03 outubro 2020

antonin artaud / renego o coração

 
 
Renego o coração
e também a morte.
 
É sempre por piedade
pelos outros
que nos deixamos meter num esquife,
que nos deixamos enfiar
 
no buraco cavo,
oco de cânfora
e de sangue avermelhado.
 
 
antonin artaud
para acabar de vez com o juízo de deus
e outros textos finais (1946-1948)
trad. pedro eiras
flop
2019




 

02 outubro 2020

luis alberto de cuenca / in illo tempore

 
 
Os teus pais tinham ido não sei onde
e a casa ficara só para nós,
como aquele convento abandonado
do poema de Jaime Gil de Biedma.
Com a música no máximo, fizeste
uma mistura explosiva num jarro
enquanto eu te tirava, docemente,
a roupa da cintura para cima.
Encheste dois copos até ao topo.
Bebemos. Veio aquele riso parvo,
e ficámos com um brilho nos olhos
que sublinhava a nossa juventude,
e então beijámo-nos como nos filmes,
e amámo-nos como nas canções.
 
Quando a realidade era o desejo
e o nosso reino não era deste mundo.
 
 
 
luis alberto de cuenca
a vida em chamas
uma antologia
trad. miguel filipe mochila
língua morta
2018





01 outubro 2020

herberto padilla / às vezes é necessário e obrigatório

 
 
Às vezes é necessário e obrigatório
que um homem morra por um povo,
mas jamais há-de morrer todo um povo
por um só homem.
 
Isto não o escreveu Herberto Padilla, cubano,
mas sim Salvador Espriu, catalão.
O que acontece é que Padilla sabe-o de cor,
gosta de repeti-lo,
juntou-lhe música
e agora cantam-no em coro os seus amigos.
E cantam-no a toda a hora,
tal como Malcolm Lowry toca ukelele.
 
 
 
 
herberto padilla
o universo está pintado à mão
uma antologia fanática
luís filipe parrado
língua morta
2020

 


30 setembro 2020

adam zagajewski / fim de verão

 
O comboio suburbano corria através dos desertos residenciais
como um punhal sedento do coração.
Dos altifalantes chegava a voz dum dos ditadores
e um esquilo saltava de ramo em ramo,
fugindo ao meu olhar.
Fim de Verão, as pesadas pinhas dos cedros.
uma freira num grosso hábito castanho
sorri como alguém que tivesse percebido tudo.
Na oleosa superfície do charco perseguem-se as libélulas,
os barcos navegam de esguelha e afundam-se na púrpura de um sol sonolento,
a canícula toca em cada coisa e em cada pele como um alfandegário.
O carteiro dormita no banco, da carteira em pele
derramam-se as andorinhas das cartas, no relvado derrete-se o gelado,
as toupeiras constroem morros em memória de sombrios heróis,
que ninguém vai conhecer. Árvores escuras erguem-se
sobre nós e, por entre elas, chamas verdes.
Vai-se aproximando Setembro, e a guerra, e a morte.
 
 
 
 
adam zagajewski
sombras de sombras
trad. marco bruno
tinta-da-china
2017



29 setembro 2020

ernesto sampaio / milhares de asas doloridas

 
 
Milhares de asas doloridas
de pequeninos corações a bater
de caudas alisadas por muitos vendavais
onde ainda luzia o sol
de outras latitudes
pairavam no zénite
hesitando se havia ou não
de cair sobre a terra
enquanto nas pessoas
se fundiam os gelos
derrubavam os muros
reconstruíam as quebradas pontes
do idioma e do sorriso
 
Aquele menino perdido na névoa
que ficou a acenar-nos do cais
aponta a giz na lousa:
nada não é a parte
de outra coisa
para encontrar alguém
é preciso partir
 
 
ernesto sampaio
a procura do silêncio
hiena editora
1986







28 setembro 2020

pedro tamen / que quer dizer um ano…

 
 
 
Que quer dizer um ano, ou mês?
Que a minha mão não está no teu cabelo
– nem tê-lo
é ter de vez.
 
 
 
pedro tamen
princípio de sol
circulo de leitores
1982

 







27 setembro 2020

antónio reis / poemas quotidianos

 
42
 
E nós
os conformados
que fazemos
 
compramos livros
gravatas
 
ou separados
morremos
 
 
antónio reis
poemas quotidianos
tinta da china
2017








26 setembro 2020

manuel resende / chico 2

 
 
Morrem à minha volta.
Sem longas doenças, fulminados.
Equipados apenas com o corpo.
Não quiseram que a alma morresse
Antes deles.
 

 
manuel resende
em qualquer lugar
poesia reunida
edições cotovia
2018
 






25 setembro 2020

ana hatherly / 463 tisanas

 
45
 
De cada vez que respiro sei que alternadamente perco e recupero o meu corpo. Depois penso que é na preia-mar da respiração que o meu corpo se forma, nesse intervalo. (Quando as pessoas dormem ou estão no cinema, por exemplo, o ar do recinto fica alternadamente cheio e vazio de corpos!) Respirar o corpo para fora inspirar o corpo para dentro. Eis como a ginástica é uma forma de vampirismo. Penso nisto quando estou na praia olhando um homem deslizar numa prancha de surf por uma onda fora. De repente desequilibra-se e cai. Tudo o que é profundo se revela à superfície.
 
 
 
ana hatherly
463 tisanas
quimera
2006
 




24 setembro 2020

rené char / folhas de hipno

 
 
55
Jamais modelado em definitivo, o homem encobre o seu contrário. Os seus ciclos descrevem diferentes órbitas consoante a sua exposição a determinada situação. E as depressões misteriosas, as inspirações absurdas, surgidas do grande externato crematório, como constranger-se a ignorá-las? Ah, circular generosamente sobre as épocas da casca do fruto, enquanto a amêndoa palpita, livre…
 
 
         
rené char
furor e mistério
folhas de hipno (1943-1944)
trad. margarida vale de gato
relógio d’ água
2000



23 setembro 2020

vergílio ferreira / jovens e nus frente ao mar

 

229 – Jovens e nus frente ao mar, estão presentes em cada célula do seu corpo. Mas a vida que têm é demais para eles e não sabem que fazer dela. Emergem da água rutilantes e riem. Depois deitam-se na areia, gastam o dia e a noite a amar-se, a embebedar-se, a estoirar todo o prazer e forças que têm. E ficam ainda com vida por gastar. É desses sobejos já com bolor que terão de viver depois na velhice.

 

 

vergílio ferreira
escrever
edição de helder godinho
bertrand editora
2001

 

 


22 setembro 2020

gil t. sousa / kodachrome



era assim
como curva de rua alta
ar de coisa presa
à água

tinha mãos
de vento pequeno

e o seu braço no muro
era a sombra
do mundo

a luz desvairava
na cal branca
mas na sua pele
não



gil t. sousa






21 setembro 2020

diogo vaz pinto / posso aprendê-lo


Posso aprendê-lo,
se chove e oiço sem me mexer tanto
ou me dá a sede do que é bebido na terra,
vertido por uma longa memória
até que a sílaba se derrama,
se derreta o ouro com o que num pote fervi
acabando sobre a forma que me apeteça
vivida a sua breve estação, resta
deitar-se como a outro, e aconchegá-lo
com algum veneno no ouvido,
estar a sós, ruindo, num gozo indecente
como o degolado que arrastasse pelos cabelos
a própria cabeça, e esta lhe fosse
lambendo da mão, chupando-lhe dos dedos
o sangue ainda quente leitoso doce



diogo vaz pinto
aurora para os cegos da noite
maldoror
2020