02 fevereiro 2021

joão miguel fernandes jorge / este ano

 
 
Este ano o verão atravessou
Lisboa. O verão foi invisível.
Atravessou a cidade e os outros
levou do meu corpo
memórias do teu nome.
 
 
 
joão miguel fernandes jorge
à beira do mar de junho
relógio d´água
2019







01 fevereiro 2021

howard altmann / depois de escurecer

 
 
Sou o rapaz que regressa
à mesma prostituta
no mesmo país estrangeiro;
sou esse homem.
 
Sou o rapaz que foge
da mesma verdade
com a mesma máscara;
sou esse homem.
 
Sou o rapaz que pede
o mesmo amor
à mesma mulher;
sou esse homem.
 
Sou o rapaz que esvazia
a mesma massa de água
com a sua mesma massa de reflexões;
sou esse homem.
 
Sou o rapaz que entra
nos mesmos quartos com as mesmas janelas.
E o que dorme na mesma cama à mesma luz;
sou esse homem, sou esse homem.
 
Sou o rapaz que deixa atrás de si
o mesmo eco
com diferentes vozes;
sou esse rapaz, sou esse rapaz.
 
 
 
howard altmann
enquanto uma fina neve cai
trad. eugénia de vasconcellos
guerra & paz
2019

 



31 janeiro 2021

marguerite duras / escrevi durante uma vida inteira

  
13 de abril
 
Escrevi durante uma vida inteira.
Como uma imbecil, fiz isso.
Também não é mau ser assim.
Nunca fui pretensiosa.
Escrever durante uma vida inteira ensina a escrever.
Não salva de nada.
 
 
 
marguerite duras
é tudo (c´est tout)
trad. joão costa
livros do brasil
1999






30 janeiro 2021

wallace stevens / conversa de café

 
 
 
Claro, morremos para sempre.
A vida, então, é em grande parte uma coisa
De acontecer gostar-se, não de ter de.
 
E isso, também, claro, porque é que
Acontece eu gostar de arbustos vermelhos,
Relva cinzenta e céu cinzento-esverdeado?
 
Que mais resta? Mas vermelho,
Cinzento, verde, porquê essas de entre todas?
Isso não é o que eu disse:
 
Não essas de entre todas. Mas essas.
Gosta-se do que acontece gostar-se.
Gosta-se do modo como o vermelho cresce.
 
Não tem nenhuma importância.
Acontecer gostar-se é um
Dos modos como as coisas acontecem calhar.
 
 
 
wallace stevens
ficção suprema
trad. luísa maria lucas queiroz de campos
assírrio & alvim
1991

 




29 janeiro 2021

josé saramago / poema para luís de camões

 
 
Meu amigo, meu espanto, meu convívio,
Quem pudera dizer-te estas grandezas,
Que eu não falo do mar, e o céu é nada
Se nos olhos me cabe.
A terra basta onde o caminho para,
Na figura do corpo está a escala do mundo.
Olho cansado as mãos, o meu trabalho,
E sei, se tanto um homem sabe,
As veredas mais fundas da palavra
E do espaço maior que, por trás dela,
São as terras da alma.
E também sei da luz e da memória,
Das correntes do sangue o desafio
Por cima da fronteira e da diferença.
E a ardência das pedras, a dura combustão
Dos corpos percutidos como sílex,
E as grutas do pavor, onde as sombras
De peixes irreais entram as portas
Da última razão, que se esconde
Sob a névoa confusa do discurso.
E depois o silêncio, e a gravidade
Das estátuas jazentes, repousando,
Não mortas, não geladas, devolvidas
À vida inesperada, descoberta.
E depois, verticais, as labaredas
Ateadas nas fontes como espadas,
E os corpos levantados, as mãos presas,
E o instante dos olhos que se fundem
Na lágrima comum. Assim o caos
Devagar se ordenou entre as estrelas.
 
Eram estas as grandezas que dizia
Ou diria o meu espanto, se dizê-las
Já não fosse este canto.
 
 
 
josé saramago
provavelmente alegria
caminho
1987




28 janeiro 2021

nuno júdice / como aves, cuja passagem

 
 
Como sombras passaram entre nós,
como sombras. Uma vez perante alguns amigos
e desconhecidos, afirmei conhecê-los e citei
os seus nomes. Mas o que então correspondia
a um acto heróico, nada significa
hoje, mesmo entre amigos e desconhecidos.
Só se eu próprio
me tornar uma sombra, e também eu passar
a uma outra vida. Durante algum tempo
alguém falará de mim dizendo «conheci-o»,
ou «há tanto tempo, falei com ele». Mas
em breve outros se tornarão sombras,
e depois outros, até que o meu gesto
se confunda com esses, e todos por fim
se dissipem na obscuridade do tempo
passado.
 

 
nuno júdice
o mecanismo romântico da fragmentação
editorial inova
1975




 

27 janeiro 2021

joão almeida / castelos perigosos

 
 
Sistemas completos
Acordam as coisas
De noite e de dia
 
Não sei quem vive
E quem morre
O vento
E os rafeiros que me guardam
Desfazem as notícias
No perímetro de segurança
 
Vieste de longe para me visitar
E será a última
 
Por isso a nossa mesa é uma encruzilhada
Aberta no canto mais luminoso do quarto
 
E tudo o que dissermos
Será definitivo
 
Sopro
De um deserto inteiro
Um grão de trigo comum.
 
 
 
 
joão almeida
canto skin
língua morta
2019

 



26 janeiro 2021

henrique risques pereira / amanhã vamos todos chorar

 
 
Amanhã vamos todos chorar
e muito depressa
porque temos pressa de chegar ao fim depressa.
 
Hoje falamos
Amanhã viveremos
Hoje lutamos
Amanhã descansaremos
Hoje amamos
Amanhã desculparemos.
 
Amanhã é hoje pensado para além de hoje
Amanhã é a manhã que segue à noite
E a noite faz medos
e tristezas
e lembra velhas melodias
como uma mulher escandalosamente vestida
de vermelho cingido.
 
 
 
henrique risques pereira
transparência do tempo
(poesia)
edição de perfecto e. cuadrado
quasi
2003





25 janeiro 2021

m.ª eloy-garcía / rumor

 
 
O rumor de uma cidade não tem forma de nada
ainda que o vento traga até aqui data e anos
e milhões de palavras
que foram ditas / de ruídos que foram feitos
por outros e se condensaram no ar /
chovem assim verbosgotas de passado acumulado
nucleares presentes que mesmo ao dizer mesmo
disfarçam o seu sentido de passado /
o rumor de uma cidade não tem corpo de soluço
o rumor é a própria cidade acendendo-se
o rumor são milhares de pègadas ao mesmo tempo sobre a erva
e oito milhões e quinhentas mil folhas tocando o chão
 
 
 
 
m.ª eloy-garcía
poesia espanhola, anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000



 

24 janeiro 2021

carlos drummond de andrade / mãos dadas

 
 
Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
 
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.
 
 
 
 
carlos drummond de andrade
65 anos de poesia
o jornal
1989





 

23 janeiro 2021

adília lopes / é preciso pensar

 
 
                         «But I didn’t know to cook, and babies depressed me.»
 
                                                            Sylvia Plath, «The babysitters»
 
 
 
É preciso pensar
em tudo
dos preservativos
às panelas
e há mesmo quem
nos preservativos
veja já as panelas
pensa-se de mais
e não se pensa
de facto.
 
 
 
adilia lopes
caras baratas
antologia
relógio d´água
2004



22 janeiro 2021

daniel faria / costumo poisar os dedos, tactear

  
 
Costumo poisar os dedos, tactear
Até ser o homem que volta para casa
 
Costumo abrir as mãos com o ferrolho da porta
Costumo estendê-las continuamente
 
A rua também passa à minha frente
Cada dia e não sabe quando vens
 
 
 
daniel faria
das inúmeras águas
poesia
quasi
2003




21 janeiro 2021

ibn 'abdûn / regaram-no as chuvas da abastança

 
 
 
regaram-no as chuvas da abastança:
e saudosas frases me vêm à lembrança.
 
cumes cobertos de moitas floridas
de bordados mantos, sendas não esquecidas.
 
como esquecer-me das horas passadas
no tropel louco de ingénuas cavalgadas?
 
ai como era doce esse meu folguedo,
passarinho à toa esvoaçando ledo.
 
dias tão felizes, bordados em flor,
vento em minhas vestes murmurando amor.
 
  
 
ibn 'abdûn
o meu coração é árabe - a poesia luso-árabe
tradução de adalberto alves
assírio & alvim
1999