09 janeiro 2013

maria gabriela llansol / meu deus, agora o amor está sujo




5 de Março de 1995



__________________________________________________________________________ Sandra,


   Meu Deus, agora o amor está sujo. Numa bacia. Sujo, como é possível? Não penses que é uma pergunta, é antes uma não-pergunta, ou o espanto antes da pergunta, o puro lugar do in-compreender. Uma morte,
que voz a traz,
a aproxima de nós e nos enxovalha o olhar?
    Que o sólido existe, existe,     como a natureza vegetal existe. Basta olhar como se decompõe o madeiro da árvore.
    Que o líquido existe, existe,     como a natureza animal existe. Basta ver como se liquefaz um corpo.
   Mas não será preciso, meu amor, tornar mais inteligível, mais percuciente, mais feroz, em suma, mais irradiante, a natureza evanescente, real e vaporosa, das figuras
que sempre fomos,
esses animais magníficos de uivo vibrante,
em vias de extinção?
    Com os olhos, a rapariga que saiu do texto («Não sintas ciúmes! Não há nada disso entre nós!») diz-me que sim, mas com a boca pronuncia:
    ─ Que coisa incompreensível termos vivido com um nome próprio.




maria gabriela llansol
inquérito às quatro confidências
relógio d´água
1996



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