16 fevereiro 2025

fernando luís / num café de Bolonha

 
 
6

Desta névoa em cerco
crescem rosas para ti,
o nublado anil das quimeras,
riscos de um destino dilacerado.
 
A paz das águas sobre
o mundo reacende o torpor
de deus encarcerado, a memória
do estrangeiro deposto sob
a tua vida, sobressalto do sangue,
do inquieto, imortal e solitário
sopro a que chamas alma.
 
E com uma pedra engastada
em cada gesto vais
matar o chacal dos teus sonhos,
dessa névoa em cerco imaginada.
 
 
 
fernando luís
num café de bolonha
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990





15 fevereiro 2025

regina guimarães / catalogue raisonné

 
 
 
Havia essas manhãs imaginárias
em que o sol passava debaixo da porta
como uma carta breve, um magro recado,
e essas outras
históricas
em que o sol arrombava a porta
sem historiador.
 
Saíamos mais cedo do que o costume
para confiar a palavra a um transeunte
embrulhada num pano muito branco.
 
E o primeiro com quem dávamos de cara
era mendigo e tão pedinte
que a nossa espinha se curvava
em jeito de amor envergonhado
porque outro sentimento não nos ocorria.
 
Corríamos contra o tempo.
Pela rua fora
aos encontrões
furávamos caminho por entre a multidão mole
e o ar duríssimo.
 
O que fazíamos pelas más razões
voltaríamos a fazer
a cometer
cada vez mais gratuitamente.
Sempre em nunca
ávidos de nunca
sem sempre.
 
 
 
regina guimarães
voo rasante
antologia de poesia contemporânea
mariposa azual
2015
 



14 fevereiro 2025

carlos saraiva pinto / farás do sono o abrigo

 
 
 
farás do sono o abrigo
dos anjos lentos.
 
a visão melancólica
dos rios obstinados.
 
ao menos uma vez
 
como a dimensão
dos pequenos passos
a caminho das mãos dissolvidas.
 
o rosto é meigo.
 
o lugar diante dos peixes
espalhará a neblina
tocada em mel a indiferença
que povoou de ausência
as libélulas interiores.
 
ó saliva inconsolável dos deuses.
no lado esquerdo do peito
o musgo dispersivo cobre o tempo
subtis pormenores
de gestos que escapam.
 
a minha memória parou.
o sofrimento vigia os mares
e na película dos amieiros
a noite cai árida e grave.
 
só o viajante da noite
contempla o mármore da face.
ouve a densa página das dunas,
 
os órfãos iluminados da chuva,
nas pegadas solitárias do outono
sobre os abismos do oeste.
 
descerás assim despido de luz
à verdura da terra
 
e a extensa morte
cobrirá de lama e sulcos
o teu reino.
 
 
 
carlos saraiva pinto
escrever foi um engano
o correio dos navios
2001
 




13 fevereiro 2025

jorge velhote / fria é a água na escuridão

 
 
 
.3.
 
Regressas um pouco ao teu corpo como
 
o crepúsculo cai nas sombras.
 
És uma erva seca ou uma cana
 
esquecida. E na tua boca restam
 
silvas e poeira. E búzios.
 
Depois, estendes o olhar como quem
 
abandona o território das palavras
 
as serpentes em suas mãos
 
ou os lugares vazios em cada manhã.
 
 
 
jorge velhote
âmago
edições sem nome
2018





 

12 fevereiro 2025

nuno júdice / retrato

 
 
 
Encosta-se à parede. A brancura
das pernas contra o negro da sombra. O
risco da meia no risco do papel; e
os dedos que furam a pele. Os olhos
fechados no excesso da luz. Entreabre
os braços, deixando que os seios
saltem para o sol. O rigor do vento
abranda nessa imagem.
 
 
 
nuno júdice
50 anos de poesia
antologia pessoal (1972-2022)
dom quixote
2024
 



11 fevereiro 2025

gastão cruz / frio

 
 
 
Linguagem das estrelas incendeia
o céu da noite! Do
lugar vazio
choverão cinzas e da negra teia
 
descerá o cenário como um dia
para cegos que escutam a sombria
melodia do frio
o inimigo rio a escuridão
 
diurna da melancolia
As trevas serão teias recolhendo
os mortos Passará
 
nelas o pensamento
das estrelas extintas, o sentido
da vida
 
 
 
gastão cruz
as pedras negras
os poemas (1960-2006)
assírio & alvim
2009




10 fevereiro 2025

pedro tamen / minha secura agulha pela noite

 
 
 
Minha secura agulha pela noite
luminosa atravessa a estrada, o escuro,
procura-te na casa e na cadeira,
procura-te no meio
das ilusões, sentenças, lodo, esperas,
encontra-te no quente à minha volta,
reencontra o teu corpo, minha auréola,
a paz de ter morrido e de viver:
 
os teus olhos abertos juntos aos meus,
tuas mãos passeantes, teu cabelo
suado no esforço de me dares
orografias de serras e de mares,
teu lume, tua água, teu novelo,
a tua voz mais baixa que o meu braço,
nosso ar, nossa meta, sol, cansaço.
 
 
 
pedro tamen
escrito de memória
tábua das matérias
poesia 1956/1991
círculo de leitores
1995



 

09 fevereiro 2025

joaquim pessoa / alcácer que vier

 
 
 
Em Alcácer eram verdes
as aves do pensamento.
Eram tão leves tão leves
como as lanternas do vento.
 
Em Alcácer eram verdes
os cavalos encarnados.
Eram tão fortes tão negros
como os punhos decepados.
 
Em Alcácer eram verdes
as armas que eu inventei.
Eram tão leves tão leves
tão leves que nem eu sei.
 
Em Alcácer eram verdes
os homens que não voltaram.
Eram tão verdes tão verdes
como os campos que deixaram.
 
Em Alcácer eram verdes
as maçãs feitas de lume.
Eram tão frias tão frias
como as dobras do ciúme.
 
Em Alcácer eram verdes
estas palavras que agora
são tão caladas tão cernes
tão feitas desta demora.
 
Em Alcácer eram verdes
as flores da sepultura.
Eram tão verdes tão verdes
tão verdes como a loucura.
 
Em Alcácer era verde
meu amor o teu olhar.
Era tão verde tão verde
quase à beira de cegar.
 
 
Em Alcácer eram verdes
os lençóis onde morri.
Eram tão frios tão verdes
como os campos que eu não vi.
 
Em Alcácer eram verdes
as feridas do meu país.
Eram tão fundas tão verdes
como este mal de raiz.
 
 
 
joaquim pessoa
125 poemas
antologia poética
litexa
1982





08 fevereiro 2025

aram saroyan / a moer café

 
 
 
Moer café era o meu passatempo favorito
Quando tinha três ou quatro anos. Costumava sentar-me
No chão da cozinha com o moinho de café
Entre os meus joelhos, moendo e verificando
 
de vez em quando quanto já tinha na gaveta
Em baixo onde o café moído caía.
Quando tinha acabado e a gaveta estava cheia,
Alisava-o com o meu dedo, satisfeito.
 
 
 
aram saroyan
afagando a face de lorca
uma antologia
trad. francisco josé craveiro de carvalho
companhia das ilhas
2020




07 fevereiro 2025

jorge luís borges / um livro



 
Apenas uma coisa entre outras coisas
Mas também uma arma. Foi forjada
Na Inglaterra, em 1604,
E carregada com um sonho. Encerra
O som, a fúria, a noite e o escarlate.
A minha mão sopesa-a. Quem diria
Que contém o inferno: essas barbudas
Bruxas que são as parcas, os punhais
Que executam as duras leis da sombra,
O delicado ar desse castelo
Que te verá morrer, a delicada
Mão que é capaz de ensanguentar os mares,
O clamor e a espada da batalha.
 
Este tumulto silencioso dorme
No espaço de um só livro, na tranquila
Prateleira da estante. Dorme e espera.
 
 
 
jorge luís borges
obras completas 1975-1985 vol. III
história da noite (1977)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998



 

06 fevereiro 2025

paul éluard / identidades

 
 
 
                                                a Dora Maar

 
 
Vejo os campos e o mar cobertos por um dia igual
Não há diferenças
Entre a areia que dormita
O machado à beira da ferida
O corpo em feixe desatado
E o vulcão da saúde
 
Vejo mortal e boa
O orgulho que retira o seu machado
E o corpo que respira a plenos desdéns sua glória
Vejo mortal e desolada
A areia que volta ao leito de partida
E a saúde que tem sono
O vulcão palpitante como um coração desvendado
E as barcas respigadas pelos ávidos pássaros
As festas sem reflexos as dores sem eco
Frontes olhos atormentados pelas sombras
Risos como encruzilhadas
Os campos o mar o tédio torres silenciosas torres
                                                          [sem fim
Vejo leio esqueço
O livro aberto das minhas janelas fechadas
 
 
 
paul éluard
algumas das palavras
trad. antónio ramos rosa e luiza neto jorge
publicações dom quixote
1977




05 fevereiro 2025

paul bowles / canção

 
 
 
Sereis escravos num castelo.
Para cada beijo haverá um esgar.
Para cada garrafa haverá um discípulo.
Somos livres e podemos subir às montanhas.
Mas para cada passaporte há uma entrada
E para cada cálice uma gota.
Os relevos dos antigos mosaicos perseguiam-nos
E para cada fragmento havia um soluço
E para cada punhalada um silêncio.
A nossa liberdade era uma prisão,
Mas para cada riso havia uma carícia;
Para o amor havia um sorriso.
 
                                                           1929
 
 
paul bowles
poemas
trad. josé agostinho baptista
assírio & alvim
2008




04 fevereiro 2025

paul auster / desenterrar

 
 
II
 
Manguais, a brancura, as flores
da terra prometida: tudo
vais arrebanhando, esboroando-te no limiar
da respiração. Por uma palavra apenas
no ar deixámos de respirar, por uma
pedra, fendendo-se com a fome
dentro de nós-fúria,
desde a desordem dos ossos, aparentando-nos
ao verme. Tua única
testemunha é a parede. Apartada
de mim, mas nada desperdiçando,
espalhas-te sobre cada página em branco,
como se a tua voz tivesse rastejado
para fora de ti: e entrado
na brancura do pranto.
 
 
 
paul auster
poemas escolhidos
tradução de rui lage
quasi
2002