14 fevereiro 2013

blaise cendrars / o amor é masoquista



O amor é masoquista.
Esses gritos, essas queixas, essas suaves inquietações,
esse estado de angústia dos apaixonados,
esse estado de expectativa, esse sofrimento latente,
subentendido, apenas manifestado,
essas mil e uma preocupações acerca do ser amado,
essa fugacidade do tempo, essas susceptibilidades,
essas alternâncias de humor, essas divagações,
essas criancices, essa tortura moral
em que a vaidade e o amor-próprio se encontram em jogo,
a honra, a educação, o pudor,
esses altos e baixos do tónus nervoso,
esses desvarios da imaginação, esse feiticismo,
essa precisão cruel dos sentidos
que chicoteiam e que rebuscam,
essa queda, essa prostração,
essa abdicação, esse aviltamento,
essa perca e essa recuperação perpétua da personalidade,
esses embaraços, essas palavras, essas frases,
esse emprego do diminutivo, essa familiaridade,
essas excitações nos contactos,
essa tremura epiléptica, essas recaídas sucessivas e
multiplicadas, essa paixão cada vez mais perturbadora,
tempestuosa e progressivamente devastadora
até à completa inibição,
ao completo aniquilamento da alma,
até à atonia dos sentidos,
até ao esgotamento do tutano,
ao vazio do cérebro,
até à secura do coração,
essa necessidade de prostração, de destruição,
de mutilação, essa necessidade de efusão,
de adoração, de misticismo,
essa insaciabilidade que leva a pedir auxílio à hiper-irritabilidade
das mucosas, ás divagações do gosto,
às desordens vasomotoras ou periféricas
e que apela para o ciúme e para a vingança,
para os crimes, para as mentiras, para as traições,
essa idolatria, essa melancolia incurável,
essa profunda miséria moral,
essa dúvida definitiva e pungente, esse desespero,
todos esses estigmas não constituem porventura os próprios sintomas do amor,
segundo os quais se pode diagnosticar
e seguidamente traçar com mão firme
o quadro clínico do masoquismo?




blaise cendrars
moravagine
trad. e pref. Ruy Belo
livros cotovia
1992



13 fevereiro 2013

edmundo de bettencourt / ar livre





Enquanto os elefantes pela floresta galopavam
no fumo do seu peso,
perto, lá andava ela nua a cavalgar o antílope,
com uma asa direita outra caída.
E a amazona seguia...
e deixava a boca no sumo das laranjas.
Os olhos verdes no mar.
O corpo em a nuvem das alturas
-  a guardadora
da sempre nova faísca incendiária!





edmundo bettencourt
edoi lelia doura,
antologia das vozes comunicantes da poesia portuguesa
organizada por h. helder
assírio & alvim
1985



12 fevereiro 2013

joan-ives casanova / talvez nunca saibamos…





Talvez nunca saibamos reconhecer no calor do bronze
o gesto que as fez crescer entre oliveiras e puros vinhedos
na sombra do vale onde elas ainda dizem o pulsar da água
e a necessidade do movimento a luz amedrontada de um entardecer
 
admiro aqui pequeninas coisas em companhia dessas mulheres
coisas sensíveis como as migalhas de pão na mesa azul
como os rostos amados da serenidade do cair do dia
os que na certa vêm sem que os vejamos chegar
 
fiz-me árvore e sinceridade do alento para os tocar de leve
vi-me estendido próximo da carícia da mão
para me lembrar acabada a obra da rocha que as havia de guardar
e que seria de certo a única imagem enganadora da pele delas
 
olharei a ternura do horizonte com a queimadura dos seus olhos





joan-ives casanòva
poemas
tradução de rosa alice branco
encontros de talábriga




11 fevereiro 2013

pier paolo pasolini / fragmento de carta para o jovem codignola





Querido rapaz, sim, claro, vamos encontrarmo-nos,
mas não esperes nada desse encontro.
Quanto muito, mais uma decepção, mais um
vazio: daqueles que fazem bem
à dignidade narcisista, como uma dor.
Aos quarenta anos sou como era aos dezassete.
Frustrados, o homem de quarenta anos e o rapaz de dezassete
podem, decerto, encontrar-se, balbuciando
ideias convergentes, sobre questões
separadas por dois decénios, uma vida inteira,
mas que aparentemente são as mesmas.
Até que uma palavra, saída das gargantas hesitantes,
paralisada de pranto e vontade de estar só -
lhes revele a disparidade sem remédio.
E, ao mesmo tempo, terei de fazer de poeta
pai, e refugiar-me na ironia
- que te embaraçará: porque o homem de quarenta anos
é mais alegre e mais jovem do que o rapaz de dezassete,
sendo já senhor da sua vida.
Para além desta aparência, deste disfarce,
nada mais tenho a dizer-te.
Sou avarento, o pouco que possuo
está bem fechado neste meu coração diabólico.
E os dois palmos de pele entre a face e o queixo,
por baixo da boca torcida de tanto sorrir
de timidez, e o olhar que perdeu
a sua doçura, como um figo que azedou,
parecer-te-iam o retrato
fiel dessa maturidade que te faz sofrer,
uma maturidade não fraterna. De que pode servir-te
alguém da tua idade - mas entristecido
na magreza que lhe devora a carne?
O que ele deu, está dado, o resto
é árida piedade.




pier paolo pasolini
poemas
de «poesia in forma di rosa»
trad. maria jorge vilar de figueiredo
assírio & alvim
2005



10 fevereiro 2013

erich fried / na capital




"Quem manda aqui?"
perguntei
Responderam:
"O povo, é claro"

Eu disse:
"É claro, o povo
mas quem
manda de facto?"




erich fried
(áustria, 1921-1988)
tradução de m. f. quintão portela




09 fevereiro 2013

alberto caeiro / a água chia no púcaro…


  

A água chia no púcaro que elevo à boca.
«É um som fresco» diz-me quem me dá a bebê-la.
Sorrio. O som é só um som de chiar.
Bebo a água sem ouvir nada com a minha garganta.




alberto caeiro
poemas inconjuntos



08 fevereiro 2013

rui costa / não colher as mãos


não colher as mãos, alimentar os objectos.
tocá-los devagar, deixando o fio correr desde
o ar até à ponta dessa sombra onde repousa
o mundo. tenho a certeza de que algo se
mexe no silêncio. olho uma vez. olho uma vez.
sei que falas com as coisas. que tens um pacto
com as rãs, outros pequenos animais, certos verdes
hereditários gestos. que nem que quisesses me
poderias contar. e sei de tudo limpo e é para ti que
inclino as mãos quando percorro as cidades e as
esqueço. esta pequena saudade é uma floresta
de silêncios. sou capaz de adormecer sobre o fogo.




rui costa
a nuvem prateada das pessoas graves
quasi
2005



07 fevereiro 2013

cecília meireles / fio


  

No fio da respiração,
rola a minha vida monótona,
rola o peso do meu coração.
Tu não vês o jogo perdendo-se
como as palavras de uma canção.
Passas longe, entre nuvens rápidas,
com tantas estrelas na mão...
─  Para que serve o fio trêmulo
em que rola o meu coração?



cecília meireles



06 fevereiro 2013

manuel antónio pina / junto à água





Os homens temem as longas viagens
os ladrões da estrada, as hospedarias,
e temem morrer em frios leitos
e ter sepultura em terra estranha.

Por isso os seus passos os levam
de regresso a casa, às vontades da infância,
ao velho portão em ruínas, à poeira
das primeiras, das únicas lágrimas.

Quantas vezes em
desolados quartos de hotel
esperei em vão que me batesses à porta,
voz da infância, que o teu silêncio me chamasse!

E perdi-vos para sempre entre prédios altos,
sonhos de beleza, e em ruas intermináveis,
e no meio das multidões dos aeroportos.
Agora só quero dormir um sono sem olhos

e sem escuridão, sob um telhado por fim.
À minha volta estilhaça-se
o meu rosto em infinitos espelhos
e desmoronam-se os meus retratos na moldura.

Só quero um sítio onde pousar a cabeça.
Anoitece em todas as cidades do mundo,
acenderam-se as luzes de corredores sonâmbulos
onde o meu coração, falando, vagueia.




manuel antónio pina
um sítio onde pousar a cabeça (1991)
todas as palavras
poesia reunida
assírio & alvim
2012



05 fevereiro 2013

gil t. sousa / troca amorosa




12

de ti
receberia o chão que me faltava

e dava-te,
punha-te janelas no coração



como pudemos ter falhado?





gil t. sousa
água forte
2005



04 fevereiro 2013

antónio ramos rosa / porque não soube merecer




Porque não soube merecer a glória, a mais suave
de me deitar a teu lado
e que o sangue a palavra 
abolisse a diferença entre o meu corpo e a minha voz
porque te perdi 
não sei quem sou



antónio ramos rosa



03 fevereiro 2013

endre kukorelly / um jardim de plantas medicinais



Quando todos os recantos do jardim
estão cintilando à frente, ou
os que ficaram para trás numa funda sombra,
quando o vento começa a agitar todas
as pequenas corolas soltas e todos
os caules escondidos e folhas
pairando caídas, e também a terra,
as pedras, os frutos do jardim que racham nas pedras,
vermelhos ou amarelos, tintos, cor
de mel, as sementes que germinam,
rompem, duras, húmidas, secando
acastanhadas, os mecanismos do
céu e da terra que vagueiam, deambulam,
assustadores, bravios e assustados,
sussurrantes, as asas rasgadas como lençóis
de casinhas de brincar, as patas

tombadas, o estalar das carapaças
azul-esverdeadas, frágeis, e também os corpos
pegajosos, tranluzentes, rasgados
surdamente-agudamente-dolorosamente,
moles e recém-esmagados, mesmo agora:
uma só nervura de brilho leitoso e verde,
isolada e fina como um cabelo
se o vento começa a agitá-la - a superfície

oscila, seca, apodrece, morre
enorme em decomposiçăo,
exala um suspiro de alma.
Alguém olha para cima e no vento este suspiro
sobe um pouco, para depois
se despenhar. Todo o jardim
olha para cima. Só para cima
olhou. Mas de cima o contemplaram.





endre kukorelly
um jardim de plantas medicinais
trad., rev., compl. e apresent. fernando pinto do amaral
poetas em mateus
quetzal
1997

02 fevereiro 2013

helder moura pereira / uma caneta contra os vidros




Eras mesmo a fonte de tudo, pelo menos
naquele dia a que chamámos perfeito.
Os dias tinham-se entranhado nos dias,
a tal ponto que a vida era só dias, dias
a seguir uns aos outros. Apenas dias.
De olhos vendados e sem bater numa única
parede, pegados a isto, ao cheiro reconhecido
só quando um dos corpos se afasta.
Sente-se a falta, eu farejo como um cão
e depois sento-me triste a um canto
com um livro na mão. Mas naquele dia
que ambos classificámos de perfeito
eu pude ver a vida ali desdobrada em duas
à minha frente. E a tua inocência poderosa
a dizer-me uma vez sem exemplo faz
de mim o que quiseres, dobra o cabo
dos trabalhos e atira-te de cabeça.




helder moura pereira
uma caneta contra os vidros
relâmpago
revista de poesia 29-30
out 2011 abril 2012



01 fevereiro 2013

josé gomes ferreira / diário dos dias cruéis




2 de agosto

Nem luz, nem destroços
deixei de passagem…
Nem a minha imagem
no rumor dos poços.
Nem um risco aberto
na cal da parede.
Nem a minha sede
no sol deserto…



josé gomes ferreira
poesia II
diário dos dias cruéis 1939
portugália
1962



31 janeiro 2013

concha garcía / h. h. despede-se





Sou redonda e pouco bela.

A natureza concedeu-me
Uma leve camada de pele
Que se alegra de sol.

Esfolam os animais
dotados varões que nas suas mãos
contabilizam a sorte
num promontório de sábios.

A minha mãe é a mesma da fotografia.
Não se queixa do frio
E lamenta-se das escadas
Que sobe para a igreja
Húmida nos cânticos, lenços
Hasteados. Chora o quarto
Da fotografia. É um poeta
Com vários filhos. Diz
Que quando perdes alguém nunca
É exactamente
A mesma pessoa quem regressa.




concha garcía
la rambla
córdoba
1956
(versão minha)


30 janeiro 2013

salvatore quasimodo / e de repente é noite




Cada um está só sobre o coração da terra
Trespassado por um raio de sol:
E de repente é noite.




salvatore quasimodo 
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de ernesto sampaio
assírio & alvim
2001




29 janeiro 2013

carlos saraiva pinto / valerá a pena escrever a neve




valerá a pena escrever a neve
em carreiros de água,
como se a noite fosse o líquido
que obedece às películas da distância.

a impressão ágil da sombra
que produz o efeito das tílias
e o sossego longínquo
do nada iluminado.

sobre a boca encontrarás
o sinal do silêncio

a sua mãe terrestre
que esquece as ervas,
os socalcos leves
que chegam ao rio
mortos em verbo.

valerá a pena
a asa envolvente do jasmim
o anjo insubmisso do trigo,
ou o espelho sonoro
que guarda a metafísica dos caminhos.

como o céu e o carvalho milenar,
o leito é isento de mágoa,
e a porta dos peregrinos
busca a religião da luz.

ouve e repara a teimosia
do vinhático
em perfumar o ar.

é inútil o tacto da boca.

descerás
pelos campos subterrâneos da névoa
e crescerá em ti
o profano esquecimento de tudo.




carlos saraiva pinto
escrever foi um engano
o correio dos navios
2001



28 janeiro 2013

györgy somlyó / fábula da flor artificial





São tal e qual como as verdadeiras, seria de esperar que falassem.
Simplesmente não falam.
São belas como as verdadeiras rosas.
Mas um pouco mais belas.
Com mais plenitude.
Todas as espécies estão presentes. E cada qual a mais perfeita.
Do pénis do botão fechado aos lábios desabrochados das pétalas.
As que estão semiabertas, as que o estão totalmente.
E a gama das cores do amarelo profundo ao quase branco. 
Iguais hoje àquilo que foram ontem.
E ainda iguais amanhã.                                                                                                  
Ignorando o tempo e dele ignoradas.
Como elas zombam de ti, meu antigo desejo:
Anotar a álgebra de uma rosa do irradiar ao declínio.
 
Não se pode viver com uma rosa que não murcha.




györgy somlyó
poemas
tradução de egito gonçalves



27 janeiro 2013

marguerite yourcenar / e tu, vais-te embora?





e tu,
vais-te embora? vais-te embora?...

não,
não te vais embora: fico contigo…

deixas-me nas mãos a tua alma,
como um casaco.


  


marguerite yourcenar
fogos
trad. de maria da graça morais sarmento
difel
1995



26 janeiro 2013

gabriela mistral / uma palavra




Eu tenho uma palavra na garganta
e não a solto, não me livro dela
ainda que o coice do sangue me empurre.
Se a liberto, incendeia pastagens,
degola cordeiros, faz cair os pássaros.

Tenho que a desprender da minha língua,
encontrar um buraco de castores,
ou sepultá-la com cal e massa
para que não esconda como a alma, o voo.

Não quero dar sinais de que estou viva
enquanto circular pelo meu sangue
e suba e desça pelo meu louco fôlego.
Embora o meu pai Job, ardendo, a tenha dito,
não quero dar-lhe a minha pobre boca
para que não a encontrem as mulheres
que vão ao rio, e se prenda às suas tranças
ou se esfregue e abrace no pobre matagal.

Eu quero lançar-lhe violentas sementes
para que numa noite a cubram e afoguem
sem dela deixar o pó duma sílaba.
Ou cortá-la assim, como a víbora
a meio se corta com os dentes.

E voltar a minha casa, entrar, adormecer,
já cortada, já dela separada,
e acordar depois de dois mil dias,
recém-nascida de sono e esquecimento.

Sem saber mais que tive uma palavra
de iodo e alúmen entre os lábios,
nem me  poder recordar de uma noite,
de uma morada num país alheio,
da armadilha ou viga na porta,
da minha carne a andar sem a sua alma.

  



gabriela mistral
lagar
(versão minha)
santiago do chile
1954 


25 janeiro 2013

luís miguel nava / não muita vez




Não muita vez nos vemos, mas, se poucos
amigos há para falar
dos quais me sirvo de relâmpagos, de todos
é ele o que melhor vai com a minha fome.

Os dedos com que me tocou
persistem sob a pele, onde a memória os move.
Tacteiam, impolutos. Tantas vezes
o suor os traz consigo da memória, que não tenho
na pele poro através
do qual eles não procurem
sair quando transpiro. A pele é o espelho da memória.




luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
onde: a nudez
publicações dom quixote
2002



24 janeiro 2013

hans-ulrich treichel / recaída




De vez em quando uma recaída
na fumarada dos blues,
nos uivos do saxofone
de não sei quem.
De quando em quando um dos livros
que estão em cima do guarda-
-fato. Há dias Camus
caíu-me aos pés. Meu Deus,
que belos tempos, quando tudo
era ainda sem sentido e não
me doíam as cruzes.

  


hans-ulrich treichel
como se fosse a minha vida
trad. colectiva
poetas em mateus
quetzal editores
1994


23 janeiro 2013

cecília meireles / lua adversa




Tenho fases, como a lua
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua...
Perdição da minha vida!
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha


Fases que vão e que vêm,
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.


E roda a melancolia
seu interminável fuso!
Não me encontro com ninguém
(tenho fases, como a lua...)
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua...
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu...



cecília meireles



22 janeiro 2013

antonio gamoneda / geórgica


  

Entre o estrume e o relâmpago escuto o grito do pastor.

Ainda há luz sobre as asas do gavião e eu desço às fogueiras húmidas.

Ouvi o sino da neve, vi o fungo da pureza, criei
o esquecimento.




antonio gamoneda
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de josé bento
assírio & alvim
2001