21 abril 2005

quatro estações #crónicas de primavera

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acordei perplexa
como quem retém
a esperança no olhar
mesmo na margem
aparente do dia
envolvi-me no perfume
da madrugada difusa
e matizada de serenidade

anónima esperei por ti
na entrada da primavera,
e passo a passo
sei que chegas
pontualmente engalanada
exuberante de colorações

retorna o encanto
ressoa a imaginação
resiste assim a eternidade

as horas fluem pelo dia
com o cântico dos pássaros

deixo-te que abarques
este coração
que te aninhes nas recordações
onde a beleza se fixa
onde as paisagens são
horizontes emocionais.

abrigo no corpo o desejo...
emanado de ti
como uma sombra qualquer


l.maltez

05 abril 2005

quatro estações #crónicas de primavera

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Cambodian Snake(156x216) Rodin


monólogo de Molly Bloom


eu adoro as flores
gostava tanto de ter a casa toda a nadar em rosas
meu Deus do céu
não há nada no mundo como a natureza
as montanhas selvagens
e depois o mar as ondas em tropel
a beleza da planície com os campos de aveia e trigo
os animais pra cá e pra lá tão bonitos
só ia fazer bem à alma
ver os rios os lagos e as flores
e as cores a saltarem dos regatos
e formas de toda a espécie
de todos os feitios e cheiros
primaveras e violetas
é a natureza é o que é
quanto a esses que dizem que Deus não existe
não dou um tusto pela sua sabedoria
porque é que não vão e criam alguma coisa
já lhes perguntei muitas vezes
ateus ou sei lá bem como se chamam
que primeiro tratem de se lavar dos seus podres
depois mandam chamar o padre aos berros
quando estão a morrer
e por quê
por quê
porque têm pavor do inferno por causa da consciência pesada
ah sim
conheço-os muito bem a esses
quem foi a primeira pessoa do universo
antes que existisse qualquer outra
quem fez tudo isso
quem
ah isso não sabem eles
e nem eu sei
assim é
assim está
eles podiam proibir o sol de nascer amanhã de manhã
o sol brilha é por tua causa
foi o que ele me disse no dia em que nos deitámos sobre o rododendros
no promontório de Howth.
com o seu fato cinzento chapéu de palha
no dia em que o levei a falar de casamento
foi
antes passei-lhe com a boca um bolinho-de-cheiro
era um ano bissexto também
há 16 anos meu Deus
depois daquele beijo que nunca há-de acabar
e que quase me deixou sufocada
sim
ele disse-me que eu era uma flor da montanha
sim
é isso mesmo
somos completamente flores
o corpo todo da mulher
sim
essa foi uma verdade que ele disse na vida
hoje o sol brilha por tua causa
sim
foi por isso que eu gostei dele
porque vi que ele percebia
ou sentia o que é uma mulher
e eu sabia que podia fazer dele o que eu quisesse
e fui-lhe dando todo o prazer que podia
para o obrigar a pedir-me pra dizer sim
e eu não queria responder
e fiquei só a olhar, para o mar e para o céu
e a pensar em muitas coisas de que ele nada sabia
em Mulvey e Mr. Stanhope e Hester
e no meu pai
no velho Capitão Grovés
nos marinheiros que brincavam ao sai-coelho
como se dizia lá no cais
e no sentinela na frente da casa do governador
com aquela coisa em volta do capacete branco
pobre diabo meio assado
e as moças espanholas a rir nos seus xailes
e nos seus travessões grandes
e os pregões da manhã
os gregos os judeus os árabes
e o diabo sabe lá quem mais
de todos os cantos da Europa
e a Rua do Duque
e a feira de aves todas a cacarejar defronte a Larby Sharon
os burricos coitados a escorregarem cheios de sono
e os vagabundos a dormitarem nas suas mantas nos degraus
na sombra
e as rodas enormes dos carros-de-bois
e o castelo velho de milhares de anos
sim
e aqueles mouros lindos todos de branco e turbantes
como reis
pedindo-nos que nos sentássemos nas suas lojinhas pequeninas
e Ronda com as velhas janelas das pousadas
olhos a faiscar vislumbrados
escondidos para o amante beijar o ferro
e as tabernas meio abertas durante a noite
e as castanholas
e a noite em que perdemos o barco em Algeciras
o vigia que sereno fazia a ronda com a sua lanterna
e oh aquela tremenda corrente lá no fundo
oh
e o mar
o mar às vezes escarlate como fogo
e os poentes fabulosos
e as figueiras nos jardins da Alameda
sim
e todas aquelas ruazinhas estranhas
e as casas rosa e azuis e amarelas
e os jasmins e os gerânios e os cactos
e Gibraltar eu era rapariguinha
onde eu era uma Flor da montanha
sim
quando eu punha a rosa no meu cabelo
como via fazer as raparigas andaluzas
sim
vou usar um vestido vermelho
sim
como ele me beijou contra a muralha mourisca
e eu pensei tanto me faz ser ele como qualquer outro
e então pedi-lhe com os olhos pra me pedir outra vez
sim
e então ele perguntou-me se eu quereria
sim
dizer sim
minha flor da montanha
e primeiro eu passei os meus braços em torno dele
sim
e puxei-o para mim para que sentisse os meus seios só perfume
sim
e o coração dele batia loucamente
e sim
disse eu
sim eu quero
Sim




James Joyce
Do Monólogo de Molly Bloom
in Ulisses.
Texto adaptado
a partir da tradução de António Houaiss

28 março 2005

quatro estações #crónicas de inverno

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19:40


o relógio da estação marcava
dezanove e quarenta

um alto e entroncado homem
sorria de um dos lados da linha

todos os dias

do outro sorria uma mulher
com os seus dezanove
e quarenta anos

a reter, os brincos da mulher
estridentes de silêncio

e as botas dele
invulgarmente mudas

a dilecção dela
eram homens pontuais

a dele mulheres
sorridentes ao silêncio

dia dezanove de um mês
invernoso
do ano de quarenta

de um lado da linha
não havia vislumbre
de mulher ou homem

e do outro
também não



nuno travanca

23 março 2005

Johann Sebastian Bach (1685-1750)

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O teatro das paixões

"A partir das primeiras manifestações musicais medievais, o relato da Paixão está estreitamente ligado a uma ideia de representação (dramas litúrgicos, representações sacras, ofícios dramáticos) frequentemente sugerida pela cenografia das monumentais catedrais góticas. Por outro lado, como testemunham inúmeros quadros e esculturas (pensemos sobretudo nos que enfeitam os altares-mor e as capelas das igrejas do Norte da Europa), o tema da Paixão sugere imediatas conotações teatrais: para a liturgia católica, nos ritos de Sexta-feira e de Sábado Santos, assim como do Caminho da Cruz, além das celebrações populares da Semana Santa. Em terra protestante, sob o estímulo de uma religião que punha em primeiro plano a participação colectiva na oração, a evocação da Paixão manteve o sentido de ‘representação”, de teatro. Talvez o teatro musical alemão, do qual se considera que os Singspiel são os seus primeiros exemplos, não se tenha desenvolvido antes porque tinha o suficiente com as paixões: a transferência dos modos melodramáticos nestas partituras, que depois de Bach se torna hábito, parece confirmá-lo."

In Clássica vol. I, Edições Orbis, Sa 1983


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St Matthew Passion (1727) BWV244

Choir and Orchestra
Composer: Johann Sebastian Bach
Conductor: Philippe Herreweghe
Performer: Ian Bostridge, Andreas Scholl, et al.
Ensemble: Dietrich Henschel
Label: Harmonia Mundi
Catalog: #951676
Audio CD (November 16, 1999)
Number of Discs: 4
ASIN: B00002R0ZL

22 março 2005

um poema de: Lawrence Ferlinghetti



Café Notre Dame


Uma espécie de trauma sexual
prende um casal abismado
Ele está segurando as duas mãos dela
nas suas
Ela está beijando as mãos dele
Estão olhando-se
nos olhos
de muito perto
Ela tem um casaco de peles
feito duma centena de coelhos correndo
Ele
tem um casaco clássico sombrio
e calças cinza-de-pardo
Agora estão a examinar as palmas
das mãos um do outro
como se fossem mapas de Paris
ou do mundo
como se estivessem à procura do Metro
que os levasse juntos
através dos caminhos subterrâneos
através das «estações do desejo»
até ao terminal do amor
até às portas da cidade-luz
É um caso sem saída
e estão perdidos
nas linhas cruzadas
das suas palmas enlaçadas
suas linhas de cabeça e linhas de coração
suas linhas de sorte e linhas de vida
ilegíveis e misturadas
no mons veneris
da sua paixão




Lawrence Ferlinghetti
In “A boca da verdade”, Antologia Portuguesa
Trad. André e Isabelle Lima
1986






18 março 2005

quatro estações #crónicas de inverno

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trinity park, queen street west


a ave



a ave quadrangular que me povoa os dias sem chuva
me arrasta pelos desertos sem principezinho
nem raposa vermelha
me devora o pescoço em haustos de carnívoro
e o fígado fere na sua fome
insaciável


a ave que ainda não derrotei nos meus pesadelos
de habitante único desta imensa ilha
chamada solidão


esta ave é o meu único companheiro
de longas penas azuis do céu
de garras de prata olhos de negro diamante


com ela subsisto morrendo
sem ela não existo





m. f. s.


17 março 2005

flowers, flowers, flowers



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Flowers, Flowers, Flowers
Andy Warhol
The Andy Warhol Foundation
for the Visual Arts, Inc.
1996

09 março 2005

quatro estações #crónicas de inverno



Jardim no Inverno



Num Jardim morto, aqui...
Jazem feias massas de cores,
Imobilizado permaneço enfim,
Ó Jardim onde passeavam amores...

Aqui, onde o frio me abraça,
Do tempo ainda banhado em dureza,
Mas ali no banco vazio sem graça,
Onde a paixão mostrava a sua raça

Sob o olhar belo desta natureza...
Neste jardim agora o Inverno é triste,
Quase a nascer está de certeza,
Sonho do amor que não existe...

Este jardim em mim agora,
Causa estranheza...




Artur Rebelo


28 fevereiro 2005

book zapping #005 maria gabriela Llansol

o raio sobre o lápis




V

a conclusão de que não há abismo, e que a infância não
pára de desenvolver-se e crescer,
é um novo princípio de realidade, de morte, de velhice:
eu não deixo de viver no mundo interior e exterior das
metamorfoses flutuantes; é já dia, mas a noite que con-
duz a esperança no pensamento, e sobre si própria, não
acabou.
Não acabou definitivamente;
onde estará, protegendo-se da luz, o sapo que brilha?
Eu tenho a intuição, Aramis, de que os monstros
são as tentativas mais puras do Universo.
«Olha-os, e não os mates.»




O Raio Sobre o Lápis
de Maria Gabriela Llansol
desenhos de Julião Sarmento
Assírio & Alvim
Novembro de 2004

17 fevereiro 2005

quatro estações #crónicas de inverno


beautiful solitude


manhãs frias




morrer lentamente
encostado às manhãs frias


com cheiro pestífero de corpos humedecidos
pelos fumos das noites ardidas


os ruídos entram pelas frinchas
e raspam as paredes macilentas
do quarto tíbio


sinuosas sombras bailam no silêncio
alteradas pelo ensejo


só, assumidamente
parei na fria manhã de qualquer lugar
expulsa de saudades


o rapaz que atravessa a rua
ausente das horas leves
mergulha no tempo vazio, sem nexo
como se carregasse o peso do dia


a respiração arrasta-se
pelas esquinas
num regresso ao isolamento


uma voz embalada enegrece na manhã



l.maltez



04 fevereiro 2005

polaróide mínima #003


Rui Knopfli, fotografia de João Vilhena, Revista LER

Memória Consentida, Rui Knopfli

Toda a poesia é a consumação em escrita de emoções limadas pelo sentimento, pela imaginação e pela experiência que se resolvem numa imagem, ou em imagens, e a que chamamos poema. Imagem é o que apresenta instantaneamente um complexo intelectual e emocional (1) e pode ser obscura ou enigmática, não porque o poeta se pretenda inacessível, mas porque o mundo poético é gerador de absolutos de que ele apenas é o comentador.
A poesia de Knopfli é dramática, encena vezes sem conta o mundo, o tempo, o amor e a morte. Vive de raízes largadas (indestrutíveis) na terra africana, excelência de mistérios e de apelos a uma liberdade que vem do mais profundo da nossa memória e que grita insistentemente o seu direito a ser consentida nos outros lugares e nas outras pessoas.
Liberdade absurda, como a luz, que o autor reinterpreta num ritual de melancolia, dividido na incompreensão do sentimento de perda, de que é feita a vida, e no sofrimento/prazer que a memória provoca ao trazer para a luz aquilo que já é escuridão. Passado e presente em fragmentos que estilhaçam a alma até uma tristeza profunda, que apenas se resolve pela evocação, que só se exorciza quando as palavras, muito mais fortes que a memória, ficam no lugar dos rios, no lugar dos sonhos, muito mais eternas, muito mais vastas que qualquer espaço de desejo ou de amor.
Mesmo quando se trata de “palavras encardidas e magoadas” (2) de que se serve de igual modo para dar visibilidade (contar) ao seu sonho duma História heróica e épica, de síntese portuguesa, vivida desde há cinco séculos pelas gentes, presentes ao encontro que o Tempo havia, desde o princípio de tudo, marcado com Portugal.
Rui Knopfli nasceu em 10 de Agosto de 1932 em Inhambane, Moçambique, onde viveu até Março de 1975, fixando—se posteriormente em Londres. A sua obra denota múltiplas raízes europeias, clássicas e modernas, apesar da componente especificamente moçambicana.
Escreveu “O País dos Outros”, 1959; “Reino Submarino 1962; “Máquina de Areia”, 1964; “Mangas Verdes com Sal”, 1969; "A Ilha de Próspero”, 1972 e “O Escriba Acocorado”, 1978; "Memória Consentida", 1982 e "O Corpo de Atena" de 1984.
O seu discurso caracteriza—se por um cinzentismo de imagens que é o pano de fundo de toda a sua poesia. Descrente, longe dos arrebatamentos que transformam a “praga da vida” em explosões de luz, escreve—nos sempre sob um espaço pleno de vazio, notas pardas exalando apenas tons de agonia crepuscular (3) . Colhendo influências significativas em T.S.Elliot, quer temáticas, quer estilísticas, a sua “metáfora é elegante e mortífera de uma decomposição lenta e agónica” (4). Longe do consenso da crítica (5), não se pode, no entanto, deixar de considerar a sua obra de relevante no contexto das várias literaturas de língua portuguesa.

gil t. sousa
Maio de 1995

Notas:
(1) Ezra Pound, in Poetry, Março de 1913
(2) in Mangas Verdes com Sal, Lourenço Marques, 1969, 2 edição, Minerva Central, 1972, pág. 21
(3) cf. Reino Submarino, pág.94
(4) Eugénio Lisboa,in “A Voz Ciciada (Ensaio de leitura da poesia de Rui Knopfil Lx. Agosto 1977
(5) Ver Alfredo Margarido, Estudos sobre literaturas das nações africanas de língua portuguesa, Col. “ensaios, Regra do Jogo, 1980, pp.479—5l0


Três poemas de “Memória Consentida” (1982)


Gritarás o meu nome

Gritarás o meu nome em ruas
desertas e a tua voz será
como a do vento sobre a areia:
um som inútil de encontro ao silêncio.

Não responderei ao teu apelo,
embora ardentemente o deseje.
O lugar onde moro é um obscuro
lugar de pedra e mudez:

não há palavras que o alcancem.
gelam-lhe os gritos por fora.
Serei como as areias que escutam
o vento e apenas estremecem.

Gritarás o meu nome em ruas
desertas e a tua voz ouvirá
o próprio som sem entender,
como o vento, o beijo da areia.

Teu grito encontrará somente
a angústia do grito ampliado,
vento e areia. Gritarás o meu
nome em ruas desertas.


Sem nada de meu

Dei-me inteiro. Os outros
fazem o mundo (ou crêem
que fazem). Eu sento-me
na cancela, sem nada
de meu e tenho um sorriso
triste e uma gota
de ternura branda no olhar.
Dei-me inteiro. Sobram-me
coração, vísceras e um corpo.
Com isso vou vivendo.


Mania do suicídio


Às vezes tenho desejos
de me aproximar serenamente
da linha dos eléctricos
e me estender sobre o asfalto
com a garganta pousada no carril polido.
Estamos cansados
e inquietam-nos trinta e um
problemas desencontrados.
Não tenho coragem de pedir emprestados
os duzentos escudos
e suportar o peso de todas as outras cangas.
Também não quero morrer
definitivamente.
Só queria estar morto até que isto tudo
passasse.
Morrer periodicamente.
Acabarei por pedir os duzentos escudos
e suportar todas as cangas.
De resto, na minha terra
não há eléctricos.


29 janeiro 2005

quatro estações #crónicas de inverno




automatic winter

quem se importa se não vens pela estrada, ou se o teu nome é muito longe como a sombra? hoje abri as mãos enquanto o sul me fugia em pássaros sob a lua. há árvores tão lentas neste Inverno e passos mudos, água nos caminhos do espelho.

tu não estás, não estás lentamente, nem sobre os telhados, nem mais longe como o forte querer que a neve caia e tudo apague como se apagava o mundo quando docemente um beijo nos explodia no meio da solidão.



gil t sousa

18 janeiro 2005

book zapping #004 henri michaux


(...)

Mais tarde, procurados em todos os pon-
tos do Império do Meio, os caracteres de
outrora, cuidadosamente reunidos, recopia-
dos, foram interpretados pelos letrados.
Surgia um inventário, um dicionário dos si-
nais de origem.

Recuperados!
e recuperava-se ao mesmo tempo a emoção
das calmas e serenas e ternas primeiras cali-
grafias.

Os caracteres ressuscitados na sua inten-
ção primeira reviviam.


A essa luz qualquer página escrita, qual-
quer superfície coberta de caracteres, torna-
-se fervilhante e transbordante... cheia de
coisas, de vidas, de tudo o que há no mun-
do... no mundo da China


cheia de luas, cheia de corações, cheia de
portas
cheia de homens que se inclinam
que se retiram, que se querem mal, que fazem
a paz
cheia de obstáculos
cheia de mãos direitas, de mãos esquerdas
de mãos que se apertam, que se respondem,
que se ligam para sempre
cheia de mãos frente a frente,
de mãos na defensiva, de mãos ocupadas
cheia de manhãs
cheia de portas
cheia de água caindo gota a gota das nuvens
cheia de barcas que atravessam de uma mar-
gem à outra
cheia de aterros
cheia de forjas
e d’arcos e de fugitivos
e cheia de calamidades
e cheia de ladrões levando debaixo do braço
os objectos roubados
e cheia de cobiças
e cheia de nuvens
e cheia também de palavras sinceras
e cheia de reuniões
e cheia de crianças que nascem penteadas
e cheia de buracos na terra
e de umbigos no corpo
e cheia de crâneos
e cheia de fossas
e cheia de aves migratórias,
e cheia de recém-nascidos — quantos re-
cém-nascidos! —
e cheia de metais nas profundezas do solo
e cheia de terras virgens
e de vapores que sobem dos prados e dos
pântanos
e cheia de dragões
cheia de demónios que vagueiam pelos
campos
e cheia de tudo o que existe no universo
tal qual ou disposto de outra maneira
escolhido de propósito pelo inventor de si-
nais para estar junto
cenas para fazer pensar
cenas de toda a espécie
cenas para oferecer um sentido, para ofere-
cer vários,
para propô-los ao espírito
para deixá-los emanar
grupos para resultar em ideias
ou para se resolver em poesia.



Ideogramas na China
Henri Michaux
Trad. Ernesto Sampaio
Cotovia / Fundação Oriente
1999