I
Todos os pássaros sossegaram.
As crianças desceram das árvores, guardaram os jogos,
recolheram a casa. Levanto a cabeça e deixo a voz deambular
por dentro deste silêncio de água e de estrelas.
A noite está próxima.
Deixo o corpo escorregar na poeira luminosa.
Acendo um cigarro, ponho-me a falar com o meu fantasma.
Longe daqui, a cidade enfeitou-se com os seus crimes de
néon,
com suas traições... ouço hélices de barcos,
motores... quando um rosto esvoaça ao alcance da mão.
A verdade é que passei a vida a fugir, de cidade em cidade,
com um sussurro cortante nos lábios.
E atravessei cidades e ruas sem nome, estradas, pontes
que ligam uma treva a outra treva.
Caminho como sempre caminhei, dentro de mim
─ rasgando paisagens, sulcando mares, devorando imagens.
O absinto... esse álcool que me permitiu medir o tempo no
movimento dos astros.
E vi a vida como um barco à deriva. Vi esse barco tentar
regressar
ao porto - mas os portos são olhos enormes
que vigiam os oceanos, servem para levarmos o corpo até um
deles e morrer.
A noite está próxima.
Vejo acenderem-se mãos voláteis, e uma sede de poços e de
nomadismo.
Sulco a areia que sitia as cidades para trás abandonadas.
abro fendas na memória, e a noite surge com suas
cidades queimadas, desertas... e o vento... o vento cintila
onde cresce o lobo que me ronda o sono.
Estendo a mão, pego no revólver, mas nada acontece.
De nada me serviria inventar outra vez o rio das palavras,
de nada me serviria saber a geometria exacta dos
cristais, ou redesenhar o corpo e aperfeiçoá-lo.
Fico assim, inerte, à beira da noite... olhando o brilho da
lua jorrando águas.
O regresso nunca foi possível. - O verdadeiro fugitivo não
regressa,
não sabe regressar, reduz os continentes a distâncias
mentais.
Aprende a fala dos outros - e, por cima dele, as
constelações vão esboçando
o tormentoso destino dos homens.
Pressinto uma sombra, a envolver-me. Ouço músicas...
espirais de som subindo aos subúrbios da alma.
E acendo o lume das pirâmides, onde o tempo não foi
inventado,
e renego a alegria.
Não semearei o meu desgosto, por onde passar.
Nem as minhas traições.
al berto
filhos de rimbaud
revista ler
abril de 1997