12 julho 2010
gil t. sousa / do teu nome
21/
sobra de todo o silêncio
o raro acorde
do teu nome
a que solidão altíssima
me entregas
quando te deixas morrer assim
no abraço faminto
do tempo?
gil t. sousa
falso lugar
2004
10 julho 2010
r. lino / palavras do imperador hadriano no princípio do sono
há um pouco de vento fustigando a tarde
- mas não mais que um pouco –
e o meu corpo exposto às dunas
cai como ao princípio da noite.
hoje e ontem
escorrem-me pelos olhos
enquanto estendo as mãos
e por elas inscrevo o gosto do tacto pela areia.
disseram-me que o homem
estava escrito no homem
e o tempo dele: linhas cruzadas
ou ilhas ou maior profundidade,
nunca pude ler as tuas mãos
e das linhas apenas percebi
como pelos gestos tu me afirmavas
ou negando
me reafirmavas: dunas pelo vento
e de novo partíamos.
não posso, no entanto, pedir contas
à tua ausência. no simulacro
da coragem, quantas vezes
teremos dito o que negávamos
e a tua boca
mais perto da minha
teria, apesar
a certeza de que ninguém perde ninguém
e que os negócios do estado
apenas confirmam
entre as misérias de uns
e os ousados roubos de outros
como passa sobre essa certeza
o tempo
ao correr das sociedades
e dos impérios
no princípio desta noite.
r. lino
palavras do imperador hadriano
1984
sião
organização e notas de
al berto, paulo da costa domingos e rui baião
lisboa
1987
08 julho 2010
jorge reis-sá / danny boy
Vou finalmente fechar o postigo, expirar a entrada mais feliz
do meu coração. É altura, José, de deixar as flores secarem,
o poço ganhar a escuridão que vem ameaçando há anos.
Soltarei de vez os canários e os pardais que prendi
naquela gaiola, junto ao coberto. Da mesma forma
que o farei contigo – segue o teu caminho e deixa que
este pobre velho que a vida baralhou encerre os seus pulmões
e procure noutra casa entradas maiores para o maior coração.
jorge reis-sá
vou para casa
quasi
2008
06 julho 2010
rui lage / les baigneuses
...........................para o Agostinho Santos
nas margens do rio depois de jantar
um vulto equipado de isqueiro
e tabaco de enrolar
passa a pente fino cabelos
que as casas deitam nas águas
com fachadas anoitecidas
e postigos iluminados,
quais do banho saídas
ou das telas de Degas
níveas mulheres de robe
e turbante a fumegar.
rui lage
corvo
quasi
2008
05 julho 2010
jean daive / éden
Uma mulher a medir.
Uma mulher de braços estendidos
transfere comprimentos ou
proporções.
Ela calcula
o sono desse homem que nunca
mais dormirá.
É preciso que se saiba
que tudo começa
pela ampliação
fotográfica
de uma vírgula.
*
Isso
tece um som,
Um afrouxar
repentino,
esse líquido ladeando uma luz
para uma fotografia
em que o cinzento predomina,
Aquilo que vês é composto
de um homem e uma mulher
justamente.
Cadeirão. Sentado a um canto.
Estás sozinho na sala, Fumas
talvez, de queixo nos joelhos.
Entras
outra vez só
num
som da rua.
Vês sombras azuis
correndo
e no visor
a carne de comer.
*
Palavras penduradas
em que o cinzento predomina.
A gasolina pintada a cor-de-rosa
em redor de uma casa
aflui.
O jardim arde.
Uma pedra cai
e tu não és mais pesado.
Perfila-se um fim
como depois da história de uma paixão.
Mas evita-se um sentido cinético do mundo.
E a necessidade reencontrada
do isolamento.
Também
o teu cadeirão
se não articula
com o que o autor quer dizer?
Sorris. Apreendes uma separação.
*
Como é que se antecipa
o gaguejar,
um sistema de coordenadas?
O mundo de um filme
de longuíssima duração
não te subtrai.
Porque
este não é o mundo
que entra nos teus olhos.
É o fim do dia. É o fim das legendas.
A escuridão não tem pó
como a mulher.
Lateralmente
o fumo ondula
semelhante
a uma pulsação.
Mais tarde.
Um cansaço no quarto e na
cama o tempo é não gerado.
(de Narration d’équilibre 6, 7 8, 9)
jean daive
sud-express
poesia francesa de hoje
tradução pedro tamen
relógio d´água
1993
04 julho 2010
armando silva carvalho / a chave inglesa
Era um corpo inteiramente
português.
Transido de ternura
o óleo das suas mãos
protegia-me
o coração.
Não sei que mecanismo
despertava em si
quando chorava,
fazia crescer a relva,
meus dentes indecisos
como crias
corriam e devoravam.
Escreveu-me duas cartas
em cima de um tractor
e nelas descrevia
em frases simples
o modo tortuoso
que me fez traidor.
armando silva carvalho
as escadas não têm degraus nr. 3
livros cotovia
1990
03 julho 2010
yorgos seferis / a água quente…
A água quente lembra-me todas as manhãs
que não tenho mais nada vivo ao pé de mim.
yorgos seferis
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães
e nikos pratisinis
relógio d´água
1993
30 junho 2010
umberto saba / trabalho
Outrora
a minha vida era fácil. A terra
dava-me flores frutos abundantes
Hoje arroteio um terreno seco e duro.
A enxada
bate em pedras, em tojos. Tenho de cavar
fundo, como quem busca um tesouro.
umberto saba
dez poetas italianos contemporâneos em selecção
trad. albano martins
dom quixote
1992
28 junho 2010
martin earl / vinho
Quanto mais ao sul mais chegados à terra
São as culturas, dobradas como velhos japoneses
Sobre as pernas, um braço esticado, a olhar
Para trás por sobre os ombros, para as figuras
Que os outros fazem, todos assim, ou de joelhos
Pelo arame fora, enquanto vai descendo o sol:
Um Deus verde enlaçado, ao qual a mágoa
Segue a toda a parte, como por sistema –
A sua hora um copo de vinho cheio de tempo,
Onda semeada no sangue, sulco aberto
No cérebro, engenho aguçado demais:
Saem-lhe as ideias, em latim, sem rima.
Mas quando, à altura dos olhos, vejo
Jorrar a luz da janela que o atravessa,
Como se viesse de algures dentro
Do copo, ou dos olhos de quem bebe,
Eis que trespassa o coração, vai direita
Ao medo e leva tudo, eu sei que vou ficar.
martin earl
sonnets from the portuguese
trad. de manuel portela
oficina de poesia
revista da palavra e da imagem
nr. 1 série II
junho 2002
24 junho 2010
gil t. sousa / é como acordar
20/
é como acordar.
mas aquilo que flúi quando acordas,
aquilo que te liga os dias donde vens
aos dias a que queres chegar,
aquela abundância de razão e de consciência
que te dá sentido à vida...
esse movimento está ausente
e sentes-te como um fumo.
qualquer coisa te pode esmagar,
qualquer gesto te pode transportar
a um chão que não existe,
a um caminho
que os teus passos não sabem percorrer.
e as tuas mãos ficam húmidas desse delírio.
e os olhos caem-te aflitos no lugar da doçura ausente.
e ficas sem gritar,
ergues-te sobre esse dia que chega
e tudo é maior do que possas ter para te agarrar.
e deixas-te ir, etéreo como um fumo…
podia ser esse o minuto da loucura.
podia ser esse o momento de abraçar a luz
e estalar docemente numa noite qualquer.
como uma fenda de fogo,
como um punhal de lume
que enfim te rasgasse o mundo.
gil t. sousa
falso lugar
2004
23 junho 2010
joaquim cardoso dias / em pé sobre a visão
em pé sobre a visão submersa dos anjos
nada é tão impossível para que não me dissesses
entre um barco ou outro deves lavar
os teus olhos sempre que voltes a olhar o mar
joaquim cardoso dias
o preço das casas
entrada de emergência
gótica
2002
22 junho 2010
antónio manuel azevedo / que mal podem as palavras
1
Não é sempre primeiro
o amor. E quando o trazemos
nos bolsos distraídos das mãos
é o voo da manhã.
Não é tudo. Imagina
A devastação.
2
uma alegria profunda nos protege
quero dizer obscura, quero dizer
silenciosa. Sim, sabemos tantos modos
de imitar o fim da pouca vida
que sobra sempre a matéria dos desertos
para errar os amores novos. Que mal
podem as palavras saber de ti.
3
É uma voz sem socorro. Sem lugares
para adormecer, sem destino
estreito destino para o que dizer te possa
do que passa mesmo quando não sinto
pisa mesmo quando não respiro
e fecho os olhos para te ver melhor.
Às palavras nada mais trarei.
4
Esta morte não podemos dormir.
De te perder ou de ter perdido
não estou hoje mais seguro.
Na praça as sombras dos homens
São tão pequenas para o meio-dia.
Crescem com a tarde para o fim
confundem-se de noite para repartir
o coração.
5
Desde que o mês é este
Oitavo mês mau para partidas
repito que não mais posso ter
em mim que não seja
tu. Desde que é esta a condição
a do frágil tempo de uma espera
mau para palavras repito
as que procuram saber
mais valeria o repouso
na imagem do amor
a que preserva. Ninguém
vai perguntar o que falta
sempre falta.
6
Da pedra de cada dia formar o rosto
pequeno e com brilho, o perfil sereno
da manhã, o olhar claro à tarde furtando
a cor sobre o longe do mar onde fica
o coração e anoitece.
À medida deste trabalho esperava ou pedia
a magia menor dos versos, a graça de voltar
sobre ser pobre em lembranças de ouro ou rosa
ao lugar em setembro da tua sombra e não achar
razão.
7
Dia seis, de reis
nesta república quase nada passa
o ano sim, o mês, a ocasião
o vento pela praça e por uma sorte estreita
ao abrigo da aragem de janeiro
passa um cão
e um dia assim como outro dia
sem epifania.
8
Da noite se diz
que antiquíssima
igual em tudo é
aos novos navegantes
em tudo propícia
às migrações lentas
do olhar.
9
Antes queriam uma estátua
que lhes dissesse os futuros
da sorte em pequeno mapa achar
certeza. A este fim
observaram os sonhos, seguiram a linha
da melhor mão, o sul das aves.
Cansaram em paciência as ruas
a vontade. De coração nenhum
partiam, dormiam de bruços
pelas horas da luz.
Instante não havia que se pudesse dizer
propício, era pela hora miúda
a pressa das palavras sobre o imóvel mundo
enganos repartindo. O lugar de tudo
ao norte, iam mandá-lo
à memória.
10
Também nós tivemos nas mãos
os cabelos mortos das nossas rainhas.
Os olhos iam para os lados do poente um dia
e outro dia. Víamos a sombra pousar
no ombro descarnado o último dedo
de luz abandonar a resistência da montanha.
Sentada junto às águas do teu rio
não viste nada, a escutar a chuva
da minha noite não posso ver-te.
Posso mostrar-te as memórias
que aprendi, a minha ilha de Circe.
antónio manuel azevedo
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990
20 junho 2010
josé saramago / tem o relógio horas tão vazias

Tem o relógio horas tão vazias que, breves mesmo, como de todas é costume dizermos, excepto aquelas a que estão destinados os episódios de significação extensa, (…), são tão vazias, essas, que os ponteiros parece que infinitamente se arrastam, não passa a manhã, não se vai embora a tarde, a noite não acaba.
josé saramago
o ano da morte de ricardo reis
Subscrever:
Mensagens (Atom)