15 abril 2010
josé ángel cilleruelo / pintura
Como um ir dando cor às coisas,
Assim deveria ter acontecido, como pintar
Uma fotografia a preto e branco,
Retocando com um pincel muito fino,
Imperceptível, todos os objectos
Com inúmeras camadas de anilina,
Cada uma mais leve que a anterior.
Assim, é certo, deveria ter acontecido.
Mas senti-o como um despejar
Com baldes a cor sobre aquela tela
Citrina que era a minha vida de então.
E de agora, ia já escrever,
Mas não seria exacto, ainda que não esteja,
Comigo fica amanhecido o mundo.
josé ángel cilleruelo
trípticos espanhóis 2º
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000
12 abril 2010
mário cesariny / pastelaria
Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura
Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio
Afinal o que importa não é ser novo e galante
- ele há tanta maneira de compor uma estante!
Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao
precipício
e cair verticalmente no vício
Não é verdade rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola
Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come
Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!
Que afinal o que importa é por ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria e, lá fora - ah, lá fora! - rir de tudo
No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra.
mário cesariny
nobilíssima visão
assírio & alvim
1991
09 abril 2010
joão almeida / em tempo de miséria
desço por um jardim transparente
entre lodo e hortelã
andam assistentes sociais pelo bosque
à procura de pobres
agitam contas e berlindes
acaba aqui a rédea solta, há que escolher as armas
troco à sombra do derradeiro cipreste
dois versos e um dedo
por uma noite de sono e um detonador
joão almeida
resumo
a poesia em 2009
assírio & alvim
2010
07 abril 2010
gil t. sousa / na asa negra
16/
na asa negra
do pássaro da noite
todos os meus rios
recitam o seu correr
gil t. sousa
falso lugar
2004
05 abril 2010
luís muñoz / somente
Somente alguns objectos da tua casa
dividem entre si o sal da tua memória.
O resto está à espera de alimento
ou de servir para alguma coisa.
Ora uns ora outros de ti exigem
o veneno que irrompe nas viagens.
luís muñoz
trípticos espanhóis vol. III
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2004
01 abril 2010
carlos saraiva pinto / as coisas complexas
as coisas complexas
são inimigas de Deus
torna-me pois simples
como os bois e os cavalos
que no abandono da névoa
das montanhas são almas
que cumprem
dolorosas promessas a santuários
que estão para além do mundo.
carlos saraiva pinto
escrever foi um engano
o correio dos navios
2001
30 março 2010
dionne brand / noutro lugar, não aqui
Noutro lugar, não aqui, uma mulher poderia trocar
algo entre o belo e lugar nenhum, de regresso ali
e aqui, poderia fazer progressos na sua
agitada vida, mas eu tentei imaginar um mar que não
sangrasse, um olhar de rapariga cheio como um verso, uma mulher
a envelhecer e sem chorar nunca ao som de um rádio a sibilar
o homicídio de um rapaz negro. Tentei que a minha garganta
gorjeasse como a de uma ave. Escutei o duro
bisbilhotar de raça que habita esta estrada. Mesmo nisto
tentei murmurar lama e plumas e sentar-me tranquilamente
nesta folhagem de ossos e chuva. Mastiguei algumas
folhas votivas aqui, o seu sabor já a desencantar
as minhas mães. Tentei escrever isto calmamente
mesmo quando as linhas ardem até ao fim. Acabei por aprender
algo simples. Cada frase imaginada ou
sonhada salta como uma pulsação com história e toma
partido. O que eu digo em qualquer língua é dito com perfeito
conhecimento da pele, em embriaguez e pranto,
dito como uma mulher sem fósforos e mecha, não em
palavras e em palavras e em palavras decoradas,
contadas em segredo e sem ser em segredo, e escuta, não
se extingue nem desaparece e é abundante e impiedoso e ama.
dionne brand
pullll lllllll
poesia contemporânea do canadá
trad. john havelda, isabel patim & manuel portela
antígona
2010
29 março 2010
david teles pereira / bem-vindo ao ano zero
Deram-me a riqueza,
mas não me disseram o que fazer com ela.
Iegueni Ievtuchenko
Com a minha idade, o meu pai já era um homem honrado,
o meu avô trabalhava na marinha mercante,
disparava ocasionalmente um ou dois foguetes
em direcção a terra seca, em homenagem ao amor de uma mulher
que conheceu antes da minha avó e que me teria dado
olhos azuis e muito menos problemas.
Aos dezoito anos os meus pais participaram na Revolução.
O meu avô também. Tinha quarenta e cinco.
Depois os meus pais casaram, desculparam-se com o ciclo da vida,
o país parecia estar no bom caminho, a casa ainda não.
Quis ser actor o meu avô, depois de ter passado
cinco dias e quatro noites a traduzir uma peça de Brecht
num quarto da pensão Rosa com vista para o rio Sado.
Então nasceu o meu irmão com os olhos que – toda a gente
confirmava – eram iguaizinhos aos da minha mãe.
Depois nasci eu e depois a minha irmã, com olhos de Varsóvia,
não tão honrados quanto belos.
Eu ainda nasci em Portugal, a minha irmã já não, nasceu na CEE,
que entretanto tinha ensinado a minha mãe e o meu pai a serem
ainda mais perfeccionistas nisso de serem honrados.
O meu avô continuava a traduzir Brecht e desconfiava
da PAC e de tudo aquilo que pudesse ser formulado
apenas em três letras.
Para ele, no mínimo, eram necessárias quatro.
Foderam-me a vida, o meu pai e a minha mãe,
e o pior é que o fizeram para que eu pudesse chegar
aos vinte e três anos e dizer que já sou um homem honrado,
tal como o meu pai tem sido, ao contrário do meu avô,
que prefere Brecht à linear organização comercial
do novíssimo amor português.
E pior ainda é que tenho vinte e três anos
e corro o risco de já ser um homem honrado.
david teles pereira
resumo
a poesia em 2009
assírio & alvim
2010
25 março 2010
robert schindel / venero fausto, é certo
(a partir de Wladimir Wyssotzkij)
Venero Fausto, e admiro Dorian Gray
Mas a minha alma nunca o diabo a terá
Também a despropósito a ciganas dei
A ler o dia da morte nas borras do café.
E tu, demónio, vê lá, não me assinales
A data no teu negro diário!
Se já o fizeste, ah, peço-te que a esqueças
Antes que expire o prazo nesse calendário,
Não quero ficar à espera, a ver lá fora
Corvos palrar com anjos num último festim
Não quero que riam e cochichem agora
Apaga já a data do meu fim,
Minh´ alma afunda-se sob a neve no campo
Em medo e dúvida, imersa no tempo,
… Quero lá saber da imortalidade! Nada
Peço, só quero uma estrada larga e macia
Um amigo e um cavalo para a última jornada.
Humilde, baixarei a cabeça, para que nesse dia
Me deixem ir. Sem lágrimas, sem melancolia.
robert schindel
telhados de vidro nr. 11
tradução de joão barrento
averno
2008
22 março 2010
manuel de castro / poema
para lá da cortina além da porta errada
silencioso e só está sentado
e lê num livro velho
a sua própria história
manuel de castro
edoi lelia doura
antologia das vozes comunicantes
da poesia moderna portuguesa
assírio & alvim
1985
18 março 2010
antonio orihuela / em vista do teu currículo
A condição política da classe operária está ligada à sua
condição económica; e sendo a sua condição económica a
de escravos do capital e dos poderes, a sua condição polí-
tica tem de ser também a de escravos.
Juan Cordobés, 1885
Em vista do teu currículo
decidimos
ficar contigo.
Entrarás por quinze dias renováveis,
e se fores bom, por três meses
prorrogáveis.
Ao princípio constarás na relação como auxiliar administrativo,
embora te devam ter dito que o que se reforma
é o contabilista.
Vamos contratar-te por quatro horas,
mas não te preocupes, trabalharás oito.
Dada a situação da empresa
pagar-te-emos essas à parte.
No total: 62.700 ptas. por mês,
embora os teus colegas, para completar,
façam três horas mais todas as tardes,
e vêm aos sábados meio dia.
Entre umas e outras coisas
passas das cem mil.
Bom, se não estiveres metido em política,
não queremos confusões com os sindicatos
nem trabalhadores conflituosos.
Ouviste o que Aznar disse
que faz falta para levantar este país, não?
Trabalho, Sacrifício e Tolerância.
Belo, não é?
antonio orihuela
poesia espanhola anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000
16 março 2010
marosa di giorgio / os papéis selvagens
8
Vamos pela parede.
A mamã tem asas castanhas sedosas; eu, asas cor de violeta; ao abri-las vêem várias camadas de gaze. Prosseguimos pelo muro; com antenas finíssimas tocando nos galhos, nos ramos, de bálsamo, de salsa e de outras coisas.
Parece que estamos livres dos semelhantes que são como azougue.
A cada minuto, a lua é mais branca e escura.
E resplandece por todo o prado, aqui e ali, a Virgem dos Insectos.
Com asa e diadema e muitíssimos pés.
marosa di giorgio
os papéis selvagens
tradução de rosa alice branco
encontros de talábriga
12 março 2010
marguerite yourcenar / essas mãos
Poderias mergulhar como um só bloco no nada para onde vão os mortos: consolar-me-ia se me legasses as tuas mãos. Apenas as tuas mãos subsistiriam, separadas de ti, inexplicáveis como as dos deuses de mármore que se tornam pó e cal dos seus próprios túmulos. Elas sobreviveriam aos teus actos, aos miseráveis corpos que acariciaram. Entre as coisas e ti, elas já não seriam intermediários: seriam elas próprias, transformadas em coisas. Voltando a ser inocentes, pois tu já lá não estarias para fazer delas tuas cúmplices, tristes como galgos sem dono, desconcertadas como arcanjos a quem já nenhum deus dá ordens, as tuas mãos vãs repousariam sobre os joelhos das trevas. As tuas mãos abertas, incapazes de dar ou de agarrar qualquer alegria, ter-me-iam deixado cair como uma boneca quebrada. Beijo ao nível do pulso essas mãos indiferentes que a tua vontade já não afasta das minhas; acaricio a artéria azul, a coluna de sangue que outrora, incessante como o jacto de uma fonte, surgia do solo do teu coração. Com pequenos soluços satisfeitos, encosto a cabeça como uma criança, entre as palmas cheias de estrelas, de cruzes, de precipícios daquilo que foi o meu destino.
marguerite yourcenar
fogos
trad. maria da graça morais sarmento
difel
1995
marguerite yourcenar
fogos
trad. maria da graça morais sarmento
difel
1995
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