31 outubro 2019

charles simic / janeiro



Dedadas de criança
Numa janela gelada
De uma pequena escola.

Um império, li algures,
Mantém-se a si próprio graças
À crueldade nas suas prisões.



charles simic
o último soldado de napoleão
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2018










30 outubro 2019

octavio paz / vida pressentida



Relâmpagos ou peixes
na noite do mar
e pássaros, relâmpagos
na noite do bosque.

Os ossos são relâmpagos
na noite do corpo.
Oh mundo, tudo é noite
e a vida é relâmpago.



octavio paz
antologia poética
salamandra (1958-1961)
trad. luís pignatelli
publicações dom quixote
1984


29 outubro 2019

carlos de oliveira / infância




I

Terra
sem uma gota
de céu.




carlos de oliveira
turismo
trabalho poético
livraria sá da costa editora
1998










28 outubro 2019

r. lino / palavras do imperador hadriano na morte de antínoos



começo a fala:
o som dos meus lábios
nesta boca de silêncio:
lá fora, o oriente
nas fronteiras do meu poder.
que arbitrária beleza
me fez conceder
a esse estranho corpo da Grécia
a possível eternidade do meu?
que outro nome
– menos fugaz que o das guerras –
poderia eu ter desejado
para o sentido das memórias?
por um breve lapso de tempo
teço de paisagens o seu perfil
como se
para lá da vida
ainda houvesse a morte.



r. lino
palavras do imperador hadriano
segunda série
políptico
companhia das ilhas
2016





27 outubro 2019

eugénio de andrade / outras tardes



     Debruço-me para escutar o canto. De onde viria, se a luz sabia a sal? Dele falava quando disse que o outono já se estendera sobre a palha. A terra cheia bem: no silêncio crispado as maçãs ardiam de doçura.
     Era no tempo em que as cabras subiam às falésias. Talvez algum pastor lhes seguisse o rasto. E cantasse então.


eugénio de andrade
memória doutro rio
poesia
fundação eugénio de andrade
2000












26 outubro 2019

judite canha fernandes / podemos amar ou podemos



se eu partir
permanecerás
incólume
levando-me dentro

se eu ficar
seremos o líquido em movimento que alimenta o perene jardim

aceitemos a morte e a vida num grão de areia




judite canha fernandes
podemos amar ou podemos
editora urutau
2019



25 outubro 2019

marta navarro; paola d´agostino / minha melhor amiga era louca



Minha melhor amiga era louca
desequilibrada
de ter um pé excêntrico e outro clínico
largava brincos pela cidade como quem tem calor tira o lenço
do pescoço pendura-o nas costas da cadeira pede a conta
levanta-se
e vai-se embora
Escrevi muitas histórias à volta dos seus brincos
                                    à volta da sua cabeça meia perdida
como quem colhe o acaso
                           o selvagem
e o toma nas mãos como seu

Precisava dela
como uma palavra que brilha no escuro
à procura do impulso do dia
querendo que me ensinasse a arte
de bem se perder




marta navarro; paola d´agostino
dançam; dançam
edit. a tua mãe
2014





24 outubro 2019

alberto lins caldas / tântalo




I

 aqui é o caos  
● o redemoinho do caos 
● no centro indistinto do caos ●
● como nuvem de corvos e abutres ●
● todos devorando pombos e pardais ●
● nada menos caos no turbilhão de neve ●
● passos deslizando na lama de neve ●

● vento folhas sementes mortas ●
● arvores se curvando como servos ●
● muros se movem indo pra calçada ●
● muros desejando cair rolar e voar ●
● planando no turbilhão de neve ●
● como nuvem de corvos e abutres ●
● todos devorando pombos e pardais ●

● neve q bate nas portas sem entrar ●
● todos escondidos sobre as camas ●
● no centro indistinto do caos a nuvem ●
● essa q cada vez devora mais e cresce ●
● os velhos ossos dos muros o marmore ●
● todas essas arvores mortas pelo frio ●
● se partindo curvadas como servos ●

● ruas se contorcendo ●
● ao redor do centro indistinto do caos ●
● como nuvem de corvos e abutres ●
● nada menos caos no turbilhão de neve ●
● devorando os q caem na lama de neve ●
● vendo quase na treva do dia o caminho ●
● todos devorando pombos e pardais ●




alberto lins caldas
tântalo
flan de tal
2019





23 outubro 2019

joão habitualmente / santa catarina




então os americanos
fizeram mais uma experiência
nuclear
a paisagem afundou-se em volta num segundo?

e o risco em fogo do sol agora é o
risco em fogo do próprio fogo?

tudo enquanto
nós passeávamos em santa catarina
depois dum filme do marco ferreri
vê lá




joão habitualmente
um dia tudo isto será meu
(uma antologia)
porto editora
2019






22 outubro 2019

konstantinos kaváfis / compreensão




Os anos da minha juventude, a minha vida de prazer –
que claramente vejo agora o seu sentido.

Que inúteis remorsos, que estéreis…

Mas não via o sentido nessa altura.

Em meio à minha dissoluta vida jovem
ia tomando forma a minha poesia,
ia-se desenhando o contorno da minha arte.

Por isso nunca houve firmes arrependimentos.
E as decisões de me dominar, de mudar
duravam duas semanas se tanto.


1918



konstantinos kaváfis
kosntantinos kaváfis, 145 poemas
tradução de manuel resende
flop livros
2017





21 outubro 2019

manuel antónio pina / ruínas



Por onde quer que tenha começado
pelo corpo ou pelo sentido,
ficou tudo por fazer, o feito e o não feito,
como num sono agitado interrompido.

O teu nome tinha alturas inacessíveis
e lugares mal iluminados onde
se escondiam animais tímidos que só à noite se mostravam
e deveria talvez ter começado por aí.

Agora é tarde, do que podia
ter sido restam ruínas;
sobre elas construirei a minha igreja
como quem, ao fim do dia, volta a uma casa.



manuel antónio pina
como se desenha uma casa
ruínas
assírio & alvim
2012





20 outubro 2019

ernesto sampaio / a única real tradição viva





                Uma tremenda força reacionária cobre de noite a Poesia. Aos raros espíritos que tentam reivindicar para ela os antigos prestígios, o seu poder de encantação, de transposição dos secretos ritmos do mundo, de vidência, magia e ciência, mal lhes chega a força e o tempo para elevar o seu amor um tudo nada acima das paupérrimas formas de vida deste século onde a conjunção tenebrosa da religião, do capital e do resto dispõe de um eficaz arsenal de artifícios para aviltar os homens: técnicas psicológicas para mutilar a tensão inicial que os liga à realidade exterior; coacções económicas para limitar a liberdade propulsora do seu acesso às grandes zonas perigosas onde as forças obscuras arpoadas pela necessidade humana se objectivam, se transformam em realidade tangível; valores, noções e obrigações para torna-los vis degradando o seu sentido do Maravilhoso, substituindo o Amor e as altas circunstâncias da vida que o realizam – único contexto da Dignidade e da Grandeza humanas – por fórmulas obtusas e vulgares que são o penhor do poderio da mediocridade e da miséria moral; enfim, uma religião masoquista para os habituar, para fazer deles cidadãos submissos, viciando-lhes a sensibilidade e fechando-lhes o espírito.
                É esta a orla dum tempo onde todo o pensamento grande e rigoroso vai dar ao inferno. Mas em todos os tempos, naturalmente, a sua tendência não foi acomodar-se ao sono do tempo, não foi pacificar as querelas e contradições que o uniam, a sua tendência foi exasperá-las. O inferno, a noite, o caos, a natural violência dos monstros, dos dilúvios, das convulsões da terra, dos vapores venenosos das origens sempre foram o crivo onde o pensamento se teve de perder antes de encontrar o porto interdito aos que em vez do universal demandaram o particular, em vez do verdadeiro só puderam ver o comum. Em todos os tempos, também, tal como a água a insinuar-se por entre as falhas das rochas, lá longe, absolutamente a sós, à frente, os guardas-avançados do espírito têm estado atentos às falhas da grande noite que os rodeia, procurando aberturas, espaços iluminados onde possam abrir a estrada da emancipação do homem, num combate árduo pela conquista duma absoluta semelhança entre o que ele é e a mais alta ideia de si mesmo. Foram já dados alguns passos em frente, etapas que nenhum Thermidor, nenhum refluxo reaccionário conseguiu fazer recuar porque foram definitivas, forneceram novas e superiores perspectivas à luta pela interpretação e transformação do homem e do mundo. Em vão se procurará fundamentar validamente qualquer acção que, reclamando-se do conhecimento e da criação, se inscreva fora dos quadros dessa luta. Ela apela para todas as forças objectivas e subjectivas dos diversos modos de actividade libertadora. Apela para a Poesia – função do desejo e raiz do conhecimento, o qual incide sobre a descoberta do elemento que permite ao sujeito organizar-se de maneira a se integrar totalmente no objecto que o reclama, que permite à particularidade de cada homem, num excesso de real, harmonizar-se com a universalidade, como um homem e uma mulher, quando o desejo é tão grande que o contacto dos seus corpos é conhecimento, sem domínio nem escravidão, se harmonizam – no ponto onde toda a energia se cristaliza nessa maravilhosa jóia negra que obriga a perder quem a quiser ganhar, que dana quem por ela se quiser salvar. É essa aceitação dos riscos extremos, mediada pelos danadores-salvadores que interceptam a corrente magnética e a distribuem, que dá aos homens a senha das sucessivas passagens das trevas para a luz, do caótico para o ordenado, da realidade dispersa do sonho para a realidade concentrada do estar acordado.
                Atento a todos os sinais reveladores, o poeta espera acordar. O prémio desta espera, mais ainda do que as partidas e chegadas, é ela própria: sexualização da vida, casamento do homem com o mundo para além de todo o desespero, toda a angústia, toda a merda – cuidadosamente organizada pelos macacos pensantes – que os séculos acumularam enterrando o homem num fosso de miséria e de injustiça. O poeta quer tornar essa espera extensiva à humanidade inteira. É esse – nenhum outro! – o seu compromisso. O sentido e a medida da sua acção ultrapassam de longe todas as soluções de continuidade das condições actuais: é que ele, considerando bons e estimáveis alguns lances do caminho já andado, acha que em verdade ainda está tudo por fazer. Quanto aos que exploram a actual situação (os que não deixam passar), o poeta não pode senão – e da maneira mais activa – desejar o seu extermínio.
                A Moral é a acção da Poesia. Quero dizer: o poeta é exemplar. Ele não pode aceitar que à sua volta se coisifique o homem. Sabe muito bem precisar a sua subsistência da liberdade dos outros, porque sem a crítica engendrada por essa liberdade as suas perspectivas não se definem, ficando ele como uma máquina a projectar um belo filme sobre um espaço vazio; sabe muito bem que sem a disponibilidade condicionada por essa liberdade o trabalho altamente poético de vagabundagem à procura de choques reveladores, transforma-se, de exaltante, em amargurado. Para ele, ser livre é conservar intacta a necessidade da consciência que visa à transformação do estado entre a multiplicidade de estados relativos do ser, que mais se ajusta ao ponto equilibrante onde fundem a lei contingente da matéria e a liberdade do espírito. A preservação dessa necessidade vai de par, nele, com a denúncia de todo os sistema arbitrário cuja estrutura seja precária e pretenda possuir um valor absoluto. Ele tem de descobrir o seu próprio sistema de aferição do real, a sua própria física, arruinado a actual, comportando-se sempre em relação às «verdades» do mundo e em relação à sua própria percepção duma maneira subversiva. Nas condições actuais, não há nada mais miserável do que a «recuperação» social dos poetas, nem há nada mais canino do que o prestarem-se os poetas a uma tal recuperação, ou por envelhecerem ou por não terem sabido manter a distância suficiente, conscientes da sua direcção única: essa «vontade prática» que procura restabelecer os verdadeiros fundamentos da relação homem-mundo e de alguma maneira coincide com a obscura sensação de gravitarmos em volta de um objecto que, mesmo sendo desconhecido, corresponde concretamente à nossa mais íntima e essencial necessidade. Pertence este fenómeno a uma ordem galvanizada de relações interiores tão determinante e incoercível que dificilmente cabe em qualquer esquema da consciência. Trata-se dum desses fenómenos psíquicos mais obscuros e axiais por referência à direcção do espírito, à vibração da sensibilidade e à consciência moral. São as migrações das forças que atravessam a matéria e o espírito, ambos permanentemente animados por um dinamismo a que os alquimistas procuravam descobrir as correspondências e as afinidades que o produzem. O choque, o encontro com esse objecto – condutor duma força que simultaneamente é atraída e se opõe à que nós próprios conduzimos – é susceptível de produzir uma descarga capaz de iluminar, ainda que brevemente, o campo vago eternamente cerrado de bruma onde o que o homem é e o que o homem não é têm os seus «rendez-vous» numa ambiência subitamente prenhe de reminiscências encantadas e infantis. Essa descarga luminosa – a imagem poética tal como a concebo – resulta do choque de forças atractivas puras e ocupa um lugar essencial no esquema motor do surrealismo que, procedendo a uma sensibilização absoluta da relação sujeito-objecto, considera a sensação estética igual à sensação de passagem de corrente e da vibração dessa passagem que pode vir algum remédio para o estado viciado em que se encontram as estruturas da percepção reputadas de normais. Efectivamente, é esse viciamento cuja génese não faremos agora que fundamenta todas as inversões do verdadeiro funcionamento do espírito, especialmente a mania da descrição dos objectos que tanto atenta contra a principal virtude do espírito: reproduzir a virtude das coisas, recriando-as. O poeta, existindo pelo que lhe é reversível, está menos sujeito a esse viciamento que separa a vida latente da vida manifesta. Ele acha (devemos também ao surrealismo a formulação objectiva desse instinto milenário) ser a vida para o contexto de forças que definiremos por destino o que a linguagem é para o pensamento. O poeta sente conduzir a vida e ser conduzido por ela. Crê ser um dever o procurar ler um destino na trama emaranhada dos seus encontros, nas neves da sua existência orgânica, com esse ar das grandes montanhas que «exalta antes de matar», esse ar que já é outro. Da gravidade duma tal concepção da vida, resulta o poeta atribuir aos seus valores a mesma importância que os antigos navegadores davam às conjunções celestes que os orientavam. Esses valores, esses ímans correspondem a necessidades concretas da vida humana. Esses valores puxam o homem, orientam-no, são estrelas que ele utiliza para tirar o seu ponto, pólos magnéticos que se chamam o Sonho, o Amor, a Liberdade – tutelas da única real tradição viva que a Poesia encarna.

1963



ernesto sampaio
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
por perfecto e. cudrado
assírio & alvim
1998






19 outubro 2019

calí boreaz / parada





em algum corredor
no labirinto da existência
de repente a gente
para e olha nos olhos da gente
pra ver os anos
o amor
a essência
e os lindos enganos.


calí boreaz
outono azul a sul
ilustrações edgar duvivier e
antónio martins-ferreira
editora urutau
2018





18 outubro 2019

ruy belo / sexta-feira sol dourado



Sexta-feira sol dourado
esperança de solução de todos os problemas
não por à sexta-feira ter morrido cristo
que o poeta aliás comemora a comer bacalhau
ou outro peixe trocado pelos pescadores
que morreram ou morrerão no mar
esse peixe que antes nos chegava directamente
e agora passa pelas mãos do almirante henrique tenreiro
sexta-feira sol dourado
não por à sexta-feira ter morrido cristo
mas por se dispor da semana americana
Agora é que vamos ser felizes
A sexta-feira chega enche-se o peito de ar
a eternidade é não haver papéis
a vida muda vamos contestar
talvez assim se consiga aumentar
a duração média da vida humana
Sexta-feira sol dourado
que alegria ser poeta português
Portugal fica em frente


ruy belo
país possível
todos os poemas II
assírio & alvim
2004






17 outubro 2019

herberto helder / teorema


  

         El-rei D. Pedro, o Cruel, está à janela, sobre a praça onde sobressai a estátua municipal do marquês Sá da Bandeira. Gosto deste rei louco, inocente e brutal. Puseram-me de joelhos, com as mãos amarradas atrás das costas, mas endireito a cabeça, viro o pescoço para o lado esquerdo, e vejo o rosto violento e melancólico do meu pobre Senhor. Por baixo da janela aonde assomou há uma outra, em estilo manuelino, uma relíquia, delicada obra de pedra que resiste ao tempo. D. Pedro deita a vista distraída à praça fechada pelos soldados. Contempla um momento a monstruosa igreja do Seminário, retórica de vidraças e nichos, as pombas pousadas na cabeça e nos braços do marquês, e detêm-se em mim, em baixo, em mim que me ajoelhei no meio de um grupo de soldados. O rei olha-me com simpatia. Fui condenado por assassínio da sua amante favorita, D. Inês. Alguém quis defender-me, alegando que eu era um patriota. Que desejava salvar o Reino da influência castelhana. Tolice. Não me interessa o Reino. Matei-a para salvar o amor do rei. D. Pedro sabe-o. Olho de novo para a janela onde se debruça. Ele diz um gracejo. Toda a gente ri.
       — Preparem-me esse coelho, que tenho fome.
       O rei brinca com o meu nome. O meu apelido é Coelho.
       O que este homem trabalhou pela nossa obra! Fez transportar o cadáver da amante de uma ponta à outra do país, às costas do povo, entre tochas e cantos. Foi um espectáculo sinistro e exaltante através de cidades, vilas e lugarejos.
       Alguém ordena que me levante e agradeça ao meu Senhor. Fico em pé, defronte do edifício. Vejo no rés-do-chão o letreiro da Barbearia Vidigal e o barbeiro de bigode louro que veio à porta assistir ao meu suplício. Distingo também a janela manuelina e o rei esmagado entre os blocos dos dois prédios ao lado.
       — Senhor — digo eu —, agradeço-te a minha morte. E ofereço-te a morte de D. Inês. Isto era preciso, para que o teu amor se salvasse.
       — Muito bem — responde o rei. – Arranquem-lhe o coração pelas costas e tragam-mo.
       De novo me ajoelho entre os pés dos carrascos de um lado para o outro. Ouço as vozes do povo, a sua ingénua excitação. Escolhem-me um sítio das costas para enterrar o punhal. Estremeço. Foi o punhal que entrou na carne e me cortou algumas costelas. Uma pancada de alto a baixo, um sulco frio ao longo do corpo – e vejo o meu coração nas mãos de um carrasco. Um moço do rei espera com a bandeja de prata batida junto à minha cabeça, e nela depõem o coração fumegante. A multidão grita e aplaude; só o rosto de D. Pedro está triste, embora nele brilhe uma súbita luz interior de triunfo. Percebo como tudo está ligado, como é necessário as coisas se completarem. Não tenho medo. Sei que vou para o inferno, visto eu ser um assassino e o meu país ser católico. Matei por amor do amor — e isso é do espírito demoníaco. O rei e a amante são também criaturas infernais. Só a mulher do rei, D. Constança, é do céu. Pudera, com a sua insignificância, a estupidez, o perdão a todas as ofensas. Detesto a rainha.
       O moço sobe a escada com a bandeja onde o meu coração parece um molusco sangrento. D. Pedro volta-se, a bandeja aparece junto ao parapeito da janela. O rei sorri. Ergue o coração na mão direita e mostra-o ao povo. O sangue escorre-lhe entre os dedos e pelo pulso abaixo. Ouvem-se aplausos. Somos um povo bárbaro e puro, e é uma grande responsabilidade encontrar-se alguém à cabeça de um povo assim. Felizmente o rei está à altura do cargo, entende a nossa alma obscura, religiosa, tão próxima da terra. Somos também um povo cheio de fé. Temos fé na guerra, na justiça, na crueldade, no amor, na eternidade. Somos todos loucos.
       Tombei com a face direita sobre a calçada e, movendo os olhos, posso aperceber-me de um pedaço muito azul de céu acima dos telhados. Uma pomba passa diante da janela manuelina. O cláxon de um automóvel expande-se liricamente no ar. Estamos nos começos de junho. Ainda é primavera. A terra está cheia de seiva. A terra é eterna. À minha volta dizem obscenidades. Alguém sugere que me cortem o pénis. Um moço vai pedir autorização ao rei, mas ele recusa.
       — Só o coração — diz. E levanta-o de novo, e depois trinca-o ferozmente. A multidão delira, aclama-o, chama-me assassino, cão, encomenda-me a alma ao Diabo. Eu gostaria de poder agradecer a esta gente bárbara e pura as suas boas palavras violentas.
       Um filete de sangue escorre pelo queixo de D. Pedro, os maxilares movem-se devagar. O rei come o meu coração. O barbeiro saiu do estabelecimento e está agora a meio da praça, com a bata branca, o bigode louro, vendo D. Pedro comer o meu coração cheio da inteligência do amor e da eternidade. O marquês Sá da Bandeira é que ignora tudo, verde e colonialista no alto do plinto de granito. As pombas voam em redor, pousam-lhe na cabeça e nos ombros, e cagam-lhe em cima. D. Pedro retira-se, depois de dizer à multidão algumas palavras sobre crime e justiça. O povo aclama-o mais uma vez, e dispersa. Os soldados também partem. E eu fico só para enfrentar a noite que se aproxima. Esta noite foi feita para nós, para o rei e para mim. Meditaremos. Somos ambos sábios à custa dos nossos crimes e do comum amor à eternidade. O rei estará insone nos seus aposentos, sabendo que amará para sempre a minha vítima. Talvez lhe não termine aí a inspiração. O seu corpo ir-se-á reduzindo à força de fogo interior, e a paixão há-de alastrar pela sua vida, cada vez mais funda e mais pura. E eu também irei crescendo na minha morte, irei crescendo dentro do rei que comeu o meu coração. D. Inês tomou conta das nossas almas. Liberta-se do casulo carnal, transforma-se em luz, em labareda, em nascente viva. Entra nas vozes, nos lugares. Nada é tão incorruptível como a sua morte. No crisol do inferno havemos de ficar os três perenemente límpidos. O povo só terá de receber-nos como alimento, de geração em geração. Que ninguém tenha piedade. E Deus não é chamado para aqui.



herberto helder
os passos em volta
assírio & alvim
2001








16 outubro 2019

luiza neto jorge / os frutos frios por fora



A vida está cada vez mais cara
no meu tempo a vida
era mais em conta
fazia menos calor
as cidades não mudavam de lugar
corria uma brisa, como uma vassoura.

O fruto, um autómato surpreendido.
Desprendeu-se da casca, que viu?
Um autocarro, um avião, um submarino.
Os frutos frios por fora
são por dentro aquecidos a electricidade.
Os frutos davam frutos, flores, brinquedos.

No meu tempo o rio corria limpo
como um corredor novo
nadávamos nus
uns pelo meio dos outros
extraíamos um amante do vulcão mais próximo.

A um dos meus o mais novo
o mais próximo da sua idade
matou-o o fumo!

Vivia-se até à última.
A vida era mais em conta; depois
derramaram-se histórias sobre mim
os olhos de Buda destilavam
penicilina, eram o que se chama uns olhos
divinos.

Nunca mais quero animais
em casa. Morriam os animais
comprava-se veneno, matava-se gente.

Muitos amantes dormindo sobre a lava.
Morríamos em ilhas separadas por
um cordão de rios ininterruptos.
Nem tínhamos idade para ser crianças num
continente.

Havia no meu tempo fábricas
sumptuosas. Onde se fabricava uma constelação
exacta e limpa, um amor sumptuoso e seus afluentes,
e ínfimas máquinas purgatórias.
Fabricava-se mais e melhor que hoje.

Não há respeito por ninguém;
por exemplo o diamante
não tem a utilidade de uma jóia:
é só um diamante (para um asceta)
só um dia amante (para um suicida).
Com uma jóia, sim, compra-se o mundo.

No meu tempo mal se via a terra
às escuras. Uma luz satélite, um olho
artificial,
uma luz de fruto verde frio por fora
operava esse milagre, essa visão.

Meu pai, que se ausentara,
sabia que seu pai ia ser morto.
Estendia-se a roupa sobre o fogo.
Crescia o pão largo como uma
ampola de penicilina, em tempo de guerra
de guerrilhas.




luiza neto jorge
edoi lelia doura,
antologia das vozes comunicantes da poesia portuguesa
organizada por h. helder
assírio & alvim
1985