05 abril 2024

aleksandr blok / que difícil é andar entre a gente

 
 
Que difícil é andar entre a gente
A fingir que não se morre,
E neste jogo de trágicas paixões
Confessar que não se viveu ainda.
 
E, perscrutando o pesadelo nocturno, encontrar
Ordem no remoinho confuso dos sentimentos
Para que, no inexpressivo resplendor da are,
Se descubra o mortal incêndio da vida.
 
 
 
aleksandr blok
é por isso que a alegria é mais alta
poemas russos dos séculos vinte e vinte um
versões de luís filipe parrado
contracapa
2022
 



04 abril 2024

paul bowles / tudo o que se lamenta

 
 
 
Quando as raiadas serpentes rastejarem sobre nós
E os nervosos gritos dos pássaros
Calarem todas as fontes e os pomares e quando estes
Prenderem todas as asas
Que esvoaçam no céu
Então uma e outra vez
Arrancarei sorrisos aos passeios do jardim
Transformando as carpas em falcões
As tarântulas e as abelhas
Então uma e outra vez
Destruirei tudo o que se lamenta.
 
 
                                          1929


paul bowles
poemas
trad. josé agostinho baptista
assírio & alvim
2008



 

03 abril 2024

carlos de oliveira / descida aos infernos

 
 
11
 
Mas um dia
a uma hora de crepúsculo qualquer,
quando mais sós nos encontrámos,
raiou de súbito nas praias
um fulgor de fogo.
 
E debruçados sobre os mares
dissemos
que foram feitos
                        não para o abandono
mas para neles florir
a grande e turva flor
desse fogo ainda por abrir.
 
 
 
carlos de oliveira
descida aos infernos
trabalho poético
livraria sá da costa editora
1982





02 abril 2024

louise glück / teoria da memória

 
 
 
Há muito, muito tempo, antes de ser artista com tormentos, afligindo-me o desejo, mas incapaz de formar apegos duradouros, muito antes disto, eu era um glorioso governante que unia todo um país dividido – foi o que me disse uma adivinha que me leu a sina. Há grandes coisas, disse ela, à tua frente, ou talvez atrás de ti: é difícil ter a certeza. E todavia, acrescentou, que diferença faz? Neste preciso instante és uma criança de mão dada com uma adivinha que lê a sina. Tudo o resto é hipótese e sonho.
 
 
 
louise glück
noite virtuosa e fiel
tradução de margarida vale de gato
relógio d´água
2021




01 abril 2024

wislawa szymborska / poça de água

 



 
Recordo bem este medo da infância.
Evitava as poças,
sobretudo as novas, após a chuva.
Afinal, uma delas poderia não ter fundo,
ainda que parecesse igual às outras.
 
Ponho o pé e, de súbito, afundar-me-ei,
voando para baixo,
cada vez mais baixo,
rumo às nuvens reflectidas
ou talvez mais além.
 
Depois a poça secar-se-á,
fechar-se-á por cima de mim,
e eu para sempre trancada – onde –
ficarei com um grito não repercutido à superfície.
 
Só mais tarde compreendi que
nem todas as más aventuras
cabem nas regras do mundo
e mesmo que o quisessem,
não poderiam acontecer.
 
 
 
wislawa szymborska
instante
trad. elzbieta milewska e sérgio neves
relógio d'água
2006
 




31 março 2024

josé tolentino mendonça / do que me lembro

 
 
Lembro-me da música dos lugares a oeste
dos planos para este reino amado
que pretendemos tanto tomar de assalto
antes dos brados do fogo
 
Mas as minhas mãos traziam já
uma sina mais escura, nem a noite
 
Qualquer penumbra serviu
ao meu coração oculto
a miséria do inverno
o treino dos falcões nas escarpas
a glória iludida
em que se consumiu o tempo
 
 
 
josé tolentino mendonça
longe não sabia
presença
1997
 



30 março 2024

daniel faria / explicação das casas

 



 
 
Mesmo no interior do quarto
És o lado de fora da casa
Os inúmeros degraus da casa. A mais antiga
Criança subindo-os um a um
 
 
 
daniel faria
explicação das árvores e de outros animais
fundação manuel leão
1998
 



29 março 2024

joaquín o. gianuzzi / por alguma razão

 



 

 
Comprei café, cigarros, fósforos.
Fumei, bebi
e fiel à minha retórica pessoal
estendi os pés sobre a mesa.
Cinquenta anos e uma convicção de condenado.
Fracassei como quase toda a gente de mansinho;
num bocejo, ao cair da noite, murmurei as minhas decepções,
antes de ir para a cama cuspo na minha sombra.
Esta foi a única resposta que pude oferecer a um mundo
que esperava de mim um estilo que provavelmente não me
correspondia.
Ou talvez fosse outro o motivo. É possível
que tivessem para mim um projecto diferente
em alguma provável lotaria
e o meu número não tenha saído.
É possível que ninguém encontre um destino meramente
                                                                                         privado.
É possível que a vaga da história o encontre por um e por todos.
Resta-me isto.
Um pedaço de vida que me cansou de antemão,
um poema deixado a meio do caminho
em direcção a uma conclusão desconhecida;
um resto de café na chávena
que por alguma razão
nunca me atrevi a investigar a fundo.
 
 
 
joaquín o. gianuzzi
por alguma razão
antologia de poesia argentina
selecção e tradução de hugo miguel santos
contracapa
2024





28 março 2024

josé gomes ferreira / heróicas

 
 
XIX
 
Ouve, primavera: não te atrevas
a sair das rosas para o mundo.
 
Não venhas arrepender de beleza fácil
este meu instinto
– tão contra mim –
de morrer nas barricadas dos outros
pela beleza impossível do futuro.
 
 
 
josé gomes ferreira
heroicas (1936-1937-1938)
poesia I
portugália
1972




27 março 2024

daniel francoy / claridade



 
Se ao menos não houvesse dúvidas:
é aquela hora de bruma e de medo
e a relva, amanhecendo úmida,
tem como raízes vísceras misturadas.
Se ao menos soubéssemos: sob o luar
Joana D´Arc é queimada e ascende
ainda mais translúcida do que a brisa
desfeita pela fuligem – é aquela hora
de árvores inertes e muros ensanguentados.
Se ao menos contemplássemos: arde
a cidade e somos nós os saqueadores,
nós os negros, nós os gregos, nós as troianas
deixadas ao estupro, aterrorizadas
por uma suspeita que jamais se confirma.
O que será esse rumor? Ratos
correndo no forro dos telhados ou torvelinhos
de vento uivando durante a madrugada?
Se ao menos uma palavra nomeasse
a pedra escura queimando o peito –
mas não: é meio-dia, faz sol
e a praça central se afoga em claridade.
 
 
 
daniel francoy
identidade
editora urutau
2016
 




 

26 março 2024

daniel jonas / o vento



 
 
Porque não há nada em vez de tudo? – perguntou
o cientista – Tudo me cansa:
a tentativa, o esforço. O consegui-lo.
Tudo é redondamente inútil:
o desejo, o seu decesso.
O confronto de ideias então
apavora-me. Até mesmo a ideia de
começar a falar,
a indústria de se ganhar algo, o movimento
são desgastantes antes de si.
Tudo é absolutamente a mesma coisa.
Nada conquista nada.
O vento é.
 
 
 
daniel jonas
bisonte
assírio & alvim
2016




 

25 março 2024

josé carlos barros / tantas vezes

 
 
 
Tantas vezes me esperaste em vão
no fundo dos cafés ou numa esquina
da cidade, tantas vezes tantos anos,
que por esses anos eu não entendia
o que esperavas quando me esperavas
quase certa de que nunca chegaria.
Hoje, que já não esperas, sei apenas
que bastava uma promessa tua
igual às minhas doutros dias
para te buscar onde dissesses, mesmo
quase certo de que nunca lá estarias.
 
 
 
josé carlos barros
estação
on y va
2020
 



24 março 2024

miguel-manso / campéstico, paisagens e interiores

 



 

3
 
esquecida sobre a cadeira
a escova do cabelo a que se ensarilharam
desperdícios de reflexão
e untada numa porção de sol
 
pede para tomar conta do poema
 
mas é do outro lado depois
do janelão
no flagício de ruas e telhados entre
frondes e antenas
 
que vemos formar-se a miragem deste texto
diverso de civitas solis
em que se tornou esta varanda coberta
 
mas não se sabe o que venta agora
pelo mundo nem se o que grafamos fará um dia
parte do território
 
escova, Universo
a que soaria o que nunca se dissesse?
 
 
 
miguel-manso
persianas
tinta da china
2015