberta das árvores
depois das últimas chuvas de Outono,
antiquário de raízes, fósseis, destruições,
o cúmplice dos que se amam, ou nuvem
que de outras nuvens se aproxima,
rio que noutros rios deita a sua água,
pai exangue ou filho de tudo quanto existe.
 
 




antónio osório
casa das sementes
a raiz afectuosa
assírio & alvim
2006
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25 julho 2011

manuel antónio pina / já não é possível

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Já tudo é tudo. A perfeição dos
deuses digere o próprio estômago.
O rio da morte corre para a nascente.
O que é feito das palavras senão as palavras?
 
O que é feito de nós senão
as palavras que nos fazem
Todas as coisas são perfeitas de
Nós até ao infinito, somos pois divinos.
 
Já não é possível dizer mais nada
mas também não é possível ficar calado.
Eis o verdadeiro rosto do poema.
Assim seja feito a mais e a menos.
 
 
 



manuel antónio pina
ainda não é o fim
nem o princípio do mundo
calma
é apenas um pouco tarde
erva daninha
1982
 
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24 julho 2011

gil t. sousa / cigarro

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no dia
em que as luzes se apagaram
tinha um cigarro
na mão
 
um amigo
 
que me disse tudo
até à cinza
 
 
 

gil t. sousa
falso lugar
2004
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23 julho 2011

tereza balté / os mitos

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Aquém das montanhas onde jamais subiste
à margem dos abismos que nunca suspeitaste
presa dos teus limites sob a tensão da tarde
 
eis a ilha em sua moldura
tangendo o seu início
labirinto de fauna e flora
refúgio do idílio
 
e eu não te procuro  porque te desconheço
apenas vagamente me surpreendo e temo
a erosão do tempo os lábios do finito.
 
 
 



tereza balté
horizontes portáteis
editorial inova
1977
 

(desenho de jorge pinheiro)
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22 julho 2011

pia tafdrup / a pele

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A pele é o meu único limite
atravessa-a
onde a luz é mais forte
não feches lá fora o mundo
nem a mim cá dentro

mostra-me
que o sol no céu
é o sonho em mim própria
a realidade ardente
quando me mordes
e me fazes sentir
que não há diferença
entre lado de fora e lado de dentro
entre dor e carícia
pedra e palavra
 
porosa às tuas investidas
sou aquela que
se abre em desejo
de existir no mundo
em todo o lado e ao mesmo tempo
 
dá-me o que tens
de tudo
não exijo mais nada.
 





pia tafdrup
ponto de focagem do oceano
trad. colectiva
mateus, junho 2002
quetzal
2004
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21 julho 2011

manuel gusmão / cenas

 
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3

ao cimo do jardim no topo
de todas as hastes do jardim é
como se explodisse uma praia.
ou como se rodando sobre si mesmo
e subindo, em cima, o jardim
expirasse uma praia que se abre.
e então na mínima ondulação
dessa praia, no alto da explosão,
é um jardim terrestre que vai
começar
a aparecer. que recomeça.




manuel gusmão
dois sóis, a rosa
a arquitectura do mundo
caminho
1990
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20 julho 2011

francisco sardo / novembro I

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demasiado o sol   esta estiagem
pungente como voz que se desprende
do que sobra à coragem de o dizer

cálida luz a sagra   sacrilégio
no latente fulgor das dálias tardias
crisântemos que vibram como ecos

esta paz que alta impregna o sortilégio
cintilante na síntese que poupa
a proa desta nau   (ou deste não)
 
desta ideia sobre as dobras da memória
de mortes muitas   lúcidas   sem luto
das lutas que cruzaram seu deserto
 





francisco sardo
as rugas do calcário
edição do autor
1983
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19 julho 2011

daniel faria / as mulheres aspiram a casa para dentro dos pulmões

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As mulheres aspiram a casa para dentro dos pulmões
E muitas transformam-se em árvores cheias de ninhos - digo,
As mulheres - ainda que as casas apresentem os telhados inclinados
Ao peso dos pássaros que se abrigam.

É à janela dos filhos que as mulheres respiram
Sentadas nos degraus olhando para eles e muitas
Transformam-se em escadas
 
Muitas mulheres transformam-se em paisagens
Em árvores cheias de crianças trepando que se penduram
Nos ramos - no pescoço das mães - ainda que as árvores irradiem
Cheias de rebentos

As mulheres aspiram para dentro
E geram continuamente. Transformam-se em pomares.
Elas arrumam a casa
Elas põem a mesa
Ao redor do coração.
 




daniel faria
homens que são como lugares mal situados
fundação manuel leão
1998
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18 julho 2011

gilles lipovetsky / a era do vazio: ensaio sobre o individualismo contemporâneo

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“Anunciou-se precipitadamente o fim da sociedade de consumo quando é claro que o processo de personalização não para de lhe alargar as fronteiras. A recessão presente, a crise energética, a consciência ecológica não são o toque de finados da sociedade de consumo: estamos destinados a consumir, ainda que de outro modo, cada vez mais objectos e informações, desportos e viagens, formação e relações, música e cuidados médicos. É isso a sociedade pós-moderna: não o para além do consumo, mas sua apoteose, a sua extensão à esfera privada, à imagem e ao devir do ego chamado a conhecer a obsolescência acelerada, da mobilidade, da desestabilização. Consumo da sua própria existência através dos media desmultiplicados, dos tempos livres, das técnicas relacionais, o processo de personalização gera o vazio em technicolor, a flutuação existencial na e pela abundância de modelos, mesmo que condimentados de convivialidade, de ecologismo, de psicologismo. Estamos na segunda fase da sociedade de consumo, cool e já não hot, consumo que digeriu a crítica da opulência.”


 

gilles lipovetsky
a era do vazio: ensaio sobre o individualismo contemporâneo
trad. miguel serras pereira, ana luísa faria
relógio d´água
1988
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13 julho 2011

hélène monette / cálculo integral

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Quantas noites há neste planeta?
quanta paz na escuridão
de luz na sabedoria?
Quantos mortos até à morte?
Quanto?

Quantos passos traçaram
com os vossos pés, com as vossas mãos
quantas notas ligaram
quantas vozes enlaçaram
neste deserto sem fim?

Quanto amor há no vosso amor

vós que traçais na areia
os esquemas dos vossos conhecimentos
os teoremas do esplendor
a fórmula infalível da existência?

Quantas noites há na vossa vida?
Quantos oceanos no vosso corpo?
Quantas ilhas moram
no arquipélago atlântido da vossa alma?
Quantas velas nos vossos olhos
e o fogo
onde o puseram?
No léxico das vagas?
Na gramática do céu
hoje tão enevoado?

Quantos rodeios e convenções
quantas indecisões fratricidas
por princípio, em teoria
quantas vozes entorpecidas
no capítulo do coração?

Quanto amor no silêncio impossível deste planeta?

Que fizeram de tudo isso
por entre as ditaduras físicas
zombarias animais
extravios de suburbanos
entre os intelectos arrefecidos
e as comédias fraternais?
Que fizeram do vosso amor?
Que fizeram das vossa vida?
que disseram?

Quantos ramos de flores esmagados nas vossas mãos?
Quantas paixões alucinadas
quantas horas de gabarolice
por cada aventura inverosímil?
Quantas notas há no vosso amor?
Quantos objectivos?
Quantos talismãs  nos vossos preconceitos?
Quantas fogueiras?

Quanto rigor antropológico
quanta sinceridade
nesse desespero estruturado bem no mais fundo da cabeça
Quantas miragens exactas
nesta alegria empolada?
Quantas respirações controladas
no exercício da mentira
que nunca basta, nunca?

Quanto amor há no vosso amor?
Quantos dias na vossa vida?
Quantas mulheres e quantos homens
no vosso exército?
E que fardo os obrigam a transportar?

Quantas notas ligaram
quantas vozes enlaçaram
neste deserto sem fim?

E afinal, porquê?
  
 

 

hélène monette
poemas                                      
tradução de rosa alice branco
(encontros de talábriga)


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