Eu tenho uma palavra na garganta
e não a solto, não me livro dela
ainda que o coice do sangue me empurre.
Se a liberto, incendeia pastagens,
degola cordeiros, faz cair os pássaros.
Tenho que a desprender da minha língua,
encontrar um buraco de castores,
ou sepultá-la com cal e massa
para que não esconda como a alma, o voo.
Não quero dar sinais de que estou viva
enquanto circular pelo meu sangue
e suba e desça pelo meu louco fôlego.
Embora o meu pai Job, ardendo, a tenha dito,
não quero dar-lhe a minha pobre boca
para que não a encontrem as mulheres
que vão ao rio, e se prenda às suas tranças
ou se esfregue e abrace no pobre matagal.
Eu quero lançar-lhe violentas sementes
para que numa noite a cubram e afoguem
sem dela deixar o pó duma sílaba.
Ou cortá-la assim, como a víbora
a meio se corta com os dentes.
E voltar a minha casa, entrar, adormecer,
já cortada, já dela separada,
e acordar depois de dois mil dias,
recém-nascida de sono e esquecimento.
Sem saber mais que tive uma palavra
de iodo e alúmen entre os lábios,
nem me poder recordar de uma
noite,
de uma morada num país alheio,
da armadilha ou viga na porta,
da minha carne a andar sem a sua alma.
gabriela mistral
lagar
(versão minha)
santiago do chile
1954
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