24 junho 2018

eugénio de andrade / matéria solar


  

36

Pela manhã de junho é que eu iria
pela última vez.
Iria sem saber onde a estrada leva.

E a sede.




eugénio de andrade
matéria solar
poesia
fundação eugénio de andrade
2000










23 junho 2018

yorgos seferis / siroco 7 levante


                   A.D.I. Antòníu


Coisas que mudaram a forma do nosso rosto
mais fundo que o pensamento e mais
nossas tal como o sangue e mais
afundaram no brasido do meio-dia
por detrás dos mastros.

Entre as cadeias e as ordens
ninguém se lembra.

Os outros dias as outras noites
corpos, dor e prazer
a amargura da nudez humana despedaçada
mais baixa que as plantas do pimento por caminhos de poeira
com tantas fascinações e tantos símbolos
no último ramo;
na sombra do grande barco
sombra a memória.

As mãos que nos tocaram não nos pertencem, apenas
mais fundo, quando as rosas escurecem,
um ritmo na sombra do monte, grilos
humedece o nosso silêncio dentro da noite
procurando o sono do mar
deslizando para o sono do mar.

Na sombra do grande barco
quando rangeu o cabrestante
deixei o afecto aos agiotas.


Pélion, 19 de Agosto de 1935




yorgos seferis
caderno de exercícios
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães
e nikos pratisinis
relógio d´água
1993







22 junho 2018

saint-john perse / canção



*
Nascia um potro sob as folhas de bronze. Um homem pôs bagas amargas nas nossas mãos. Estrangeiro. Que passava. E eis que chegam rumores de outras províncias para meu agrado. «Eu vos saúdo, minha filha, sob a maior árvore do ano.»

*
Pois o sol entra em Leão e o estrangeiro pôs o dedo na boca dos mortos. Estrangeiro. Que ria. E que nos fala de uma erva. Ah! que arejamento nas províncias! Que descontracção nas nossas vias! como o trompete me delicia, e a sábia pluma no escândalo da asa!... «Minha alma, mulher feita, tínheis modos que não são os nossos.»

*
Nasceu um potro sob as folhas de bronze. Um homem pôs estas bagas amargas nas nossas mãos. Estrangeiro. Que passava. E eis um grande rumor numa árvore de bronze. Betume e rosas, dom do canto! Flautas e trovoada pêlos quartos! Ah! quanta descontracção nas nossas vias, ah! quantas histórias ao ano, e o Estrangeiro com os seus modos por todos os caminhos da terra!... «Eu vos saúdo, minha filha, sob o mais belo vestido do ano.»


saint-john perse
habitarei o meu nome
antologia
tradução de joão moita
assírio & alvim
2016





21 junho 2018

rené char / esse fumo que nos levava…




Esse fumo que nos levava era irmão do pau que perturba a pedra e da nuvem que abre o céu. Não nos desprezava, acolhia-nos tal como éramos, delgados regatos alimentados de confusão e esperança, com um ferrolho nas mandíbulas e uma montanha no olhar.



         
rené char
furor e mistério
os leais adversários
trad. margarida vale de gato
relógio d’ água
2000












20 junho 2018

leonor castro nunes e marcos foz / a bifurcação dos ossos




26.

I wonder about the love you can´t find
And I wonder about the loneliness that´s mine
isto num colchão a mil quilómetros
de lonjura perdoável.

Mais fósforo menos fósforo
e um dia fica só o lugar da cama
onde amámos a passagem da luz
de ponta a ponta
e fomos amealhando o crédito
a julgar que nos bastaria para tanto;
um gelado de baunilha um concerto nas escadas
de uma cidade que nos recebesse.



leonor castro nunes
e  marcos foz
a bifurcação dos ossos
do lado esquerdo
2016









19 junho 2018

isabel meyrelles / será a paz, será a guerra?




Será a paz, será a guerra?
Cada um sabe de que inferno vem,
saído da casca de manhã
entre dois braseiros mortais
a regra do jogo é caminhar de mão vazias
a morte dos cisnes é uma aventura sem amanhã
à sombra das pálpebras do deserto
os girassóis viraram-me as costas
relinchando de um terror empoeirado
aquilo que assobia aos meus ouvidos não tem nome
mas eu reconheço-o pelo que ele é
icebergue de sangue
uivando à lua.

Julho, 1985



isabel meyrelles
poesia
le messager des réves (o mensageiro dos sonhos)
tradução de vítor castro
quasi
2004







18 junho 2018

manuel antónio pina / a um homem do passado




Estes são os tempos futuros que temia
o teu coração que mirrou sob pedras,
que podes recear agora tão fundo,
onde não chegam as aflições nem as palavras duras?

Desceste em andamento; afinal era
tudo tão inevitável como o resto.
Viraste-te para o outro lado e sumiram-se
da tua vista os bons e os maus momentos.

Tua ainda tinhas essa porta à mão.
(Aposto que a passaste com uma vénia desdenhosa.)
Agora já não é possível morrer ou,
pelo menos, já não chega fechar os olhos.


manuel antónio pina
voyager
todas as palavras, poesia reunida
assírio & alvim
2012






17 junho 2018

bernardo soares / assim soubesses tu compreender o teu dever…




Assim soubesses tu compreender o teu dever de seres meramente o sonho de um sonhador. Seres apenas o turíbulo da catedral dos devaneios. Talhares os teus gestos nos sonhos, para que fossem apenas janelas abertas para paisagens puras da tua alma. De tal modo arquitectar o teu corpo em arremedos de sonho que não fosse possível ver-te sem pensar n'outra coisa, que lembrasses tudo menos tu própria, que ver-te fosse ouvir música e atravessar, sonâmbulo, grandes paisagens de lagos mortos, vagas florestas silenciosas perdidas no fundo d'outras épocas, onde invisíveis homens diversos vivem sentimentos que não temos.

Eu não te quereria para nada senão para te não ter. Queria que, sonhando eu e se tu aparecesses, eu pudesse imaginar-me ainda sonhando — nem te vendo talvez, mas talvez reparando que o luar enchera de (...) os lagos mortos e que ecos de canções ondeavam subitamente na grande floresta inexplícita, perdida em épocas impensáveis.

A visão de ti seria o leito onde a minha alma adormecesse, criança doente, para sonhar outra vez com outro céu. Falares? Sim mas que ouvir-te fosse não te ouvir mas ver grandes pontes ao luar ligando as duas margens escuras do rio que vai ter ao mar — ao mar onde as caravelas são novas para sempre.



fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
europa-américa
1986







16 junho 2018

edgar allan poe / a queda da casa de usher



O meu coração é um alaúde suspenso:
Mal se lhe toca, ressoa.

De Béranger


Durante um dia inteiro de Outono, dia fuliginoso. Sombrio e mudo, em que as nuvens eram pesadas e baixas no céu, eu atravessava sozinho e a cavalo uma extensão de terra singularmente lúgubre e, enfim, como se aproximavam as sombras da noite, achei-me à vista da melancólica Casa de Usher. Não sei como isto aconteceu – mas, logo ao primeiro olhar que deitei ao edifício, um sentimento de tristeza inultrapassável penetrou-me a alma. Disse inultrapassável porque tal tristeza não era, de modo nenhum, temperada por uma parcela daquele sentimento cuja essência poética cria quase uma volúpia e cuja alma se queda, geralmente, fixa, em face das imagens naturais mais sombrias da desolação e do terror. Fitava o quadro posto à minha frente e, só por ver a casa e a perspectiva característica deste domínio – as paredes que tinham frio – as janelas parecidas com olhos distraídos – alguns ramalhetes de juncos vigorosos – alguns troncos de árvores brancos e definhados – sentia este completo abatimento de alma que, entre as sensações terrestres, não se pode comparar melhor do que ao devaneio oculto do comedor de ópio – ao seu retorno dilacerado à vida diária – à horrível e lenta retirada do véu. Era gelo no coração, um abatimento, um mal-estar – uma irremediável tristeza de pensamento que nenhum agulhão da imaginação podia reanimar nem fazer crescer. O que era, pois – detive-me para pensar nisso – , o que era, pois, esse não sei o quê que assim me enervava ao contemplar a Casa de Usher? Era um mistério completamente insolúvel, e não podia lutar contra os pensamentos tenebrosos que se amontoavam sobre mim enquanto reflectia. Fui forçado a refugiar-me nesta conclusão pouco satisfatória: que existem combinações de objectos naturais muito simples que têm a força de nos afectar deste modo e que a análise desta força reside em considerações onde perderíamos o pé. Era possível, pensava, que uma simples diferença na disposição dos materiais de decoração, dos pormenores do quadro, bastasse para modificar, para aniquilar talvez essa força de impressão dolorosa: e agindo em conformidade com esta ideia, conduzi o cavalo para a borda escarpada  dum lago negro e lúgubre que, espelho imóvel, se estendia em frente do edifício; e fitei – mas com um arrepio ainda mais penetrante do que da primeira vez – as imagens repercutidas e invertidas dos juncos pardacentos, dos troncos de árvores sinistras e das janelas parecidas com olhos sem pensamento.
(…)



edgar allan poe
a queda da casa de usher
trad. de joão costa
editores associados
1973







15 junho 2018

fernando pinto do amaral / escotomas




1.
Uma janela aberta: para lá
do espaço vibra o gelo
e dentro desse gelo vibra o lume
de um súbito segredo cujo sangue
escorre por mim até iluminar
o prazer e a dor
com a mesma certeza. Um relâmpago
liberta e faz pulsar a minha estranha
primeira alma,
essa verdade limpa de memórias,
gravada em milhões de olhos, sempre lá,
no céu da noite, sobre as cintilantes
veias de uma cidade – sobre mim
uma palavra aberta, ainda
antes do tempo,
à flor dos lábios de Deus.



fernando pinto do amaral
às cegas
relógio de água
1997






14 junho 2018

fernando echevarría / não via o que olhava



Não via o que olhava. Via
no pensamento pulsar
uma como que rua a respirar sozinha
e, dentro dela, um cálido animal.
E, por trás de ambos, uma veia tinha
a invisível altura de se doer com tal
inteligência que o azul batia
cumprindo-se em seu limbo de púlpito eficaz.
Não via o que olhava. Mas o animal rompia
a ser. Seu vulto triunfava boreal.



fernando echevarría 
geórgicas
afrontamento
1998








13 junho 2018

vasco graça moura / recitativos




III
saio todos os dias, há um ar levemente
marinho na periferia de agosto,
caminho de memória e reconheço as faces
feridas, os vestígios salinos
nas faces,
e os campos de milho o casario húmido;

se atentasse nos sons
poderia talvez reproduzi-los
de modo inteligível

que vos hei-de mandar, que vos hei-de dizer
senão as tentativas: todos
os dias saio



vasco da graça moura
recitativos
poesia 1963/1995
quetzal editores
2007






12 junho 2018

albert camus / não nos separarmos do mundo.



Maio

Não nos separarmos do mundo. Não se perde a vida quando a colocamos à luz do dia. Todo o meu esforço, em todas as posições e desgraça, as desilusões, é para recuperar os contactos. E mesmo nesta tristeza que há em mim, que desejo de amar e que inebriamento apenas perante a visão de uma colina na aragem do fim da tarde.

Contactos com o verdadeiro, a natureza em primeiro lugar, e depois a arte daqueles que compreenderam, a minha arte se a consigo alcançar. De contrário, a luz e a água e a embriaguez estão na minha frente, e os lábios húmidos do desejo.

Desespero sorridente. Sem saída, mas que exerce sem cessar um domínio que se sabe inútil. O essencial: não nos perdermos, e não perder aquilo que, de nós, dorme no mundo.


albert camus
primeiros cadernos
caderno nr. 1 (maio de 1935-setembro de 1937)
trad. antónio quadros (?)
livros do brasil
1973