24 maio 2024

francesco petrarca / soneto

 



 

Onde colheu Amor o ouro, e de que veio,
para tecer tais tranças assim louras?
E de que espinho as rosas? E as ondas
de que praia as torou pra suas veias?
 
Onde pérolas tais em que vicejam
doces palavras, puras, peregrinas?
Onde tanta beleza, e tão divina,
dessa fronte que ao céu provoca inveja?
 
De que arcanjos provém, e de que esfera,
seu celeste cantar que me consome
o que, não consumido, já é pouco?
 
E de que sol nasceu a luz eterna
dos olhos seus, que paz e guerra movem,
calcinando-me o peito em gelo e fogo?
 
 
«Onde tolse Amor l’oro, et di qual vena…»
 
 
 
francesco petrarca
vozes da poesia europeia – II
traduções de david mourão-ferreira
colóquio letras número 164
maio - agosto 2003
fundação calouste gulbenkian





23 maio 2024

gabriele d’ annunzio / meio-dia

 



 

 
No seu auge o dia.
Sobre o mar etrusco
paira um verde pálido
como o dessepulto
bronze das estátuas.
Tudo tão tranquilo
que à roda não vibra
nem da brisa o hálito;
sequer um arbusto
se move na áspera,
solitária praia.
 
Bonança, calor,
em tudo silêncio.
O Verão, maduro,
cobre-me a cabeça,
como sendo um fruto
que a mim me pertença,
e colher eu deva
com a minha mão,
e sugar eu deva
com a minha boca.
Nem um só vestígio
de humana presença.
Nada que se ouça,
se me ponho à escuta.
Longe a dor dos homens.
Nem já tenho nome.
Sinto que o meu rosto
se doura de um ouro
que é meridiano;
e que a minha loura
barba já reluz
como a própria areia.
Mesmo o delicado
desenho da onda
na orla da praia
me está no palato,
na palma da mão
regendo-me o tacto.
Toda a minha força
na areia se expande,
no mar se difunde:
minha veia, o rio;
minha fonte, o monte;
o bosque, o meu púbis;
meu suor, a nuvem.
E vivo na flor
de esteva das dunas,
nas pinhas, nos bagos
dos juncos; nas algas,
na flora marinha;
nas coisas exíguas,
nas coisas imensas;
na areia contínua,
de cumes longínquos.
Só ardo e rebrilho.
E nem tenho nome.
Montanhas e ilhas,
bosques e baías
perderam os nomes
que outrora lhes dei
ou tinham outrora
em lábios humanos.
E eu próprio sem nome
nem destino humano:
já só Meio-Dia
agora me chamo.
Vivo em tudo, tácito,
tal e qual a Morte.
 
Toda a minha vida
se tornou divina.
 
«Meriggio», vv. 1-10, 55-109
Alcyone (1904)
 
 
 
gabriele d’ annunzio
vozes da poesia europeia – III
traduções de david mourão-ferreira
colóquio letras número 165
setembro - dezembro 2003
fundação calouste gulbenkian





22 maio 2024

ana paula inácio & sandra costa / menos uma hora nos açores

 
 
 
11.
 
Foi no último verso que me perdi.
Nessa última nuvem onde a morte
já não é matéria nem sequer
possibilidade capaz de desarrumar
a ordem natural das coisas.
Nessa última nuvem onde todos
os vocábulos são exílios
e nem com pássaros
dobras as margens dos rios
ou as árvores em flor
construindo paisagens.
Nessa última nuvem onde te abeiras
do tempo derramado
sobre o leito
das aparências
e tudo quanto é distância
ou a inconveniência do amor
se compõe como um equívoco.
 
 
 
ana paula inácio & sandra costa
menos uma hora nos açores
volta d´mar
2022



21 maio 2024

martín lópez-vega / relação de reparações efectuadas na igreja do bom jesus de braga em 1853 segundo consta da fatura do mestre de obras

 
 
 
Recolocar uma estrela caída.
Um galo novo para São Pedro e pintar a crista.
Pôr uma pedra na funda de David.
Dourar e pôr penas novas na asa esquerda do Anjo da Guarda.
Brincos novos para a filha de Abraão.
Adornar a Arca de Noé.
Correção dos dez mandamentos.
Renovar o céu e lavar a lua.
Retocar o purgatório e acrescentar almas novas.
Avivar as chamas do inferno e vários arranjos nos condenados.
Limar as unhas do diabo.
 
 
 
martín lópez-vega
a eterna qualquercoisa
tradução de jorge melícias
officium lectionis edições
2022




20 maio 2024

luis alberto de cuenca / não vale a pena

 
 
 
Não vale a pena viver tanto e tão
heroicamente como ontem à noite.
Foi o vazio (com a mãe, a ansiedade)
quem desenhou as fronteiras que tivemos
de atravessar, as tórridas veredas
por onde fomos a nenhuma parte,
julgando que éramos os reis da festa.
Não vale a pena a dor que as luzes trazem
de manhã, se não é para nos salvar.
 
 
 
luis alberto de cuenca
a vida em chamas
uma antologia
trad. miguel filipe mochila
língua morta
2018




19 maio 2024

rui caeiro / um corpo diz para outro corpo

 
 
Um corpo diz para outro corpo
vem-me dar de comer e de beber
ou antes como e bebe do meu corpo
e eu fico a olhar um e outro
ora participante interessado
esquecido de tudo o que é o resto
ora o mais frio dos voyeurs
por vezes o olhar não separa
os corpos o próprio e o alheio
o meu é como se fosse de um outro
o do outro será talvez meu
os corpos seguem o seu caminho
isto é devoram-se até cada
um se cansar de foder e de olhar
 
 
 
rui caeiro
o quarto azul e outros poemasl
o sangue a ranger nas curvas apertadas do coração
maldoror
2019




18 maio 2024

rui lage / terminal

 
 
Chegaram ao terminal número Sete
Malas de cabalistas (dói-me a mão!),
Repescam-se com a vida que remete
Um regresso partido no coração.
 
Cabelos intocados, gabardines,
Crinas de cigarros, saias de solidão
E hei-de jazer sem que me ensines
Porque tudo corre da tua emoção.
 
Imóveis, sustentam-se de vontades
Aviões sobre nuvens encarceradas
Atrás do olhar ambos os lados das grades.
 
Humilde por me saber uma vela
Entre portas, entre correntes de ar,
Só para ti me acendo à janela.
 
                                           Bruxelas
 
 
 
rui lage
antigo e primeiro
quasi
2002





 

17 maio 2024

miguel filipe mochila / cravo


 

 
Entre os mil cravos da minha infância, escolhi o branco
          e breve aquele
que em San Juan achei havendo-o perdido
a milhares de quilómetros de Porto Rico
em meio do asfalto
em outro santo ido
Bento este, pobre
Ou seja, do Mato, vulgo Azaruja.
Morto, foi da morte que o colhi. Como explicar
que por o não ter visto nunca
outra vez além o vi.
Andar a tempo não é o mesmo que andar atento.
A gente desperta um dia neste estranho, estranho
          mundo, e principia sempre em,
e chega sempre, ao estrangeiro:
cândidas, e logo apaixonadas, e enfim frustradas, se nos
          perdem as coisas, as ideias, as grandezas,
e sobram-nos só aquelas, frugais e fraternas, que
          perdemos na infância.
A isto chamamos beleza, mas a beleza
está só nas coisas belas, e elas fogem-nos sempre, para
          que possamos
continuar a dizê-las belas, a beleza.
Como aquela flor da infância:
como explicar
que num futuro
campo
é que a perdi.
 
 
 
miguel filipe mochila
nervo/21
colectivo de poesia
maio/agosto 2024
 



 

16 maio 2024

maria alberta menéres / dois poemas do mar

 
 
 
1.
No quebrar de cada onda,
vive uma canção falhada!
 
 
– Mas não importa cantar.
 
 
Basta uma onda incompleta
para dar sentido ao mar…
 
 
2.
O silêncio dorme, estendido na areia.
 
Velam três rochedos,
todos três calados,
todos três olhando
sem compreender!
 
 
– Ai se Deus me desse esta ignorância calma,
feita de me cumprir, sem o saber…
 
 
 
maria alberta menéres
intervalo 1952
poesia completa
porto editora
2020
 




15 maio 2024

till lindemann / beleza

 



 
 
Quando as rosas florescem no jardim
só as rosas se veem,
os suspiros das violetas perdem-se no ar
e misturam-se com o cheiro das rosas
 
 
 
till lindemann
nas noites tranquilas
trad. pedro garcia rosado
alma mater
2018



14 maio 2024

edgar lee masters / ollie mcgee

 



 
Vistes caminhar pelas ruas da povoação
um homem cabisbaixo e de rosto cadavérico?
É o meu marido. Esse que, com secreta crueldade,
que nunca revelei, me roubou a juventude e a beleza;
até que, por fim, enrugada, com os dentes amarelos,
quebrado o meu orgulho, humilhada e submissa,
desci a esta cova.
E sabeis o que devora o coração do meu marido?
O rosto que eu fui, face ao rosto que ele me deu!
É isso que o arrasta para o sítio onde estou.
Na morte, assim, alcancei a minha vingança.
 
 
edgar lee masters
spoon river
tradução josé miguel silva
relógio d´água
2003



13 maio 2024

charles bukowski / conselho amigável a imensos jovens adultos

 
 
 
Vai ao Tibete.
Anda de camelo.
Lê a bíblia.
Tinge os sapatos de azul.
Deixa crescer a barba.
Dá a volta ao mundo numa canoa de papel.
Assina o Saturday Evening Post.
Mastiga com o lado esquerdo da boca apenas.
Casa-te com uma mulher com uma perna e faz a barba
                                     com uma navalha de barbear.
E grava o teu nome no braço dela.
 
Escova os dentes com gasolina.
Dorme todo o dia e trepa às árvores à noite.
Sê um monge e bebe buckshot e cerveja.
Mete a cabeça debaixo de água e toca violino.
Faz dança do ventre diante de velas cor-de-rosa.
Mata o teu cão.
Concorre a Presidente da Câmara.
Vive num barril.
Parte a cabeça com um machado.
Planta túlipas à chuva.
 
Mas não escrevas poesia.
 
 
 
charles bukowsky
os cães ladram facas
trad. rosalina marshall
alfaguara
2018
 



12 maio 2024

elizabeth bishop / cidade nocturna

 



                                

[Do avião]
 
Nenhum pé o conseguia suportar,
os sapatos são demasiado finos.
Vidro partido, garrafas partidas
montes deles a arder.
 
Por cima daquelas fogueiras
ninguém conseguia caminhas:
aqueles ácidos flamejantes
e diversos sangues.
 
A cidade queima lágrimas.
Um lago enrugado
de um verde azulado
começa a fumegar.
 
A cidade queima o crime.
– Para a libertação do crime
o calor central
tem de ser assim intenso.
 
Linfa diáfana,
túrgido sangue vivo,
salpicam o exterior
com coágulos de ouro
 
para onde correm, fundidos,
nos subúrbios escuros,
verdes e luminosos
rios de silicato.
 
Uma lagoa de betume
um grande magnate
chorava sozinho,
uma lua escurecida.
 
Um outro exaltava
um arranha-céus.
Olhem! Incandescente,
os seus fios gotejam.
 
O incêndio
luta por ar
num terrível vácuo.
O céu está morto.
 
(Porém, há criaturas,
cuidadosas, suspensas.
Poisam os pés, caminham
Verde, vermelho; verde, vermelho.)
 
 
 
elizabeth bishop
geografia III
trad. maria de lourdes guimarães
relógio d´água
2006