30 junho 2025

ana hatherly / 463 tisanas

  
 
212
 
Era uma vez um país de coveiros. Apertados uns contra os outros abriam as respectivas covas dos inimigos, correspondendo fielmente à sua mútua inimizade. As pás subiam e desciam brilhantes, aéreas, rítmicas, e a terra era atirada de uma cova para a outra, numa chuvada feericamente pesada. Nesse país todos estavam enlouquecidos pelo desejo de retribuir a retribuição. Tinham muito sangue português.
 
 
ana hatherly
463 tisanas
quimera
2006
 



29 junho 2025

josé saramago / história antiga

  

 
Compromissos, não tinha, mas faltei;
Não prestei juramento, mas traí:
Sentir-se réu alguém, não depende
Do juízo dos outros, mas de si.
 
É fácil companhia a consciência
Se mansamente aceita e concilia,
Difícil é calá-la quando somos
Mais retos afinal do que se cria.
 
Um dia tornarei às dores do mundo,
À luta onde talvez já não me esperam,
Antes, seja diferente outra mulher,
Companheira, não de ferros que me ferram.
 
 
 
josé saramago
os poemas possíveis
porto editora
2018


28 junho 2025

diego doncel / para um lugar de ninguém

  
 
Não é necessário fugir, perder-se em qualquer sítio
debaixo de uma identidade que não é a minha?
 
Ao longo desta madrugada estive a ver a passagem das nuvens
e tenho os olhos cheios da minha própria cinza.
No écran do céu, por cima desta cidade abstracta,
acossadas pelas sirenes e pelo tráfico das auto-estradas
vi-as lá no alto a serem pasto do frio,
porventura símbolos de domínios alheios, mensagens de uma íntima irrealidade.
 
Certas ocasiões tinham forma de fronteira como folhas que voam
de um mistério para não sabemos onde, noutras eram o rosto
mutável dos sonhos ou pareciam planetas desertos,
grandes rochedos cósmicos, objectos esquecidos
nos limites de uma tragédia que estava prestes a chegar.
 
Soube que as suas metamorfoses me falavam
de qual era o destino dos homens
e decidi renuncia à sua beleza.
Debaixo da sua fragilidade, debaixo da sua enganadora doçura,
debaixo da sua aparência humilde e quase introvertida
são um lugar de ninguém, como o Génesis.
E o seu cheiro a terra húmida, as gotas
com que às vezes caíam nos meus gerânios
apenas assinalavam o caminho do pouco que sou, do meu abandono.
 
Por isso pergunto se não é preciso fugir.
ser outra vez um grão de areia na poeira de outro tempo.
Embora saiba que há-de levar-me a este mesmo lugar, embora ali me esperem
estas mesmas alamedas brilhantes e sonâmbulas como uma furgonete de distribuição,
estes mesmos pombos pensativos criados com a combustão
dos motores e com flocos achocolatados de cereais,
embora me esperem este mesmo vento e estas mesmas folhas secas
que se arrastam ao pé de dias igualmente escuros e fugazes.
 
Ao longo desta madrugada estive a ver a passagem das nuvens
sem consolo, como um homem perdido,
enquanto elas reflectiam pouco a pouco nos vidros
da minha casa as coisas que perdi, o meu desamparo.
Nuvens que eram tempo e que passavam mudas, nuvens
que eram restos de mim e cuja passagem não deixava qualquer marca
sobre a geografia desta cidade, só um punhado de sombras,
quase nada, perplexidades e desvarios no meu coração.
 
Vi-as descer à minha pele e encheram-me o rosto
de silêncio, do silêncio que vem dos bairros adormecidos,
do silêncio que vem do outro lado das coisas,
de um insuportável desdém.
Vi-as arrastar a gordura dos seus ventres
pelo que esta cidade oferece:
sexo, laboratórios de condutas do prazer,
fábricas de tratamento de resíduos afectivos, cruzamentos ferroviários
onde convergem diferentes nostalgias,
áreas de oração para estimular o consumo
e a obesidade sentimental.
 
Quando senti a ferrugem dos seus nervos
nos nervos dos meus olhos, quando senti que elas
eram eu próprio, só um punhado de cinza,
o tele-predicante do novo dia gritava de um estúdio de televisão:
– Sai daqui, desaparece, que ninguém te conheça.
Deixa atrás de ti os passos da tua fuga.
Corre, os países hão-de passar um após outro,
os diferentes estados de consciência.
Apenas necessitas da mecânica dos teus pulmões
para receberes umas migalhas de misericórdia. Por seres homem.
Por veres que tudo se acelera. A velocidade cardíaca,
os pensamentos, a elevada temperatura da tua espinha dorsal.
Toda a tua miséria. Os rumos do teu exílio à margem,
sempre à margem das coisas.
 
 
 
diego doncel
em nenhum paraíso
trad. joaquim manuel magalhães
averno
2007




 

27 junho 2025

bertolt brecht / quem é o teu inimigo?

  
 
O que tem fome e te rouba
O último pedaço de pão chama-lo teu inimigo
Mas não saltas ao pescoço
Do teu ladrão que nunca teve fome.
 
 
 
bertolt brecht
poemas
selecção e trad. de arnaldo saraiva
presença
1976





26 junho 2025

antónio franco alexandre / syrinx, ficção pastoral

 
 
 
VII
 
Este vapor em trânsito no tejo
é como branca gôndola descendo
as colinas de um rio;
de rosto ao vento, sou como o gondoleiro
na laguna serena a procurar o mar.
fez.me a vida este corpo de rã seca
a debitar no charco um som de flauta;
já nada nem ninguém me traz a sede
quando a chuva não cessa de crescer
e a neve cobre as pontes mais recentes.
Um negro louco nos dirige as tropas,
distribuindo ervas doces de chipre
pelos atarefados passageiros; e assim
eu, que ao sol cantei em minhas horas
esperando que o mundo me não leve a mal
embarco, quase noite, na praia ocidental.
 
 
 
antónio franco alexandre
quatro caprichos
assírio & alvim
1999
 



25 junho 2025

antónio dacosta / ó dia de sol e morte

 


 
3.
 
Ó dia de sol e morte
 
As flores eram venenosas
As moscas eram negras
O azul tenebroso
 
Tanta luz impiedosa
Sobre o luto da terra
 
 
 
antónio dacosta
saudade
a cal dos muros
assírio & alvim
1994



24 junho 2025

eduardo pitta / meia dúzia de linhas

 
 
 
Meia dúzia de linhas
para me dizeres que tudo mudou.
Agora é outro mar
outra terra, outra gente.
 
Eu continuo por aqui.
Somos como pássaros que o horizonte recusasse.
Perdemos o azul
e perdemo-nos.
 
 
 
eduardo pitta
sílaba a sílaba
desobediência
poemas escolhidos
dom quixote
2011
 



23 junho 2025

joão miguel fernandes jorge / palavras dos remadores

 
 
Como se não restasse
nem sequer a ilha
desci à fundura do lago. Não vi
o barco nem os remadores.
Na distância, um ténue amarelo de enxofre.
Mesmo esse brilho
extinguiu-se.
Por um instante de desejo e medo
ouvi as suas vozes nítidas sobre
as águas paradas.
 
 
 
joão miguel fernandes jorge
invisíveis correntes
relógio d´água
2004




22 junho 2025

joão habitualmente / a roda dos anos

 
 
 
Primeiro, tudo são carícias
e há grandes varandas arvoradas na noite
de lua morta
onde nos instalamos como reis
 
Ribeiros e fontes
e todos os sítios abrem para a tua porta
 
 
Depois abre-se o tempo em abismo
e erra-nos as contas
 
As noites, compridas e iguais,
São agora de cornos e pontas
 
 
 
joão habitualmente
um dia tudo isto será meu
(uma antologia)
porto editora
2019




21 junho 2025

joão gesta / vende-se isco



 

 

Faz muito frio, como convém nestas crónicas.
Trémulo, desembacio o vidro da janela.
As crianças esfaqueiam-se alegremente no parque e fazem
Ronaldos na neve, enfeitando-lhes os olhos com varejeiras da
Petúlia, as melhores.
Apenas um pouco para a esquerda, vestidas de lilás, três caudas
de piano lêem Pessoa, estiraçadas na relva domingueira. Dois
telefones beijam-se na boca e discam números às escondidas
dos pais.
Lá mais ao longe, no meu firmamento adivinhado, o Douro
faz amor com a Ribeira, mas a pensar noutra coisa.
Nas margens, os pescadores mijam mais do que o habitual.
O TGV, impante, atravessa o rio sem barbatanas,
“Pena os sáveis não usarem collants”, pensei, arreliado.
 
 
 
joão gesta
uma falha nos dentes
porto editora
2019



 

20 junho 2025

carlos de oliveira / estátua

 
 
 
a Jane L.
 
 
Nos umbrais desta página recebo o poema que chegou de longe, duma memória escura, voluntária, atravessando lama, sono, olvido. Desvendo-lhe as feições, sílaba a sílaba. Quando grito por fim «eis uma cara nova», penso logo «afinal, eras tu». Reconheci apenas outro rosto esquecido na aridez do mundo, recolhi-o da sombra donde veio, e aqui lho deixo, adoradora de estátuas muito antigas, petrificado no papel.
 
 
 
carlos de oliveira
sobre o lado esquerdo
trabalho poético
livraria sá da costa editora
1982



19 junho 2025

yvette k. centeno / a hora

 



 

 

Acordo
dia a dia mais cedo.
Tenho o relógio ao lado
procuro ver a hora
mas não vejo.
Fecho os olhos
verei daqui a bocado,
não há pressa
a hora não fugirá
está ali dentro presa
 
29 de Setembro, 2021
 
 
 
yvette k. centeno
existir
eufeme
2022
 



18 junho 2025

rui diniz / notas de viana e arredores

 
 
 
Li pouco, este Verão. O «Retrato em Movimento», Ruy
Belo, puros esboços de leitura entre as
longas e extenuantes deliberações poéticas em
papel que comprara em Tuy numa papelaria.
Escrevi, pois. E de regresso de Lisboa, viveria,
viveria, desintegraria em mim todas as
objecções cósmicas e regressaria de mãos
vazias a mim mesmo. Falta-me
uma qualidade: a paciência. Sou acima
de tudo um ser inquieto perante a
ideia da morte. Estou incapaz de criar.
 
 
rui diniz
ossos de sépia
noemas
língua morta
2022




17 junho 2025

armando silva carvalho / sempre passei a vida entre o poema

 
 
 
SEMPRE passei a vida entre o poema
e a vida entre o amor
e a fábula.
E sempre que colhia
esses espaços de luz precipitada
eu via a voz de deus
alevantada
entre mim e o nada que sorria.
 
 
 
armando silva carvalho
canis dei (1995)
o que foi passado a limpo, obra poética
assírio & alvim
2007






 

16 junho 2025

daniel faria / explicação do alpendre

 


 
 
Porque em seu peito nunca tive aberta
A veia exacta para lhe ser sangue
 
 
 
daniel faria
poesia
últimas explicações
quasi
2003






 

15 junho 2025

adolfo luxúria canibal / o jardim


 

  
 
Há tanto tempo que não me ocupo do jardim
A última vez estava frondoso
A buganvília a tingir-se de vermelho Trepando
O perfume inebriante
E as festas ao cair da tarde
Parece que foram há séculos Noutra encarnação
Os meus amigos traziam as bebidas
E a jovialidade
O jardim enchia-se de gente De beijos
Pelos cantos Sôfregos de desejo
Inventávamos planos de rebelião Sonhos de transmutação
Passávamos horas a inventar Entre duas carícias
Surgiam ideias puras e inocentes
Como a nossa vontade de tudo abarcar
Era um frenesim constante
Faz-me pena agora olhar para ele
Para as suas sebes abandonadas De ramos
Retorcidos jaz tombada a grande epícea
E uma enorme cratera
Substitui os belos canteiros de outrora
Há tanto tempo que não me ocupo do jardim
 
 
 
adolfo luxúria canibal
no rasto dos duendes eléctricos
(poesia 1978-2018)
Epístolas da guerra (1999)
porto editora
2019





 

14 junho 2025

irene lisboa / ir, vir

 
 
 
Ir, vir…
Ir. Manhã, ar fresco, paisagem nova.
Vir. Tarde. hora dos poetas, dos que não can-
tam e passam pelas coisas apenas gozando, sur-
preendidos e ternos.
 
Se em cada lugar da terra eu perdesse a minha
humana essência, aquilo que me iguala ao que é
e ao que foi!
Nesta hora divina, nesta formosa tarde como ser?
Que me tentava?
Não sei.
Terra, luz, ar, amenidade indizível!
 
 
 
irene lisboa
um dia e outro dia…
poesia I
obras de irene lisboa  I
editorial presença
1991
 




13 junho 2025

antonia pozzi / fogueiras de santo antónio

 
 
 
Labaredas na noite do meu nome
sinto arderem à margem
de um mar escuro –
e ao longo dos portos acenderem-se piras
de coisas velhas,
de algas e barcos
naufragados.
 
E em mim nada que possa
ser queimado,
mas cada hora da minha vida
ainda – com o seu peso indestrutível
presente –
no coração extinto da noite
me segue.
 
 
 
antonia pozzi
morte de uma estação
trad. inês dias
averno
2019
 



12 junho 2025

rui caeiro / país natal

 
 
 
País de cegos, onde não falta nem a mansidão nem a quietude – nem a resignação. Onde os zarolhos que há querem ser reis – a fim de, segundo dizem, dar razão a um velho provérbio. Tudo, na realidade, em ordem a mandar e até, quando calha, bater no ceguinho. São, pois, menos simpáticos os zarolhos – além do mais, mexem-se muito. País algo cinzento, cumpridor dos provérbios e das normas. Para nós, grande multidão dos cegos, uma consolação porém: nunca os zarolhos, naturais detentores do poder, hão-de conhecer os supremos prazeres do país em que vivem.
 
Prazeres de gente pobre, prazeres simples, comezinhos – mas supremos:
  – o afago de uma mão, de uma voz, de um olhar…
  – o contacto da mão de um cego que nos ajuda a atravessar a rua…
 
 
 
rui caeiro
sobre a nossa morte bem muito obrigado
livro de afectos
maldoror
2019




11 junho 2025

maria teresa horta / domínio

 
 
Não deixo que as coisas
me dominem
nem que a vasta secura
me adormeça
 
nem que a vela
me apague
nos sentidos
a febre a que a boca não se entrega
 
Não deixo nem que deixes
tuas armas
que a piscina de meu ventre
se entorpeça
 
nem que a vara
se quebre na saudade
nadando contra aquilo
que me vença
 
 
 
maria teresa horta
poesia reunida
educação sentimental
dom quixote
2009




 

10 junho 2025

mário dionísio / caminho



 

 
Depois que os levaram
as casas ficaram sem ninguém.
e o barulho das portas batendo nos umbrais
e o escaqueirar dos vidros das janelas completamente abertas
confundiram-se com o sinistro uivar do vento
e o choro convulsivo das crianças sozinhas.
Depois que os levaram
os olhos saltaram das órbitas, cansados de chorar,
as searas morreram queimadas porque ninguém as ceifou,
as máquinas pararam,
o ferro das charruas cobriu-se de ferrugem.
 
As cidades ficaram desertas.
 
Depois que os levaram
a miséria passou em todas as almas
e vincou nos rostos uma profunda ruga de tristeza.
As mulheres prostituíram-se
porque eles vieram e não tiveram quem os impedisse
de mudar as oficinas em casas de deboche.
Depois que os levaram
tudo mudou.
Sem luz, perdemo-nos no meio do deserto.
Estendemos os braços magros e não achámos nada.
Olhámos e não vimos.
Gritámos e nem ouvimos sequer o nosso eco.
Depois que os levaram tudo estava perdido.
 
Mas uma estrela brilhou na insondável noite.
Um grito sublime chicoteou o silêncio.
Um sopro de esperança cimentou o solo.
Um elo indestrutível juntou as nossas dores.
 
E o grito fez-nos estremecer até à medula
a estrela encharcou de claridade um novíssimo caminho.
Os olhos voltaram às órbitas.
As searas renasceram.
As máquinas tornaram a girar.
O ferro das charruas sacudiu a ferrugem.
 
Agora já não andamos como doidos a gritar no meio das trevas
e as nossas botas não ficam enterradas na areia do deserto.
Agora vemos um caminho.
E este não tem nada de igual aos que nos tinham mostrado.
Este é o nosso, o novo, o único caminho por onde podemos avançar,
o único
por onde voltarão aqueles que nos levaram.
 
 
 
mário dionísio
poesia completa
poemas (1936-1938
imprensa nacional-casa da moeda
2016




 

09 junho 2025

eduarda chiote / a incerta sujeição da arte

 
 
 
Puderas ter criado
mares
em que o contacto da luz
não magoasse
quer a leveza do fogo
quer a respiração funda
da água
e de modo a que a imolação
do corpo de ambos
por igual repartisse a
natureza primordial
da arte
e nenhuma lacuna seria
imperfeita,
criança indesejada: pois tudo seria
só,
silêncio,
majestade.
 
 
 
eduarda chiote
a celebração do pó
asa
2001
 



08 junho 2025

egito gonçalves / deitado sob as nuvens

 
 
 
Deitado sob as nuvens
recebo nos olhos o esplendor
que sombreia os escombros. Olho-as
como símbolos, vêm do meio-dia
solar que afastei, de fímbria
branca, ventres
de água, túrgidos. Levantarão
ainda outros poemas quando já não existam
(não existem agora?) longe daqui
num outro cérebro, num olhar pousado
nas sólidas ruínas, nos destroços
de que o inverno se nutre – por isso
afinal vos amo, nuvens, onde estais…
 
 
 
egito gonçalves
o esperado fim do mundo já partiu
uma antologia
língua morta
2020
 



07 junho 2025

hans-ulrich treichel / seja o que for

 
 
Bebem cerveja
ou vinho ou seja o que for
que deles vai restar,
os bolinhos moles, a pele dura,
aperitivos e amendoins,
ânimo nobre, amor aos animais,
as calças vinco a vinco, prega a prega,
o pescoço à navalha, manchas de ferrugem
debaixo dos braços, ou
manchas de sangue, ou
seja o que for que deles vai restar,
ou nós ou vocês, ou todos ou nenhum,
o veado na bruma,
a campa da criança,
a pancadinha seca na almofada,
haverá sujidade e
fome, apesar da
fartura e de todo
o sabonete.
 
 
 
hans-ulrich treichel
como se fosse a minha vida
trad. colectiva
poetas em mateus
quetzal editores
1994




 

06 junho 2025

ernesto sampaio / somos dos rios

 
 
 
Somos dois rios
que se afastam em silêncio
e os anos acumulam
de um pó essencial
antes de desaparecer
para nunca mais
 
Já se perde
na corrente fortíssima
a fixidez dos teus olhos
 
Até ao fim dos anos
os teus olhos
fixarão
 
 
 
ernesto sampaio
dois rios
poesia
vs editor
2024




05 junho 2025

andrea cohen / entrada

 
 
 
Ficou à porta
muito tempo
 
como se quisesse
entrar.
 
como se setas
invisíveis alojadas
 
no interior lho
não permitissem.
 
 
 
andrea cohen
serenamente sobre as lanternas
trad. francisco josé craveiro de carvalho
do lado esquerdo
2024




04 junho 2025

diana v. almeida / firenze

 



 

 
Assaltam-me os anjos
renascentistas súbitos
infantes zelosos lúcidos
pálidos andróginos esguios
fina cabeleira em cascata
asa em riste pena matizada
descem em esquadria
dos altares laterais
aureo
lado
s.
 
 
 
diana v. almeida
cosmos e casas
editora urutau
2021







03 junho 2025

ilka brunhilde laurito / lamentação de natércia

 
 
 
VIII
 
Amor é fogo? ou é candente lágrima?
Pois eu naufrago em um mar de labaredas
que lambem o sangue e a flor da pele acendem
quando o rubor me vem à tona d’água.
 
E como arde, ai, como arde, Amor,
quando a ferida dói porque se sente,
e o mover dos meus olhos sob a casca
vê muito vem o que devia não ver.
 
Solitária andarei e descontente?
Mas como posso andar, Amor, com as gentes,
se teus braços de ausência é que me estreitam?
 
Pois se dois corpos só acharão lugar
no mesmo exacto e mensurado espaço,
em solidão tão larga eu já não caibo.
 
São Paulo, 1984
 
 
 
ilka brunhilde laurito
colóquio letras nr. 90
março 1986
fundação calouste gulbenkian
1986
 



02 junho 2025

cesário verde / num bairro moderno

 
 
 
Dez horas da manhã; os transparentes
Matizam uma casa apalaçada;
Pelos jardins estacam-se as nascentes,
E fere a vista, com brancuras quentes,
A larga rua macadamizada.
 
Rez-de-chaussée repousam sossegados,
Abriram-se, nalguns, as persianas,
E dum ou doutro, em quartos estucados,
Ou entre a rama dos papéis pintados,
Reluzem, num almoço, as porcelanas.
 
Como é saudável ter o seu aconchego,
E a sua vida fácil! Eu descia,
Sem muita pressa, para o meu emprego,
Aonde eu agora quase sempre chego
Com as tonturas d’uma apoplexia.
 
E rota, pequenina, azafamada,
Notei de costas uma rapariga,
Que no xadrez marmóreo d’uma escada,
Como um retalho de horta aglomerada,
Pousara, ajoelhando, a sua giga.
 
E eu, apesar do sol, examinei-a:
Pôs-se de pé; ressoam-lhe os tamancos;
E abre-se-lhe o algodão azul da meia,
Se ela se curva, esguedelhada, feia,
E pendurando os seus bracinhos brancos.
 
Do patamar responde-lhe um criado:
«Se te convém, despacha; não converses.
Eu não dou mais.» E muito descansado,
Atira um cobre lívido, oxidado,
Que vem bater nas faces d’uns alperces.
 
Subitamente - que visão de artista! -
Se eu transformasse os simples vegetais,
À luz do Sol, o intenso colorista,
Num ser humano que se mova e exista
Cheio de belas proporções carnais?!
 
Boiam aromas, fumos de cozinha;
Com o cabaz às costas, e vergando,
Sobem padeiros, claros de farinha;
E às portas, uma ou outra campainha
Toca, frenética, de vez em quando.
 
E eu recompunha, por anatomia,
Um novo corpo orgânico, aos bocados.
Achava os tons e as formas. Descobria
Uma cabeça numa melancia,
E nuns repolhos seios injectados.
 
As azeitonas, que nos dão o azeite,
Negras e unidas, entre verdes folhos,
São tranças dum belo cabelo que se ajeite;
E os nabos - ossos nus, da cor do leite,
E os cachos d’uvas - os rosários d’olhos.
 
Há colos, ombros, bocas, um semblante
Nas posições de certos frutos. E entre
As hortaliças, túmido, fragrante,
Como d’alguém que tudo aquilo jante,
Surge um melão, que me lembrou um ventre.
 
E, como um feto, enfim, que se dilate,
Vi nos legumes carnes tentadoras,
Sangue na ginja vívida, escarlate,
Bons corações pulsando no tomate
E dedos hirtos, rubros, nas cenouras.
 
O sol dourava o céu. E a regateira,
Como vendera a sua fresca alface
E dera o ramo de hortelã que cheira,
Voltando-se, gritou-me, prazenteira:
«Não passa mais ninguém!... Se me ajudasse?!...»
 
Eu acerquei-me d’ela, sem desprezo;
E, pelas duas asas a quebrar,
Nós levantámos todo aquele peso
Que ao chão de pedra resistia preso,
Com um enorme esforço muscular.
 
«Muito obrigada! Deus lhe dê saúde!»
E recebi, naquela despedida,
As forças, a alegria, a plenitude,
Que brotam d’um excesso de virtude
Ou d’uma digestão desconhecida.
 
E enquanto sigo para o lado oposto,
E ao longe rodam umas carruagens,
A pobre afasta-se, ao calor de agosto,
Descolorida nas maçãs do rosto,
E sem quadris na saia de ramagens.
 
Um pequerrucho rega a trepadeira
D’uma janela azul; e, com o ralo
Do regador, parece que joeira
Ou que borrifa estrelas; e a poeira
Que eleva nuvens alvas a incensá-lo.
 
Chegam do gigo emanações sadias,
Oiço um canário - que infantil chilrada! -
Lidam ménages entre as gelosias,
E o sol estende, pelas frontarias,
Seus raios de laranja destilada.
 
E pitoresca e audaz, na sua chita,
O peito erguido, os pulsos nas ilhargas,
D’uma desgraça alegre que me incita,
Ela apregoa, magra, enfezadita,
As suas couves repolhudas, largas.
 
E, como grossas pernas d’um gigante,
Sem tronco, mas atléticas, inteiras,
Carregam sobre a pobre caminhante,
Sobre a verdura rústica, abundante,
Duas frugais abóboras carneiras.
 
 
 
cesário verde
o livro de cesário verde e outros poemas
penguin clássicos
2024
 



01 junho 2025

eugénio de andrade / aos inimigos

 
 
 
Falta ainda trazer a estas páginas, nem que seja obliquamente, esses que engordam com o ódio. Vêm ao anoitecer, no rastro lento da melancolia, a enxúndia a reluzir de satisfação. Alguns amaram-me tanto quando eram jovens que seria mesquinho negar-lhes agora um copo de vinho ou um lugar ao lume para aquecerem as mãos. Novembro já chegou, e o frio desculpa de certo modo a promiscuidade.
 
20.3.86
 
 
 
eugénio de andrade
vertentes do olhar
poesia
fundação eugénio de andrade
2000