19 agosto 2008

kiki dimoulá / como quem escolhe







É sexta-feira hoje vou à praça do mercado
dar uma volta nos jardins decapitados
a ver o perfume dos orégãos
cativos nos molhos.

Vou ao meidia quando caem as cotações
encontra-se fácil o verde
entre feijões abóboras malvas e lírios.
Ouço ali com que coragem falam as árvores
com a língua cortada dos frutos
oradoras empilhadas as laranjas e as maçãs
e alguma convalescença começa a ganhar cor
nas faces amareladas
de uma mudez interior.

Raramente compro. É que nos dizem escolhe.
Isso é facilidade ou problema? Escolhemos e depois
como levantar o peso insustentável
que tem a nossa escolha?
Ao passo que aquele aconteceu, que pluma! No princípio.
É que depois as consequências põem-nos de rastos.
Também insustentáveis. No fundo é como quem escolhe.

Quando muito compro um pouco de terra. Não para flores.
Para me ir habituando.
Nisto não há escolha. Nisto, é de olhos fechados.






kiki dimoulá
grécia (n. 1931)
trad . de manuel resende






15 agosto 2008

henri michaux / ideogramas na china


(…)

De uma certa maneira semelhante à água, ao que ela tem de mais forte e de mais leve, de menos perceptível, como o são as rugas da sua ondulação, que sempre foram um tema de estudo na China.

Imagem do desprendimento: a água que não se apega a nada, sempre pronta a instantaneamente voltar a partir, água que, mesmo antes da chegada do budismo, falava ao coração do chinês. Água, vazia de forma.






Yi Tin, Yi Yiang, tche wei Tao
Um tempo Yin, um tempo Yang
Eis a via, eis o Tao.







Via para a escrita.


Ser calígrafo, como se é paisagista. Melhor. Na China, é o calígrafo que é o sal da terra.

(…)







henri michaux
ideogramas na china
trad. ernesto sampaio
cotovia / fundação oriente
1999


07 agosto 2008

marguerite yourcenar / safo ou o suicídio






(…)

desce a correr
as ruas cheias de despojos e de lixo
que conduzem até ao mar,
mergulha na vaga dos corpos.

sabe que nenhum encontro
lhe trará salvação,
pois não poderá,
para onde quer que vá,
voltar senão a encontrar Átis.
aquele rosto desmesurado
tapa-lhe todas as saídas
que não dão para a morte.

a noite cai
semelhante a uma fadiga
que lhe baralhasse a memória;
um pouco de sangue
persiste do lado do poente.

repentinamente
ressoam tímbalos, como se a febre
os fizesse chocar
dentro do seu coração:
contra sua vontade,
um longo hábito levou-a de volta ao circo,
à hora onde todas as noites ela luta
contra o anjo da vertigem.

uma última vez
enche-se daquele cheiro de animal selvagem
que foi o da sua vida,
daquela música enorme e desafinada
como é a do amor.
(…)








marguerite yourcenar
fogos
trad. maria da graça morais sarmento
difel
1995





05 agosto 2008

valter hugo mãe / recipiente para guardar o mar






nunca sabotei a vontade de
deus, e vejo ainda
o inferno, um qualquer
poema mais difícil de coleccionar






valter hugo mãe
três minutos antes da maré encher
quasi
2000





03 agosto 2008

arsenii tarkovskii / 8 ícones






Íamos, sem saber para onde,
Perseguidos por miragens de cidades
Derrotadas construídas no milagre,
Hortelã pimenta aos nossos pés,
As aves acompanhando-nos o voo,
E no rio os peixes à procura da nascente;
O céu, a nós se abrindo.







arsenii tarkovskii
8 ìconesversão de paulo da costa domingos
assírio & alvim
1987


30 julho 2008

sophia de mello breyner andresen / no tempo dividido






Pelas tuas mãos medi o mundo
E na balança pura dos teus ombros

Pesei o ouro do Sol
E a palidez da Lua.






sophia de mello b. andresen
no tempo dividido
caminho
2003








29 julho 2008

rené char / partilha formal




XL

Atravessar com o poema a pastoral dos desertos, o sacrifício às fúrias, o fogo bolorento das lágrimas. Correr atrás dele, implorar-lhe, injuriá-lo. Identificá-lo como sendo a expressão do nosso génio ou ainda o ovário esmagado da nossa penúria. Por uma noite irromper atrás dele, finalmente, nas núpcias da romã cósmica.






rené char
furor e mistério
trad. margarida vale de gato
relógio de água
2000




28 julho 2008

jean cocteau / o anjo heurtebise






VIII


Com pés de animal azul celeste,
Chegou o anjo Heurtebise. Estou só
Todo nu sem Eva, sem bigode
Sem mapa.
As abelhas de Salomão
Debandam, porque me é difícil comer o mel
De tomilho amargo, o meu mel dos Andes.
Em baixo, esta manhã o mar copia
Cem vezes o verbo amar. Anjos de algodão
Sujos, indecentes
Mungem na erva os úberes das grandes
Vacas geográficas.









jean cocteau
o anjo heurtebise
ouolof
poemas mudados para português
por herberto helder
assírio & alvim
1997






27 julho 2008

douglas dunn / à janela da noite






A noite chocalha de pesadelos.
Crianças choram nas casas amontoadas,
Um homem apodrece a ressonar.
De pés silenciosos, guardas experimentam portas.
Passadas tornam-se pessoas à luz de candeeiros.
Bêbedos regressam de paródias,
Soando a garrafas vazias e velhas cantigas.
As raparigas voltam para casa,
O prazer nelas ensurdece-me.
Trotam como póneis
E desaparecem por entre camas brancas
À beira da noite.
Todas as janelas se abrem na noite escaldante,
E os que não têm sono, fumando no escuro,
Fazendo pequenas luzes rubras junto à boca,
Contam os anos dos casamentos.








douglas dunn
leituras poemas do inglêstrad. joão ferreira duarte
relógio d´água
1993





24 julho 2008

citações - virgínia woolf





(1920)
Segunda, 25 de Outubro (primeiro dia da hora de Inverno)


Porque será a vida tão trágica?, tão semelhante a uma pequena faixa de passeio sobre um abismo. Olho para baixo; sinto vertigens; não sei se vou conseguir caminhar até ao fim. Mas porque sentirei eu isto? Agora que o digo já não o sinto. Tenho a lareira acesa, vamos à Beggar’s Opera. Só que isto paira em mim; não posso fechar os olhos a isto. É uma sensação de impotência: a sensação de não estar a realizar nada. Aqui estou eu, em Richmond, e, como uma lanterna no meio de um campo, a minha luz esfuma-se na escuridão. A melancolia diminui à medida que vou escrevendo. Então porque não escrevo eu mais vezes sobre isto? Bom, a vaidade proíbe-mo. Quero ser um êxito até aos meus próprios olhos. Contudo, este não é o fulcro da questão. É que não tenho filhos, vivo afastada dos amigos, não consigo escrever bem, gasto muito dinheiro em comida, envelheço – dou demasiada importância aos quês e porquês; dou demasiada importância a mim mesma. Não gosto que o tempo esmoreça. Se assim é, então trabalha. Pois é, mas o trabalho cansa-me logo – só posso ler um bocadinho, uma hora a escrever e já não posso mais. Ninguém vem para aqui entreter-se um bocado. Se isso acontece, zango-me. Ir a Londres é um esforço enorme. Os filhos da Nessa crescem e não posso tê-los cá para o lanche, nem levá-los ao Jardim Zoológico. O dinheiro para os meus alfinetes não dá para muito. Contudo, tenho a certeza de que estas coisas são triviais: é a própria vida, penso eu por vezes, que é assim tão trágica para esta nossa geração – não há um cabeçalho de jornal que não tenha um grito de agonia de alguém. Esta tarde foi o MeSwiney, e a violência na Irlanda; ou então é uma greve. Há infelicidade em todo o lado; está mesmo atrás da porta; ou há estupidez, o que é pior. Mesmo assim, não consigo arrancar este espinho. Sinto que voltar a escrever o Jacob’s Room me vai fazer recuperar a fibra. Acabei o Evelyn: mas não gosto do que escrevo agora. E apesar de tudo isto como sou feliz – se não fosse esta sensação de haver uma faixa de passeio sobre um abismo.







virgínia woolf
diário primeiro volume 1915-1926
trad. maria josé jorge
bertrand editora
1985






22 julho 2008

salsugem








há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida
pensava eu....como seriam felizes as mulheres
à beira-mar debruçadas para a luz caiada
remendando o pano das velas esperando o mar
e a longitude do amor embarcado.....

....por vezes
uma gaivota pousava nas águas
outras era o sol que cegava
e um dardo de sangue alastrava pelo linho da noite...
....os dias lentíssimos....sem ninguém

e nunca me disseram o nome daquele oceano
esperei sentada à porta.... dantes escrevia cartas
punha-me a olhar a risca de mar ao fundo da rua
assim envelheci.... acreditando que algum homem ao passar
se espantasse com a minha solidão....

(anos mais tarde, recordo agora, cresceu-me
uma pérola no coração. mas estou só, muito só,
não tenho a quem a deixar.)

.... um dia houve
que nunca mais avistei cidades crepusculares
e os barcos deixaram de fazer escala á minha porta....
.... inclino-me de novo para o pano deste século
recomeço a bordar ou a dormir
tanto faz
sempre tive dúvidas de que alguma vez me visite
a felicidade.






al berto
salsugem
contexto
1984





luto






atravessava a morte
com a lentidão rigorosa dos amantes

e voltava
voltava sempre

trazia em pedaços de papel
coisas cada vez maiores

que já só podia arrumar no coração






20 julho 2008

eu queria descrever







Eu queria descrever a mais simples das emoções
alegria ou tristeza
mas não como outros o fazem
invocando raios de sol ou chuva

Eu queria descrever a luz
que cresce dentro de mim
mas que não se assemelha
a nenhuma estrela
porque não é tão brilhante
nem tão pura
e é incerta.

Eu queria descrever a coragem
sem arrastar um leão de pó atrás de mim
e a ansiedade
sem agitar um copo cheio de água

dito de outro modo
daria todas as metáforas
em troca de uma só palavra
do meu peito arrancaria uma costela
por uma só palavra
sufocada dentro das fronteiras
da minha pele

mas aparentemente isso não é possível

e para dizer apenas – eu amo
ando às voltas como um louco
apanhando pássaros e pássaros com as mãos
e a minha ternura
que afinal não é feita de água
pergunta à água por um rosto

e a raiva
diferente do fogo
pede ao fogo
uma língua eloquente

e nada é nítido
e nada é inteiramente nítido
em mim
cavalheiro de cabelos brancos
separação de uma vez para sempre
e disse
isto está no poema
isto é o objecto

caímos no sono
com uma mão debaixo da cabeça
e a outra numa pilha de planetas

os nossos pés abandonam-nos
e provam a terra
com as suas raízes subtis
que despedaçamos dolorosamente
na manhã seguinte











zbigniew herbert
selected poems
ecco press
1986
tradução de miguel gonçalves
a partir da versão inglesa feita por czeslaw milosz e peter dale scott