06 janeiro 2024

cesare pavese / revelação

 
 
 
O homem só volta a ver o rapaz do magro
coração, absorto a espreitar a mulher que se ria.
O rapaz erguia o olhar para aqueles olhos,
onde os rápidos olhares estremeciam nus
e estranhos. O rapaz recolhia um segredo
naqueles olhos, um segredo como o regaço escondido.
 
O homem só estreita no coração a recordação.
Os olhos desconhecidos queimavam como queima a carne,
vivos de húmida vida. A doçura do regaço
palpitante de cálida ansiedade transparecia
naqueles olhos. Brotava angustiado o segredo
como sangue. Tornavam tremendas as coisas
na luz tranquila das árvores e do céu.
 
O rapaz chorava na noite submissa
ralas lágrimas mudas, como se já fosse homem.
O homem só reencontra sob o céu distante
Aquele olhar recatado que a mulher depõe
no rapaz. E volta a ver aqueles olhos e aquele rosto
recomporem-se submissos ao sorriso habitual.
 
 
 
cesare pavese
depois
trabalhar cansa
trad.carlos leite
cotovia
1997
 


05 janeiro 2024

maria gabriela llansol / I. curso de silêncio

 




 

 
a partir do momento em que tudo ao meu alcance se imobiliza, sinto a copa da árvore verdejante, à entrada de um ramo; vindo de um ponto movimentado da vila próxima,
um trilhador dos mundos senta-se na soleira de um barraco de cristal. Está centrado sobre um objecto que deixou ______ o estudo do texto em que escrevo e que lhe conferiu (necessitaria ele?)                 o estatuto de nómada. Sem situação social no conhecimento. As folhas adoram vagamundos. A vagueação. E as daquele plátano, e árvores limítrofes, não são excepção à regra. assim, ele, partido em fragmentos, move-se, flutuando, por impulso do ar. É um homem quotidiano, sem nenhum sinal de ilustração nas mãos e/ou no roso. Os olhos percutentes encontram os meus. Quem diria que são olhos dormentes? O silêncio. O silêncio.
 
Quando o azul desce, e se transforma no negro chumbado da noite, acende-se sobre ele uma densidade que o protege, e lhe permite continuar a vadiar. Convido-o para o meu quarto,
que se desfaz na espuma do texto.
 
 
 
maria gabriela llansol
amigo e amiga
curso de silênco de 2004
assírio & alvim
2006
 




04 janeiro 2024

leonard cohen / metade do mundo perfeito

 



 

Ela vinha ter comigo todas as noites
E eu cozinhava, servia-lhe chá
Devia ter então mais de trinta anos
Ganhara dinheiro, vivera com homens
 
Deitávamo-nos para dar e receber
Debaixo do mosquiteiro branco
E como não começámos a contar
Vivemos mil anos num só
 
As velas ardiam
A lua descia
A colina polida
A cidade leitosa
Transparente, ligeira, luminosa
Revelando-nos a nós os dois
Nesse plano fundamental
Em que o amor não tem vontade, controlo,
Limites
E se encontra metade do mundo perfeito
 
 
 
leonard cohen
a chama
alerta azul
tradução de inês dias
relógio d´agua
2019




03 janeiro 2024

luís miguel nava / a roupa

 
 
Entre o meu corpo e a roupa que o reveste há uma distância enorme. Dir-se-ia que a roupa está nas insondáveis profundezas dum abismo em torno de cuja protecção os meus órgãos se expusessem aos caprichos do céu. Bloqueiam-me as vértebras palavras de cujo sentido o próprio sol precisa para brilhar. Sai-me do corpo o tempo num só vómito, o que torna transparente todos os meus órgãos. A roupa é uma incógnita, esmagada assim entre a esperança e as torrentes.
 
 
 
luís miguel nava
o céu sob as entranhas
poesia
assírio & alvim
2020
 



02 janeiro 2024

joão pedro grabato dias / a arca

 
 
CCLXXXIX
 
Não procures o encontro com a verdade
porque cercá-la é já nega-la um pouco.
A verdade é vivê-la, não pensá-la
como se te soubesses já de fora.
Se a verdade procuras como gamo
a caçar, com as armas que o costume
te deu, sabe que voltarás sem caça.
Que sabes tu dos usos da verdade?
É fêmea? É macho? Em que fojo dorme?
Onde bebe? Onde pasce? Onde procria?
 
 
joão pedro grabato dias
odes didácticas
a arca, ode didáctica na primeira pessoa, 1971
tinta da china
2021





 

01 janeiro 2024

vasco gato / janeiro




 

é esta a completude dos dias
quando se reúnem sobre a cidade
os sossegos da nossa idade já meiga.
são estas as palavras que ficam
desde o interior do nosso mais antigo nome.
 
é o inverno aberto de janeiro
com as árvores despidas e o frio azul,
é o ano que começa no tempo que é nada,
os bolsos que se enchem de mãos,
as casas que parecem mais juntas.
 
por esta altura estarão a nascer
as horas mais felizes das nossas vidas
– bebemos chá escutando o lume
e amanhã será um dia a menos,
um outro som acrescentado à voz,
um abraço fechando-se até ao amor.
 
 
 
vasco gato
um mover de mão
assírio & alvim
2000




 

31 dezembro 2023

antónio franco alexandre / corto viaggio sentimentale, capriccio italiano

 
 
39
 
outra vez volto
a olhar. O paraíso
é assim: à semelhança do inferno,
mas em tudo diferente.
Por exemplo: aqui trocamos os nomes todos,
cada dia é uma nova
constelação. Do outro lado
dos teus olhos,
quando o retrovisor espreita
por cima dos teus ombros,
fica um mundo suspenso,
o manso amor, o vento.
 
 
 
antónio franco alexandre
quatro caprichos
assírio & alvim
1999
 



30 dezembro 2023

antónio cândido franco / não me interessa nenhum dom sebastião

 
 
3
 
Não me interessa nenhum Dom Sebastião
fora de mim
como não me interessa nenhuma realeza
salvo a do coração.
 
Há mais Rei nesta minha anarquia
que em qualquer monarquia do mundo.
E há mais saudade no meu nada
que em qualquer memória do passado.
 
O sebastianismo é a descoberta no Homem
daquilo que já não é do Homem
mas da criança eterna e presente.
O sebastianismo é a consciência da criança no Homem.
 
Essa consciência é que é a forma contente de estar triste.
Essa consciência é que é a antiga tristeza lusitana
tão próxima e tão real aqui.
A saudade impossível
a saudade do presente
a saudade que já mão é saudade
mas nada e presença.
 
Se no Inverno
a saudade é a consciência da Primavera
e no Homem
ela é a consciência de ser menino
então nada há aqui de memória ou de desejo
de lembrança do antigo ou de esperança no porvir
de desespero do mesmo
ou de ânsia de qualquer outro.
 
O que há é a presença intemporal de tudo
no instante único e eterno deste presente.
 
Esta saudade é que me faz ser
mas ser nada.
 
E na escuridão e no silêncio desta casa
fria e nua
eu sou a alegria e a plenitude do canto
a graça e a consciência da luz.
 
 
 
antónio cândido franco
apeadeiro
revista de atitudes literárias
nr. 1 primavera 2001
quasi
2001




29 dezembro 2023

francisco brines / com quem farei amor?





 
 
 
                     A Juan Luis Panero
 
 
     Neste copo de genebra bebo
os cercados minutos da noite,
a aridez da música e o ácido
desejo da carne. Só existe,
onde o gelo se ausenta, cristalino
licor e medo à solidão.
Esta noite não haverá a mercenária
companhia, nem gestos de aparente
calor num escasso desejo. Longe
está hoje minha casa, a ela chegarei
na deserta luz da madrugada,
despirei meu corpo, e nas sombras
hei-de jazer com o tempo estéril.
 
 
 
francisco brines
aún no (1971)
ensaio de uma despedida
(antologia 1960-1986)
trad. josé bento
assírio & alvim
1987
 


28 dezembro 2023

elio pecora / circeo

 
 
 
Ulisses, inventor de brigas,
saiu do mar revolto
numa enseada de pedras.
Sob uma pérgula de uvas
remeteu todo o vigor
para Circe, a mais insaciável.
Dos muros do Ciclope
espreita os momentos da água
– remendada a vela,
Oleado o leme,
Volta à tarde ao navio
Imóvel atrás das rochas.
 
 
elio pecora
poemas escolhidos
motivetto (1978)
tradução de simoneta neto
quasi
2008




 

27 dezembro 2023

rui diniz / a solidão é a única certeza

 
 
A solidão é a única certeza.
Escutai: os pássaros gritam
nas azinhagas.
O relógio ausente,
a memória rachada.
Um porto de espera,
O odor vívido de mar.
já nem a tribo é refúgio
e a travessia do deserto
deixou um sabor amargo
na promessa nómada.
As ilhas são só origem
as cidades expulsam
o poeta.
Só a brancura da folha
estendida na mesa
coma sua ânsia de tinta
e o seu desejo de palavras
só essa virtualidade
nos é destino.
«A lâmpada funde-se
entre os dedos,
o silêncio apodrece.
Há flores por toda a parte,
definhando.»
a solidão é-nos destino.
Dela damo-nos conta
quando o encontro se desfaz,
entre gafes,
balbuciamentos.
Respiro, é tarde.
O teu retrato exude
a melancolia
de todas as distâncias.
Suspiro, cismo.
Um corvo crocita
de árvore em árvore.
No passado que se aproxima
terei sido esquecido.
 
 
 
rui diniz
ossos de sépia
noemas
língua morta
2022




26 dezembro 2023

sophia de mello breyner andresen / a pequena praça

 




 
A minha vida tinha tomado a forma da pequena praça
Naquele outono em que a tua morte se organizava
                                               [meticulosamente
Eu agarrava-me à praça porque tu amavas
A humanidade humilde e nostálgica das pequenas lojas
Onde os caixeiros dobram e desdobram fitas e fazendas
Eu procurava tornar-me tu porque tu ias morrer
E a vida toda deixava ali de ser a minha
Eu procurava sorrir como tu sorrias
Ao vendedor de jornais ao vendedor de tabaco
E à mulher sem pernas que vendia violetas
Eu pedia à mulher sem pernas que rezasse por ti
Eu acendia velas em todos os altares
Das igrejas que ficam no canto desta praça
Pois mal abri os olhos e vi foi para ler
A vocação do eterno escrita no teu rosto
Eu convocava as ruas os lugares as gentes
Que foram as testemunhas do teu rosto
Para que eles te chamassem para que eles desfizessem
O tecido que a morte entrelaçava em ti
 
 
 
sophia de mello breyner andresen
dual
caminho
2004
 




25 dezembro 2023

alberto caeiro / o mistério das coisas, onde está ele?

 
 
XXXIX
 
O mistério das coisas, onde está ele?
Onde está ele que não aparece
Pelo menos a mostrar-nos que é mistério?
Que sabe o rio e que sabe a árvore
E eu, que não sou mais do que eles, que sei disso?
Sempre que olho para as coisas e penso no que os homens pensam delas,
Rio como um regato que soa fresco numa pedra.
 
Porque o único sentido oculto das coisas
É elas não terem sentido oculto nenhum,
É mais estranho do que todas as estranhezas
E do que os sonhos de todos os poetas
E os pensamentos de todos os filósofos,
Que as coisas sejam realmente o que parecem ser
E não haja nada que compreender.
 
Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: —
As coisas não têm significação: têm existência.
As coisas são o único sentido oculto das coisas.
 
s.d.
 
 
 
alberto caeiro
o guardador de rebanhos
poemas de alberto caeiro
fernando pessoa
ática
1946