09 abril 2025

primo levi / aos amigos

 
 
Caros amigos, aqui digo amigos
No sentido mais amplo da palavra:
Mulher, irmã, camaradas, parentes,
Pessoas vistas uma só vez,
Ou com quem se conviveu toda a vida:
Contanto que entre nós, pelo menos um momento,
Se tenha estendido um segmento,
Uma corda bem definida.
 
A vocês vos digo, companheiros de um caminho
Denso, não poupado a trabalhos,
E também a vocês, que perderam
A alma, o ânimo, a vontade de viver.
Ou a ninguém, ou alguém ou talvez só a um, ou a ti
Que me lês: lembra o tempo,
Antes da cera endurecida,
Em que cada um era como um sinete.
Entre nós cada um traz a marca
Do amigo encontrado no caminho;
Em cada um o rasto de cada um.
Para o bem e para o mal
Em sageza ou em folia
Cada um estampado em cada um.
 
Agora que o tempo urge apressado,
Que as tarefas terminaram,
A todos faço o humilde voto
De que o Outono seja longo e brando.
 
16 de Dezembro, 1985
 
 
 
primo levi
a uma hora incerta
trad. rui miguel ribeiro
edições do saguão
2024




 

08 abril 2025

paul celan / flor

 
 
A pedra.
A pedra no ar, que segui.
O teu olhar, tão cego como a pedra.
 
Nós fomos
mãos,
esvaziámos a treva, encontrámos
a palavra, que subia do Verão:
flor.
 
Flor – uma palavra de cegos.
Os teus olhos e os meus olhos:
vão em busca
de água.
 
Crescimento.
folha a folha acrescenta
as paredes do coração.
 
Uma palavra ainda, como esta, e os martelos
rodopiam ao ar livre.
 
 
 
paul celan
sete rosas mais tarde
antologia poética
trad. joão barrento e y. k. centeno
relógio d´água
2023




07 abril 2025

zbigniew herbert / a aldrava

 
 
 
Há quem cultive um jardim
na cabeça
e seus cabelos sejam veredas
para cidades soalheiras e brancas
 
é-lhes fácil escrever
fecham os olhos
e da testa já escorrem
cardumes de imagens
 
minha imaginação
é um pedaço de tábua
e meu único instrumento
é uma vara de pau
 
bato na tábua
e ela responde-me
sim-sim
não-não
 
outros têm o sino verde da árvore
o sino azul da água
eu tenho a aldrava
de jardins desprotegidos
 
bato na tábua
e ela sussurra
um poema árido de moralista
sim-sim
não-não
 
 
 
zbigniew herbert 
poesia quase toda
tradução de teresa fernandes swiatkiewicz
cavalo de ferro
2024





 

06 abril 2025

antonio moreno / geografia II

 
 
 
Debaixo do ardor do meio-dia o canto
que enevoa o pensamento
bulício das cigarras e do estio.
Onde estão as ideias que ateavam
o mundo e, junto dele, o vigor,
a antiga forma de olhar em redor?
Ali, onde antes tive certezas
como torres com que alcançar as coisas,
um espaço de figueiras amadurecidas,
um legado de terra se estende para mim.
Percorro com os olhos o seu silêncio
enquanto se afirma paralelo o meu:
quantas leituras houve,
as concórdias trazidas,
os rumos que tracei,
abandonados ao presente, ficam
inertes com as horas passageiras.
Ainda que seja na inércia do baldio,
na geografia da paisagem,
onde, certa, se encontre a unidade
de quanto sou face ao esquecimento.
 
 
 
antonio moreno
poesia espanhola de agora vol. II
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997




 

05 abril 2025

juan manuel villalba / extravio

 
 
 
Os lugares dourados que o futuro
prometeu são agora um grupo
de guerrilheiros mortos
na clareira de um bosque.
Dor mais invisível do que a dor.
Mas aceito a vida que me cabe
debaixo do peso gelado da noite,
a noite que em qualquer outro destino
– porventura menos incerto –
me pudera ter confortado.
Como quem vive com roupa emprestada;
como quem anda dentro
de um sobretudo que cheira a outra pessoa.
 
 
 
juan manuel villalba
poesia espanhola de agora vol. II
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997
 



04 abril 2025

federico garcia lorca / malaguenha

 
 
 
A morte
entra e sai
da taberna.
 
Passam cavalos negros
e gente sinistra
pelos fundos caminhos
da guitarra.
 
E há um cheiro a sal
e a sangue de fêmea
nos nardos febris
da beira-mar.
 
A morte
entra e sai,
e sai e entra
a morte
da taberna.
 
 
 
federico garcia lorca
poemas
trad. de eugénio de andrade
assírio & alvim
2013
 



03 abril 2025

konstandinos kaváfis / o sol da tarde

 
 
 
Este quarto, como o conheço bem.
Agora alugam-se quer este quer o do lado
para escritórios comerciais. A casa toda tornou-se
escritórios de intermediários, e de comerciantes, e Sociedades.
 
Ah este quarto, não é nada estranho.
 
Perto da porta por aqui estava o sofá,
e diante dele um tapete turco;
ao pé a prateleira com duas jarras amarelas.
À direita; não, em frente, um armário com espelho.
Ao meio a sua mesa de escrever;
e três grandes cadeiras de vime.
Ao lado da janela estava a cama
onde nos amámos tantas vezes.
 
Estarão ainda os coitados nalgum lugar.
 
Ao lado da janela estava a cama;
o sol da tarde chegava-lhe até metade.
 
… De tarde quatro horas, tínhamo-nos separado
por uma semana só… Ai de mim,
aquela semana tornou-se para sempre.
 
 
 
konstandinos kavafis
os poemas
II (1919-1932)
trad. joaquim manuel magalhães e
nikos pratsinis
relógio d´água
2005




02 abril 2025

giórgios seféris / o jardim e suas fontes sob a chuva

 
 
 
VI
 
                                            M.R.
 
O jardim e suas fontes sob a chuva,
hás-de vê-lo apenas da janela baixa
por trás do vidro fosco. O teu quarto
de luz só terá a chama da lareira
e às vezes ao luzir longínquo dos raios ver-se-ão
as rugas da tua fronte, velho amigo.
 
O jardim e suas fontes, que nas tuas mãos eram
ritmos de outra vida, para lá dos mármores
quebrados e das colunas trágicas
e um espaço entre os loureiros
junto à nova pedreira,
 
um vidro turvo ter-to-á cerceado de tuas horas;
não hás-de respirar; a terra e a seiva das árvores
saltarão dos teus sonhos para virem bater
a esta vidraça onde bate a chuva
do mundo lá fora.
 
 
De Mythistorema, 1935
 
 
 
giórgios seféris
a grécia de que falas…
antologia de poetas gregos modernos
trad. de manuel resende
língua morta
2021
 


01 abril 2025

kiki dimoulá / 1 de abril

 
 
 
Abril
– o famoso jardineiro –
pulou de manhã para o meu jardim maninho
e plantou uma maravilhosa rosa.
 
A primavera,
escondida atrás da rosa,
vê o meu espanto e ri-se,
e com a minha alegria sem limites
condecora o mago jardineiro.
 
 
 
kiki dimoulá
inimigo rumor 14
trad. manuel resende
livros cotovia
2003





 

31 março 2025

juan luis panero / a memória e a morte

 
 
 
     Só são tuas – na verdade – a memória e a morte,
a memória que apaga e desfigura
e a sombra da morta que aguarda.
Só lembranças fantasmais e o nada
repartem entre si tua herança sem destino.
Depois de contratos sórdidos, mentiras,
de gestos inoportunos e palavras
– irreais palavras ilusórias -,
só um testamento de cinza
que o vento move, espalha e desordena.
 
 
 
juan luis panero
rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução josé bento
assírio & alvim
2001





 

30 março 2025

e. m. de melo e castro / aí estás

 
 
 
Aí estás. Solitária entre o pó e os homens,
transposta mas presente, construída
de tão pequenos pensamentos e de tão
leves quase ilusões dos teus sentidos.
 
Aí estás e não nos tens lembranças,
nem te lembramos, nem te esquecemos,
nem a presença em que estás é nossa
e no entanto és tu.
 
Para sempre as nossas mãos são actos
do teu querer.
 
Para sempre os nossos ideais são destroços
de ti.
 
Aí estás.
Para sempre a nossa ignorância
és tu.
 
 
 
e. m. de melo e castro
ignorância da alma (1956)
antologia da novíssima poesia portuguesa
livraria moraes editora
1971
 



 

29 março 2025

maria alberta menéres / meditação

 
 
 
XXXII
 
Fechei os olhos, para ver melhor
tudo o que a luz me negava!
– E quando o sono chegou
antes da revelação,
senti a minha alma paralela
como as grades que um jardim
desenha, às vezes, no chão…
 
 
 
maria alberta menéres
intervalo 1952
poesia completa
porto editora
2020
 




28 março 2025

david mourão-ferreira / infinito pessoal

 
 
 
Como se de repente ao coração do Sol
as raízes da luz alguém as arrancasse…
Como se de repente as hélices do vento
arranhassem o ar, e o Mar estivesse perto…
Como se de repente o Mundo entontecesse…
 
Foi tudo de repente e tudo ao mesmo tempo:
escuridão, rumor, frescura, movimento.
 
Mas de entre as espirais confusas quem sabia
Se era de novo amor, se era só melodia?
 
 
 
david mourão-ferreira
lira de bolso
publicações dom quixote
1971