14 abril 2009

álvaro de campos / nunca conheci quem tivesse levado porrada






Nunca conheci quem tivesse levado porrada
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.


E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irresponsavelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida…

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos – mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infama da vileza.






álvaro de campos
poemas
“sê plural como o universo…”
fernando pessoa , antologia

ambar
2008







10 abril 2009

robert musil /sistemas de ilusão







(…) Com uma arte grandiosa e diversa, geramos uma ilusão que nos ajuda a viver paredes meias com as coisas mais monstruosas sem perder a tranquilidade, porque reconhecemos nesses esgares petrificados do universo uma mesa ou uma cadeira, um grito ou um braço estendido, uma velocidade ou um frango assado. Entre um abismo celeste aberto sobre as nossas cabeças e um abismo celeste camuflado sob os nossos pés, somos capazes de nos sentir tão tranquilos à superfície da Terra como num quarto fechado. Sabemos que a vida se perde tanto nas desumanas vastidões do espaço como na desumana estreiteza do mundo dos átomos, mas entre as duas coisas tratamos uma série de configurações como coisas do mundo, sem nos deixarmos minimamente perturbar pela evidência de que isso significa tão-somente uma preferência pelas impressões que captamos a partir de uma certa distância média. Tal comportamento está bastante abaixo das possibilidades do nosso entendimento, mas prova precisamente que os sentimentos desempenham aí um papel decisivo. E com efeito, os mais importantes dispositivos intelectuais da humanidade servem a experiência de um estado de espírito estável, e todos os sentimentos, todas as paixões do mundo são nada frente ao esforço enorme, mas totalmente inconsciente, que a humanidade faz para manter essa sua serena tranquilidade! Quase não vale a pena falar disso, de tal modo o seu funcionamento é impecável. Mas, se virmos mais de perto, é extremamente artificial o estado de consciência que confere ao homem o porte íntegro no meio do sistema dos astros e lhe permite, face ao quase infinito desconhecimento do mundo, meter dignamente a mão entre o segundo e o terceiro botão do casaco. E, para conseguir isso, todo o ser humano, o sábio tal como o idiota, não recorre apenas aos seus artifícios; estes sistemas pessoais de artifícios são também engenhosamente inseridos nos dispositivos de equilíbrio morais e intelectuais da sociedade e da totalidade que, a uma escala maior, servem os mesmos fins. (…)










robert musil
o homem sem qualidades vol. I
tradução de joão barrento
dom quixote
2008

06 abril 2009

maria gabriela llansol / o começo de um livro é precioso






294

Eu estava habituada a vir para casa com um velho amigo
Que me punha a mão nos ombros. Eu raramente tropeçava
Porque dele irradiava o calor das macieiras e a paz das
Tílias. Era a árvore dos meus passos. E, regressando a casa,
Regressava à Paisagem que humana me fazia.






maria gabriela llansol
o começo de um livro é precioso
assírio & alvim
2003





01 abril 2009

wystan hugh auden / o cidadão desconhecido




(A JS/07/M/378 o Estado ergueu este Monumento de Mármore)




Segundo apurou o Instituto de Estatística,
Contra ele nunca existiu qualquer queixa oficial,
E todos os relatórios sobre a sua conduta confirmaram:
No moderno sentido de uma palavra velha, ele era um santo,
Pois em tudo o que fez serviu a Grande Comunidade.
Com excepção da Guerra e até ao dia da reforma,
Trabalhou numa fábrica e nunca foi despedido;sempre satisfez os seus patrões, Máquinas Fraude, Ltda.
Mas não era fura-greves nem tinha opiniões estranhas,
Pois o Sindicato informa que sempre pagou as quotas
(E o seu Sindicato tem a nossa confiança),
E o nosso pessoal de Psicologia Social descobriu
Que ele era popular entre os colegas e gostava de um copo.
A Imprensa não duvida de que comprava um jornal por dia
E que as reacções à publicidade eram cem por cento normais.
Apólices tiradas em seu nome provam que tinha todos os seguros,
Eo Boletim de Saúde mostra que esteve uma vez no hospital e saiu curado.
Tanto o Gabinete de Estudos dos Produtores como o da Qualidade de Vida declaram
Que estava plenamente sensibilizado para as vantagens da Compra a Prestações
E tinha tudo o que é preciso ao Homem Moderno:
Um gira-discos, um rádio, um carro e um frigorífico.
Os nossos inquiridores da Opinião Pública alegraram-se
Por ter as opiniões certas para a época do ano;
Quando havia paz, era pela paz, quando havia guerra, ele ia,
Era casado e aumentou com cinco filhos a população,
O que, diz o nosso Eugenista, era o número certo para um pai da sua geração,
E os nossos professores informam que nunca interferiu com a sua educação.
Era livre? Era feliz? A pergunta é absurda:
Se algo estivesse errado, com certeza teríamos sabido.






wystan hugh auden
leituras, poemas do inglês
tradução de joão ferreira duarte
relógio d´água
1993




24 março 2009

luís miguel nava / os olhos






Sempre que sobre mim poisava os olhos, o olhar dele era o de quem os volta para dentro de si próprio, como se nesse espaço me quisesse aprisionar ou dele, sem que eu sequer o suspeitasse, há muito me tivesse feito residente. Raro era, porém, surgirem sob as pálpebras, no rosto, onde seria de esperar vermo-los, esses olhos. Não o faziam senão quando, como depois veio a ser sabido, até aí com ímpeto os alçava o seu mar interior nas suas cristas.






luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
rebentação
publicações dom quixote
2002




22 março 2009

gil t. sousa / tudo se pode esconder nos olhos...

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3/

tudo se pode esconder nos olhos mais nus. esta descoberta transforma-te e transforma o mundo em que te moves.







gil t. sousa
falso lugar
2004
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20 março 2009

hans-ulrich treichel / esforço







O suor corre
em bica como se eu
cortasse troncos de árvore
e afinal eu só escrevo
um pequeno poema
muito frio







hans-ulrich treichel
como se fosse a minha vida
trad. colectiva
poetas em mateus
quetzal editores
1994




19 março 2009

leopoldo maria panero / conversação




Morrerei em Paris com aguaceiro
são testemunhas os meus ossos umerais
e as minhas omoplatas
” César Vallejo








Caíam e caíam a meus pés generais
e ricos e plebeus
que não quiseram arriscar-se à vida
e todos choravam pela boneca triste
e voltava todos os dias a chorar tremendo
a minha casa
filho do medo, a chorar
pela minha boneca triste.







leopoldo maria panero
conversação
tradução pedro serra
livros cotovia
2001





18 março 2009

gil t. sousa / não há grandes poetas

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2/

não há grandes poetas nem grandes poemas; há palavras que nos agarram no momento certo. só isso.








gil t. sousa
falso lugar
2004






16 março 2009

andre breton e paul éluard / tentativa de simulação da paralisia geral





Minha grande adorada bela como tudo na terra e nas mais belas estrelas da terra que eu adoro minha grande mulher adorada por todos os poderes das estrelas bela com a beleza dos biliões de rainhas que adornam a terra a adoração que tenho pela tua beleza põe-me de joelhos para te suplicar que penses cm mim ponho-me aos teus joelhos adoro a tua beleza pensa em mim tu minha beleza adorável minha grande beleza que adoro faço rolar os diamantes no musgo mais alto que as florestas de que os teus cabelos mais altos pensam em mim — não me esqueças minha mulherzinha nos meus joelhos na altura ao canto da. lareira sobre a areia em esmeralda — olho para ti na minha mão que me serve para me firmar em tudo no mundo para que tu me reconheças por aquilo que sou minha mulher morena-loura minha bela e minha tola pensa em mim nos paraísos com a cabeça nas minhas mãos.
Eu não estava cansado dos cento e cinquenta castelos onde nos íamos amar irão construir-me amanhã outros cem mil cacei das florestas de baobás de teus olhos os pavões as panteras e as aves-liras eu os encerrarei nos meus castelos fortes e iremos passear ambos nas florestas da Ásia da Europa da África da América que rodeiam os nossos castelos nas florestas admiráveis dos teus olhos que estão habituados ao meu esplendor.
Não tens de esperar pela surpresa que te quero fazer pelo teu aniversário que é hoje no mesmo dia que o meu — vou fazer-ta imediatamente pois esperei quinze vezes o ano mil antes de te fazer surpresa de te pedir para pensares em mim às escondidas — quero que penses em mim rindo minha jovem mulher eterna. Contei antes de adormecer nuvens e nuvens de carros cheios de beterrabas para o sol e quero levar-te à noite à praia de astracã que estão prestes a construir com dois horizontes para os teus olhos de petróleo para fazer a guerra eu te levarei por caminhos de diamantes pavimentados de primaveras de esmeraldas e o manto de arminho com que quero cobrir-te é urna ave de rapina os diamantes que teus pés pisarão mandei-os lapidar em forma de borboleta. Pensa em mim que não sonho senão com o teu clarão onde adormece o luxo alegre de uma terra e de todos os astros que conquistei para ti adoro-te e adoro os teus olhos e abri os teus olhos abertos a todos aqueles que viram e darei a todos os seres que os teus olhos viram vestidos de ouro e de cristal vestidos que deverão tirar quando os teus olhos os tiverem embaciado com o seu desprezo. Sangro no meu coração apenas com as iniciais do teu nome num estandarte com iniciais do teu nome que são todas as letras de que o z é a primeira no infinito dos alfabetos e das civilizações onde te amarei ainda pois queres ser minha mulher e pensar em mim nos países onde já não existe termo médio. O meu coração sangra na tua boca e volta a fechar-se na tua boca em todos os castanheiros-rosas da avenida da tua boca onde vamos na poeira deslumbrante deitarmo-nos entre os meteoros da tua beleza que eu adoro minha grande criatura tão bela que eu estou feliz por embelezar os meus tesouros com a tua presença teu pensamento e teu nome que multiplica as facetas do êxtase dos meus tesouros com o teu nome que eu adoro porque encontra um eco em todos os espelhos de beleza do meu esplendor minha mulher original meu andaime de pau-rosa tu és a minha culpa da minha culpa da minha muito grande culpa como Jesus Cristo é a mulher da minha cruz — doze vezes doze mil cento e quarenta e nove vezes te amei com paixão no caminho e estou crucificado ao norte a este a oeste e ao norte pelo teu beijo de rádio e quero-te e és no meu espelho de pérolas o hálito do homem que não te trará à superfície e que te ama na adoração minha mulher deitada de pé quando estás sentada a pentear-te.
Tu virás tu pensas em mim tu virás tu correrás nas tuas treze pernas cheias e em todas as tuas pernas vazias que batem o ar com o baloiçar dos teus braços urna multidão de braços que querem enlaçar-me a mim de joelhos entre as tuas pernas e os teus braços para te enlaçar sem receio de que as minhas locomotivas te impeçam de vir até mim e sigo-te e estou diante de ti para te deter para te dar todas as estrelas do céu num beijo nos olhos todos os beijos do mundo numa estrela sobre a boca.



Bem teu em archote.




P. S. — Queria um botim para a missa com uma corda de nós para marcar as páginas. Traz-me também um estandarte franco-alemão para eu colocar no terreno vago. E uma libra de chocolate Menier com a menina que cola anúncios (já não me lembro). E depois mais nove dessas meninas com os seus advogados e os seus juízes e tu vem no comboio especial com a velocidade da luz e os bandidos do Far-West que me distrairão um minuto que aqui salta infelizmente como as rolhas de champanhe. E um patim. O meu suspensório esquerdo acaba de se partir eu levantava o mundo como uma pena. Podes fazer-me um favor compra um tank quero ver-te chegar como as fadas.








andre breton e paul éluard
as possessões
a imaculada concepção
tradução franco de sousa
estúdios cor
1972




09 março 2009

vergílio ferreira / há um limite para se ser profundo






124 - Há um limite para se ser profundo. Há um limite para se ser subtil. Há um limite para se ser bom observador. Nós temos de nos mover num mundo de limites para a viabilidade de se ser. O limite da profundeza é a escuridão. O da observação é o do microscópio electrónico. Mas tudo no homem é assim. Para lá de certos limites é a confusão, a gratuidade, a loucura. Assim o grande amor se reconhece na morte ou o excesso da razão na confusão ou sofisma ou absurdo ou impensável ou gratuito. Todo o excessivo no homem é desumano ou degenerescência ou vazio. Mas que há de grande no homem senão o excesso de si? E é decerto aí que mora Deus. Ou mais para lá.








vergílio ferreira
escrever
edição de helder godinho
bertrand editora
2001





02 março 2009

josé tolentino mendonça / me and my brother








Percorria os lugares daquela fotografia
a muralha de silvas, a quinta reencontrada
os finais de ano
e aquilo que depois não está
onde antes existiu

Tinha esquecido para que serve
a infância
não é uma terra protectora
ao contrário do que dizem
com os seus céus que vemos cair
os fragmentos selvagens
em que mais tarde pensamos
vezes sem conta
o pudor já então reconhecível
que nos faz trair a vida
um pouco como tudo isto










josé tolentino mendonça
a noite abre meus olhos
(poesia reunida)
assírio & alvim
2006








28 fevereiro 2009

henri michaux / voltar





Hesitei em voltar a casa dos meus pais. Como é que eles fazem quando chove? pensei eu. Depois lembrei-me que havia um tecto no meu quarto. «Não importa!» e, desconfiado, não quis voltar.
É em vão que agora me chamam. Assobiam, assobiam na noite. Mas é em vão que utilizam o silêncio da noite para chegar até mim. É absolutamente em vão.







henri michaux
la nuit remue (1935)
antologia
tradução de margarida vale de gato
relógio d´água
1999