30 novembro 2012

alberto caeiro / estou louco




Estou louco, é evidente!
Mas que louco é que estou?
É por ser mais sonhador
que gente que sou louco?
Ou é por ter mais completa
a noção de ser pouco?



alberto caeiro


29 novembro 2012

juan ramón jiménez / universo




Teu corpo: ciúmes do céu.
Minhalma: ciúmes do mar.
(Pensa minhalma outro céu.
Teu corpo sonha outro mar.)



 juan ramón jimenéz



28 novembro 2012

casimiro de brito / finis




Se antes de abrir a boca
Já está tudo dito
Deverei abrir a boca?


Enredar-me nas águas
Se o mar consome as areias por toda a parte?


Levantar-me alucinado
Se as nuvens apagam o fogo
Mais cedo ou mais tarde?


Se não há nada para dizer
Onde se acumulam as palavras
Que não foram ditas?



casimiro de brito
poesia do mundo
afrontamento
1995


27 novembro 2012

antonio gamoneda / um bosque abre-se…


  

Um bosque abre-se na memória e o cheiro a resina é útil
ao meu coração. Vi as esferas do suor e os
insectos na doçura;


depois, o crepúsculo em seus olhos;


mais tarde, o cardo a ferver perante o centeio e a fadiga
dos pássaros perseguidos pela luz



antonio gamoneda
livro do frio
trad. de josé bento
assírio & alvim
1999


26 novembro 2012

fernando pessoa / já não me importo




Já não me importo
Até com o que amo ou creio amar.
Sou um navio que chegou a um porto
E cujo movimento é ali estar.

Nada me resta
Do que quis ou achei.
Cheguei da festa
Como fui para lá ou ainda irei

Indiferente
A quem sou ou suponho que mal sou,

Fito a gente
Que me rodeia e sempre rodeou,

Com um olhar
Que, sem o poder ver,
Sei que é sem ar
De olhar a valer.

E só me não cansa
O que a brisa me traz
De súbita mudança
No que nada me faz.



fernando pessoa


25 novembro 2012

josé tolentino mendonça / quatro tiros no coração





Certas manhãs chegava
esmagado pela luz
longo, frívolo, ofensivo
qualquer gesto aludia
a uma espécie de tremor
a tristeza daqueles que não pertencem
a lugar algum

vivia tudo num instante
a solidão, os rancores
as alegrias dos outros
o silêncio do Outono

nunca o amor tocara o seu corpo
com a intensidade do medo
tornou-se parte de um rito
nem perto, nem longe
da palavra justa

ele só pedia
«não me digam nada»




josé tolentino mendonça
baldios
assírio & alvim
1999



24 novembro 2012

antónio barbedo / alexitimia




A dor cessa pelas quatro da manhã.
Acorda mais tarde com
vómitos, borras de café. Em maca,
num quarto diferente. O sangue AB negativo.
Agulha descartável, máscara
de oxigénio. A luz de presença

torna legível – uma existência sem
afectos, a poesia sem  metáforas



antónio barbedo  
encontros de talábriga
festival internacional de poesia de aveiro
1999/2003




23 novembro 2012

fernando alves dos santos / ode



Levantar um homem dum túmulo desprezado;
deixá-lo à minha imagem
tocar no ventre das estátuas
justificando para sempre a queda mitológica das cidades.
Procurar coisa tão pouca
como a minha invenção deserta e ágil
num cigarro de acaso a própria manhã
que entre os dedos levo à minha boca.
Deixar que doa uma gota do meu sangue
e correr
correr
até que os pulsos me rebentem;
tiritar de silêncio
ter raízes que ultrapassem os regaços das mães
fazer de novo a morte no seio das montanhas abertas
e beijar na própria epiderme
a nossa lucidez amatória de universo.




fernando alves dos santos
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998

22 novembro 2012

antónio franco alexandre / agora estou na beira do penhasco...


  
8

agora estou na beira do penhasco e não vou voar
como o sublime bicho estratosférico brilhante
de plumas esmeraldas tentativos braços
apenas eu baço de nenhuma asa debruçado
sobre o vidro de água e em baixo
os corredores, dispostos à partida
em músculos compactos, e deles o mais jovem (vestido

de improváveis azagaias) exclama: é esta
a fonte do trovão!, e aponta
um buraco azul mudo nas paredes da pedra. por fora
de mim regresso ao som silencioso da cidade
onde todos os rostos são o papel com linhas de inventário
e as patas dos homens pousam na larga secretária
e ficam, em relevo, caminhando no sangue, e eu queria
para ti, uma cidade sem mistério,

o gelo transparente onde mergulha a imagem
dos corredores, lançados no velocíssimo sossego sem repouso
das palavras trocadas, das bocas e dos braços misturados
pela luz, que é uma areia movediça,
este saber de nós sem ócio e sem negócio, iguais
às portas do trovão, onde o mais sábio
se lança nu compacto deus do fogo e ri




antónio franco alexandre
poemas
assírio & alvim
1996


21 novembro 2012

antónio gancho / sintaxe




Aonde a planície já não tiver um sentido
e os campos forem já só o horizonte
aí o teu vestido há-de ser cor esmaecido
e sobre ti a minha fronte.
Por te sobre os joelhos uma flor rubra
por te no lugar das pernas o mais amor que me houver
aí onde a flor deixa o pólen
aí o sémen mulher.
Por te sobre o sémen o gemido do teu acto
por te sobre o gemido
a planície sem sentido
aí o teu vestido há-de ser cor esmaecido
por te sobre as pernas me dilato.




antónio gancho
o ar da manhã
assírio & alvim
1995




20 novembro 2012

vinícius de moraes / poema do natal




PARA ISSO fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos ─
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.

Assim será a nossa vida
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos ─
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.

Não há muito que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez, de amor
Uma prece por quem se vai ─
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.

Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação na poesia
Para ver a face da morte ─
De repente nunca mais esperaremos…
Hoje a noite é jovem: da morte, apenas
Nascemos, imensamente.




vinicius de moraes
o poeta apresenta o poeta
cadernos de poesia
publicações dom quixote
1969


19 novembro 2012

sandro penna / cinco breves poesias





1
Talvez a juventude seja isto:
sem arrependimento amar sempre os sentidos.

2
Este corpo que aperto (e me aperta!)
tem um sabor de estrelas e de lodo.
E eu não sei quem agora me tinge
(profundíssimo jogo) de vermelho
as estrelas.

3
Era no cinema, onde as portas
se abrem e fecham continuamente.
Àquele rumor ela pensou
que ele voltasse;
mas não voltou.

4
Fazer do verde prado
um jogo proibido.
Já o tenho tentado.
Sem o conseguir.

5
«Poeta exclusivo do amor»
me chamaram. E era talvez certo.
Mas o vento aqui sobre a erva e os rumores
da cidade longínqua
não são eles também amor?
Sob nuvens quentes
não são ainda o som
de um amor que arde
e não mais se afasta?



sandro penna
vozes da poesia europeia III
traduções de david mourão ferreira
colóquio letras 165
fundação calouste gulbenkian
2003



18 novembro 2012

guillevic / subúrbio


  

A custo de pé se mantêm os muros
Ao longo desta rua
Íngreme, cheia de curvas.

Dir-se-ia que vieram todos, os do bairro,
Enxugar as mãos gordurosas no rebordo das janelas,
Antes de em conjunto penetrarem na festa
Onde parecia cumprir-se o seu destino.

Vê-se um comboio a arrastar-se por cima da rua,
Vêem-se luzes a acender-se,
Vêem-se quartos sem espaço.

Por vezes uma criança chora
Na direcção do futuro.



guillevic
faubourg, terraqué (1942)
vozes da poesia europeia III
traduções de david mourão ferreira
colóquio letras 165
fundação calouste gulbenkian
2003



17 novembro 2012

alexandre o´neill / ao rosto vulgar dos dias




Monstros e homens lado a lado,
Não à margem, mas na própria vida.

Absurdos monstros que circulam
Quase honestamente.

Homens atormentados, divididos, fracos.
Homens fortes, unidos, temperados.

*

Ao rosto vulgar dos dias,
A vida cada vez mais corrente.
As imagens regressam já experimentadas,
Quotidianas, razoáveis, surpreendentes.

*

Imaginar, primeiro, é ver.
Imaginar é conhecer, portanto agir.




alexandre o'neill
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998



16 novembro 2012

gil t. sousa / nirvana


  

9

segue
o sujo marfim
das horas


e chegarás
à loucura dos
santos



gil t. sousa
água forte
2005 





15 novembro 2012

miguel serras pereira / sobre as ervas



Vem sobre as ervas do silêncio
E desperta a tua mão
─  É apenas o espaço sem dedos entre os dedos
de outra mão ausente

na tua mão de silêncio sobre as ervas
no espaço sem mão entre os teus dedos.



miguel serras pereira
trinta embarcações para regressar devagar
relógio d´água
1993



13 novembro 2012

mário cesariny / movimento


  

movimento de alma
silêncio, emoção
de doçura meia,
essa tua palma
sobre a minha mão
o que tem que eu leia?

para lá da floresta
onde as coisas são
sem minha licença,
mais linear que esta
confusa razão
da tua presença

não há outro sim
que não tem dizer
e é mais movimento?
qualquer coisa assim
como um tempo sem fim
como um espaço sem tempo




mário cesariny
manual de prestidigitação
assírio & alvim
1981


12 novembro 2012

herberto helder / ciclo II




  Não sei como dizer-te que minha voz te procura
  e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
  esplêndida e casta.

  Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos
  se enchem de um brilho precioso
  e estremeces como um pensamento chegado. Quando,
  iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
  pelo pressentir de um tempo distante,
  e na terra crescida os homens entoam a vindima
  - eu não sei como dizer-te que cem ideias,
  dentro de mim, te procuram.

  Quando as folhas de melancolia arrefecem com astros
  ao lado do espaço
  e o coração é uma semente inventada
  em seu ascético escuro e em seu turbilhão de um dia,
  tu arrebatas os caminhos da minha solidão
  como se toda a minha casa ardesse pousada na noite.

  - E então não sei o que dizer
  junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
  Quando as crianças acordam nas luas espantadas
  que às vezes se despenham no meio do tempo
  - não sei como dizer-te que a pureza,
  dentro de mim, te procura.

  Durante a primavera inteira aprendo
  os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
  correr do espaço -
  e penso que vou dizer algo cheio de razão,
  mas quando a sombra cai da curva sôfrega
  dos meus lábios, sinto que me falta
  um girassol, uma pedra, uma ave -  qualquer
  coisa extraordinária.

  Porque não sei como dizer-te sem milagres
  Que dentro de mim é o sol, o fruto,
  a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
  o amor,

  que te procuram.



 
herberto helder
poesia toda
assírio & alvim
1996



11 novembro 2012

yorgos seferis / fuga




Não foi outro o nosso amor
fugia tornava a voltar e trazia-nos
uma pálpebra descida muito longínqua
um sorriso
marmóreo, perdido
dentro da erva matutina
uma concha bizarra explicá-la
procurava insistentemente nossa alma.

O nosso amor não foi outro tenteava
quietamente entre as coisas em redor de nós
para explicar porque não queremos morrer
com tanta paixão.

E se nos agarrámos a quadris e se abraçámos
outras nucas com toda a nossa força
e se unimos o nosso hálito com o hálito
dessa pessoa
e se fechámos os nossos olhos, não foi outro
apenas este anseio mais profundo de nos agarrarmos
dentro da fuga.   



yorgos seferis
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães e nikos pratisinis
relógio d´água
1993




10 novembro 2012

valter hugo mãe / ainda pensamos no amor




ainda pensamos no amor
quase só atiçando no
corpo uma loucura pelo
seu próprio
coração

  

valter hugo mãe
a cobrição das filhas
quasi
2001




09 novembro 2012

sylvia plath / medusa





Longe nesta língua de terra de crateras pedregosas,
Olhos revolvidos por paus brancos,
Ouvidos que absorvem as incoerências do mar,
Albergas a tua cabeça sem vida ─ bola de Deus,
Lente de misericórdias,

Os teus parasitas
Fortalecem as suas células descontroladas à sombra da minha
     quilha,
Forçando-me como fazem os corações,
Estigma vermelho mesmo no centro,
Cavalgam na maré agitada até ao ponto mais próximo da partida,

Arrastando os seus cabelos de Jesus,
Será que escapei, pergunto-me.
O meu pensamento vai no vento ter contigo
Meu velho cordão umbilical cheio de lapas, cabo do Atlântico,
Que parece manter-se em miraculoso estado remendado.

Em qualquer caso está sempre lá,
A trémula respiração no fim da linha,
Curva de água crescendo
Diante da minha vara de água, deslumbrante e grata,
Tocando e sorvendo.

Não te chamei.
Não te chamei mesmo.
Todavia, todavia
Tu navegaste até mim por sobre o mar
Gorda e vermelha, placenta

Inibindo a excitação dos amantes.
Brilho de cobra de capelo
Retirando a respiração às campainhas do sangue
Da fúchsia. Eu não podia tomar alento,
Morta e sem dinheiro,

Demasiadamente exposta, como numa radiografia.
Quem pensas que és?
A hóstia da comunhão? A Maria chorona?
Não vou aceitar nenhum bocado do teu corpo,
Garrafa onde vivo,

Sinistro Vaticano.
Estou farta de sal quente.
Vedes como eunucos, os teus desejos
Silvam nos meus pecados.
Fora, fora, tentáculos de enguia!

Não há nada entre nós.
  


sylvia plath
ariel
trad. maria fernanda borges
relógio d´ água
1996


08 novembro 2012

mário-henrique leiria / ida sem volta




Acordar na cidade logo da manhã
e esperar a noite com exactidão
no encontrar do último comboio
que parte conciso para outro dia
sair na estação que é central
de outra cidade já a anoitecer
onde talvez seja o lugar habitual
do vendedor ambulante das sortes
quase grandes
no caminho designadamente antecipado
pelo voo dos pássaros migradores
que agora mesmo se vão de partida
para outra cidade de amanhecer definitivo
e depois da viagem sempre conhecida
da porta em porta na cidade
adormecer ao aviso da madrugada
e esperar o sinal propício indicado
pelo caminho persistente dos peixes
a subir o rio exaustivamente nele
acordar na noite da noite na cidade
até chegar o momento muito matinal
de partir no primeiro comboio efectivo
da manhã de outra cidade a entardecer



mário-henrique leiria
contos do gin tonic
editorial estampa
1973



07 novembro 2012

ana luísa amaral / comunicações


  

Entra por essa porta e vem sentar-te
aqui, como daquela vez em que te disse:
os vulcões são pirâmides de luz,
ou campos cheios de sol iluminado.

Terás morrido, sim, e tanto faz
se a sério, se a fingir, os outros o dirão.
Quanto a mim, és fenómeno de gelo
resistente a calor e primavera.

Entra então neste dia, que o sol
resiste ao brilho mais do que neste mês
lhe resistiu, e eu preciso de luz,
não se vê bem agora, é muito tarde,
as luzes nesta sala são baixas e cruéis.

Toma, uma cadeira boa (como a chama
que chega sinuosa): as formas são castanhas,
em perfeita esquadria, e as costas mais direitas
que um icebergue azul na vertical.

Talvez te diga: pirâmides de luz,
estes vulcões. Ou não.
Se eu não estiver, ou não estiveres em casa,
deixo um bilhete à porta, junto ao Hades,
na esperança de que o cão
o não destrua ─




ana luísa amaral
vozes
dom quixote
2011




06 novembro 2012

tamara kamenzain / freud




“Sigo para a luz”
dizia-me em sonho meu pai morto.
Seu sorriso se esfumava em dupla lonjura,
trazia no entanto uma tranquilidade luminosa:
havia uma mensagem literal
enunciado claríssimo onde a luz é a luz é a luz é a luz
e aonde ir é desdobrar-se em eco
como só um pai sabe fazer
envolve a alma em branco estende uma fronha
e apoia  dos filhos em branco a cabeça
aí escreve premonições futuras
um destino de grandeza uma via régia
que ele firma e confirma como um médico
deixando-nos numa cura formidável
sua desaparição.



tamara kamenzain
o gueto
trad. carlito azevedo e paloma vidal
livros cotovia
2003