15 fevereiro 2024

miguel serras pereira / à tona do vazio

 
 
 
Não te leva nem traz a memória das horas
que voltam a morrer com o dia ao fim do dia
 
Por isso nunca te lembrei embora agora
de repente esta noite à tona do vazio
sejas tu afinal quem não está aqui
 
Pudesse assim morrer-se ou um dia morrer fosse
como sem ter de te lembrar não te esqueci
 
 
 
miguel serras pereira
á tona do vazio & reprise
cinquenta anos de poesia de miguel serras pereira 1969-2019
todo o ano 1990
barricada de livros
2022




 

14 fevereiro 2024

fátima maldonado / signo dos peixes

 
 
5

A tua ausência é na minha vida
o buraco na ponte onde pensava
apenas oscilando
transitar a velhice.
Posso, por ele debruçando-me, sentir o precipício
o rochoso recorte das grutas esverdeadas
o contacto da pedra na aresta do crânio
poroso no engaste que liga as duas têmporas,
aberta melancia partida na talhada
renda velha que esgarça na toalha de altar.
A luz que banha a rocha espraia
reflexo rápido que nos cruza a pupila,
o mesmo projector que varre uma prisão,
a espada que se enterra no cachaço do touro
deixando um pré-aviso
que cintila no ar como um cristal de neve
destruindo a sóbria anatomia de nervos e sistemas,
a estrutura da folha que existe sepultada
por baixo de uma pele, seja de boi ou lama,
a concha que repete os dois ou três modelos
que existem renovando-se.
E mesmo assim prossigo
rasando a perspectiva,
gangrenam-se-me os pés,
partindo-se aos bocados
ouço bater os ossos
na crista dos rochedos.
O cérebro envolvido por folha rendilhada,
guardado no abrigo sangrento do herbário,
rolando por montes e por fragas
deixa-me pensamentos espalhados como amoras.
Suspensos nos espinhos das sebes poeirentas
ficam os raciocínios à espera que os pardais
caindo de repente em bandos destemidos
lhes venham debicar ideias comatosas
secando já nas bagas da sua exactidão.
Nos bicos acerados resta o mercúrio das gotas
da lógica que escorre em fios de ovos metálicos
sobrando dos conventos que abrigam destroços
dos módulos lunares.
Sentada na areia
coalhada de limalha
como os restos caídos da bigorna
que o ferreiro afasta para o lado
sinto o desejo amargo de te contar o sonho
em que a comida gelando no meu prato
me afasta da ideia que possa saciar-me.
 
 
 
fátima maldonado
sem rasto
signo dos peixes
averno
2021




 

13 fevereiro 2024

ernesto sampaio / perda




 
No poroso branco das lajes
da limpa escada de pedra
sobre o abismo feliz
das claridades eternas
cada passo
perde
lentamente
a esperança de ser o último
 
A obra sem peso
da minha paciência
corre sobre a terra
constrói o silêncio
onde tu te anuncias
 
No reflexo das horas
como uma imagem de vidro
onde só vejo
a luz do vento
eu sei que a cor do mundo
está perdida
 
 
 
ernesto sampaio
feriados nacionais
fenda
1999







 

12 fevereiro 2024

al berto / se um dia a juventude voltasse





 
se um dia a juventude voltasse
na pele das serpentes atravessaria toda a memória
com a língua em teus cabelos dormiria no sossego
da noite transformada em pássaro de lume cortante
como a navalha de vidro que nos sinaliza a vida
 
sulcaria com as unhas o medo de te perder... eu
veleiro sem madrugadas nem promessas nem riqueza
apenas um vazio sem dimensão nas algibeiras
porque só aquele que nada possuiu e tudo partilhou
pode devassar a noite doutros corpos inocentes
sem se ferir no esplendor breve do amor
 
depois... mudaria de nome de casa de cidade de rio
de noite visitaria amigos que pouco dormem e têm gatos
mas aconteça o que tem de acontecer
não estou triste não tenho projectos nem ambições
guardo a fera que segrega a insónia e solta os ventos
espalho a saliva das visões pela demorada noite
onde deambula a melancolia lunar do corpo
 
mas se a juventude viesse novamente do fundo de mim
com suas raízes de escamas em forma de coração
e me chegasse à boca a sombra do rosto esquecido
pegaria sem hesitações no leme do frágil barco... eu
humilde e cansado piloto
que só de te sonhar me morro de aflição
 
 
al berto
o último coração do sonho
editora quasi
2000
 




 

11 fevereiro 2024

albano martins / espelho

 
 
Há um momento em que o espelho
recusa a imagem. Percebes,
então, que o vazio
é contrário à luz. que o nada
e o salitre são
a outra face da transparência.
 
 
 
albano martins
escrito a vermelho
campo das letras
1999
 





10 fevereiro 2024

björn hakanson / o futuro

 
 
Alguém, uma pessoa que conhecia,
estava preocupado com o futuro.
Dizia-me que costumava ter terríveis pesadelos
Com que sonhas? perguntei-lhe
Sonho que tudo continua como antes
e que o que se transforma
se transforma do modo como tinha podido prever
Não seria culpa tua nesse caso, respondi-lhe
Também essa resposta fazia parte do sonho, disse
Agora não há saída alguma
onde possa despertar
 
 
Rymd for ingenting, 1962



björn hahanson
o destino da árvore é
transformar-se em papel
antologia de poesia sueca
poemas vertidos para português por
amadeu baptista
contracapa
2021



 

09 fevereiro 2024

alejandra pizarnik / pequenos poemas em prosa





 

 
 
Fechou-se o sol, fechou-se o sentido do sol, iluminou-se o sentido de fechar.
 
 
*
 
Chega um dia em que a poesia se faz sem linguagem, dia em que se convocam os grandes e pequenos desejos disseminados nos versos, reunidos de súbito em dois olhos, os mesmos que tanto louvava na frenética ausência da página em branco.
 
 
*
 
Enamorada das palavras que criam noites pequenas no incriado do dia e seu vazio feroz.
 
 
 
alejandra pizarnik
antologia poética
trad. alberto augusto miranda
edit. o correio dos navios
2002
 




 

08 fevereiro 2024

ana hatherly / a minha vida é poética

 
 
 
A minha vida é poética:
Paira entre a vaga mentira e a realidade.
 
O amor me acontece
Como as folhas às árvores,
E tão singularmente,
Que já nem sei se é natural à árvore ter folhas
Ou estar nua…
 
 
 
ana hatherly
poesia
1958-1978
moraes editores
1980
 




07 fevereiro 2024

sebastião alba / como se o mar

 




 

Quero a morte sem um defeito.
Sem planos brancos.
Sem que pequeninas luzes se apaguem
dentro dos ruídos.
Também a não quero providencial,
com um anjo vingador e secretíssimo
enfim pousado.
Nenhuma mitologia. Nenhuma
fruição poética. Assim: Como se o mar
me aspirasse os ouvidos… etc.
Mas súbita e civil,
com repartições abertas,
comércio, a luz graduada
nas altas paredes
dum bom dia sonoro.
 
 
 
sebastião alba
o ritmo do presságio
edições 70
1981
 




06 fevereiro 2024

rui lage / o regresso dos lobos

 
 
Esqueceu a vida antes do campo;
Acolhe o estilhaço da geada
Na garganta em feitio de banco
Ou numa chávena requentada.
 
No teu colo deixei camisolas
E faúlhas de vários tamanhos;
Queima-se a pedra e ardem as solas
Dos teus dóceis chinelos castanhos.
 
O derradeiro lobo regressa
O xaile negro, o sono que tarda
A metade da cama intocada.
 
Debaixo do escano amuada
Estava a tua sombra escondida
Que se esgueirou da sombra da vida.
 
 
 
rui lage
antigo e primeiro
quasi
2002




 

05 fevereiro 2024

nuno júdice / projecto metafísico

 



 
Uma vez terei sonhado que para além dos céus
há outros céus; que sobre as nuvens que vemos,
paradas, sobre nós, outras nuvens são empurradas
pelo universo, cheias como o espírito que
só imaginam aqueles que ouvem o silêncio das aves,
quando a noite cai. Há sonhos inúteis,
que se perdem ao longo da vida, que rolam
com o tédio para as sarjetas do esquecimento. Outros,
porém, ficam por dentro de nós; e repetem-se,
de cada vez que o dia ficou escuro mais cedo, ou
que olhamos à volta e descobrimos que não está connosco
quem gostaríamos que estivesse. Um remédio
para a solidão, talvez; embora o sonho possa ser,
por outro lado, a porta que se fecha quando
a realidade toma conta de nós. Então, é
possível que andemos, como os pobres, à sua procura
pelos caixotes de lixo da eternidade. Destapamo-los,
um a um, e remexemos por entre imagens antigas,
rostos que se desprendem da noite, palavras
que se ligam a súbitas entoações, comoventes,
da voz que o tempo levou. E as mãos voltam
vazias: nenhum sonho cabe na mão. Assim,
este céu continua a ser o meu limite; e só espero
que a chuva recomece para que a sua música monótona
me devolva o sonho de uma manhã azul.
 
 
 
nuno júdice
a fonte da vida
quetzal
1997
 




04 fevereiro 2024

bernardo soares / sou um homem para quem o mundo exterior é uma realidade interior.

 
 
L. do D.
 
Sou um homem para quem o mundo exterior é uma realidade interior. Sinto isto não metafisicamente, mas com os sentidos usuais com que colhemos a realidade.
 
Parecerá a muitos que este meu diário, feito para mim, é artificial de mais. Mas é de meu natural ser artificial. Com que hei-de eu entreter-me, depois, senão com escrever cuidadosamente estes apontamentos espirituais! De resto, não cuidadosamente os escrevo. É, mesmo, sem cuidado limador que os agrupo. Penso naturalmente nesta minha linguagem requintada.
 
A nossa frivolidade de ontem é hoje uma saudade (constante) que me rói a vida.
 
Há claustros na hora. Entardeceu nas esquivanças. Nos olhos azuis dos tanques um último desespero reflecte a morte do sol. Nós éramos tanta coisa dos parques antigos; de tão voluptuoso modo estávamos incorporados na presença das estátuas, no talhado inglês das áleas. Os vestidos, os espadins, as perruques, os meneios e os cortejos pertenciam tanto à substância de que o nosso espírito era feito! Nós quem? O repuxo apenas, no jardim deserto, água alada, onda já menos alta no seu acto triste de querer voar.
 
s.d.
 
 
 
fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982




 

03 fevereiro 2024

manuel gusmão / as posições do leitor




1.
 
O leitor está cego: a luz cai sobre o olhar: as coisas vão nascendo minuciosas despertas e límpidas, no passado. Na página, as letras vibravam e uma ausência brilhava como um clarão branco que chegava aos olhos e os olhos eram uma parede de luz intransponível. Ouviam, tacteavam.
 
a luz cai… contra o olhar…: como o dia se fazia abria-se o mundo: tu. A neve espalhava-se no cérebro do leitor, pelas suas árvores imóveis como uma fotografia. , dizia. – Isto é um livro; eu sei, pensava ele humildemente; um dia li um livro; contava uma história: passava-se no México e havia muito calor, a noite ia caindo sobre a terra, descendo pela colina até à cidade, até às ruínas. Até ao rio. Como era inverosímil o que tinha acontecido não passara ainda um ano…
 
O leitor ia virando as páginas que muito lentamente ondulavam; estava cego e agarrava o livro num esforço paciente. Algures como no passado, branca sobre a luz branca, uma letra ardia: os contornos hesitantes de um A antigo, pintado, um quarto do sol, a secção de um disco girando sobre si mesmo. Um simulacro. Algures, então, como no futuro, o leitor está cego.
 
 
 
manuel gusmão
dois sóis, a rosa
a arquiitectura do mundo
as posições do leitor (1971)
caminho
1990