08 novembro 2023

joão pedro grabato dias / a arca

 
 
I
 
De altos senhores sou escravo. Ordenavam eles
que antes da partida inevitável,
a última, a sem rota ou aventura,
vase, no debuxo perene da palavra,
para os meus, o que na vida fiz
para merecê-la. Eis porque estando o sol
no último compasso e já passada
a casa do escaravelho, o azul estaca
como um potro assustado, e a cerviz dobro
em mais este trabalho e obrigação.
 
 
joão pedro grabato dias
odes didácticas
a arca, ode didáctica na primeira pessoa, 1971
tinta da china
2021
 


07 novembro 2023

josé gomes ferreira / pinhal

 




I

 

Poesia
– sabor próprio das palavras alheias
que se perderam dos objectos
naufragados na saliva das areias.
 
 
josé gomes ferreira
poesia V
pinhal - 1960
portugália
1973



06 novembro 2023

agustina bessa-luís / gostos




  

Um dos grandes factores do diálogo nos restaurantes e em todos os espaços gregários, é a discussão sobre os gostos, embora se saiba que não se discutem. Vendo bem as coisas, os gostos são um morbo cultural que justifica o tempo perdido em discuti-los. Vive-se muito de desinteligências menores, e por isso é que se alimentam cismas, birras, contrariações e fronteiras de todos os tipos. Os Portugueses não são muito caricatos nisso de odiar e aborrecer; talvez porque onde outros povos têm barreiras entre estado e costumes extremamente sádicos entre principados, nós temos passagens de nível. Melhor assim.
 
 
 
agustina bessa-luís
dicionário imperfeito
guimarães editores
2008


 

05 novembro 2023

joão habitualmente / pedras

 




 

 
Há pedras habitadas. Pássaros que não migram
só para não sofrerem a partida.
 
Esperam um ano a fio pelo regresso dos companheiros.
 
 
 
joão habitualmente
um dia tudo isto será meu
(uma antologia)
porto editora
2019


04 novembro 2023

luis cernuda / onde habite o esquecimento





 
Onde habite o esquecimento,
Nos vastos jardins sem madrugada;
Onde eu seja somente
Lembrança de uma pedra sepultada entre urtigas
Sobre a qual o vento foge à sua insónia.
 
Onde o meu nome deixe
O corpo que ele aponta entre os braços dos séculos,
Onde o desejo não exista.
 
Nessa grande região onde o mar, anjo terrível,
Não esconda como espada
A sua asa em meu peito,
Sorrindo cheio de graça etérea enquanto cresce a dor.
 
Além onde termine este anseio que exige um dono à sua imagem,
Submetendo a sua vida a outra vida.
Sem mais horizonte que outros olhos frente a frente.
 
Onde as dores e alegrias não sejam mais que nomes,
Céu e terra nativos em redor de uma lembrança;
Onde ao fim fique livre sem eu mesmo o saber,
Dissolvido em névoa, ausência,
Ausência leve como a carne de uma criança.
 
Além, além, longe;
Onde habite o esquecimento.
 
 
 
luis cernuda
antologia da poesia espanhola contemporânea
selecção e tradução de josé bento
assírio & alvim
1985
 



 

03 novembro 2023

arsenii tarkovskii / vida, vida

 




 

 

1.
 
Não acredito em pressentimentos, nem agoiros
Me assustam. Não evito a calúnia
Ou o veneno. Não há morte sobre a terra.
Todos são imortais. Tudo é imortal. Não há
Que ter medo da morte aos sete nem aos setenta. O real e a luz
Existem, mas não a morte ou a treva.
Viemos hoje à enseada,
E o cardume da imortalidade veio
Quando eu puxava as redes.
 
 
arsenii tarkovskii
8 ícones
versão de paulo da costa domingos
assírio & alvim
1987
 



02 novembro 2023

jorge de sena / suma teológica

 
 
Não vim de longe, meu amor, nem soçobraram
navios no alto mar, quando nasci.
 
Nada mudou. Continuaram as guerras;
continuou a subir o preço do pão;
continuaram os poetas, uma vez por outra,
a perguntar por ti.
 
É certo que, então, imensa gente
envelheceu instantânea e misteriosamente.
 
Mas até isso, meu amor, se não sabe ainda
se foi por minha causa,
se por causa de outros que terão nascido
ao mesmo tempo que eu.
 
 
 
jorge de sena
coroa da terra (1946)
trinta anos de poesia
editorial inova
1972



01 novembro 2023

nuno júdice / poema

 




 
Os poetas a quem a morte surpreende,
quando jovens, juntam-se algures noutra superfície.
De noite, os seus uivos atingem o celeste rebordo
da esfera; um ouvido mais atento distinguirá,
de entre os mil ruídos da terrível noite,
o seu coro de imprecação e choro.
De dia, adormecidos sob a terra, dissolvem-se
na humidade e nas raízes. Só os seus olhos,
na feroz abertura das pálpebras, ainda brilham
e mexem. No entanto, se alguma imagem da passada
vida os atormenta e obceca, tornam-se baixos
e baços. Uma escura lágrima cai em terra,
e o lodo assim formado me serve de alimento.
Os meus lábios e a minha língua adquirem
a sua consistência, e o meu rosto lamacento
volta-se para baixo, de onde surge um barulho
de mãos e de pés,
um barulho de vento nos órgãos vazios.
 
 
nuno júdice
o mecanismo romântico da fragmentação
editorial inova
1975




31 outubro 2023

josé carlos ary dos santos / a bruxa

 



 

As tetas são balofas almofadas
recheadas de esterco e de patranhas
da boca fogem bichas torturadas
pelo próprio veneno das entranhas.
 
As pernas são varizes sustentadas
pela putrefacção das bastas banhas
os olhos duas ratas esfomeadas
e as mãos peludas tal como aranhas.
 
Nasce do estrume e vive para o estrume
a língua peçonhenta larga fel
e é uma corda que ela-própria-puxa.
 
Sai-lhe da boca pus e azedume
tem pústulas espelhadas pela pele
e é filha de si própria. É uma bruxa.
 
 
 
ary dos santos
o sangue das palavras (1979)
vinte anos de poesia
círculo d eleitores
1984
 



30 outubro 2023

mário de sá-carneiro / o pajem

 




 
 
Sozinho de brancura, eu vago – Asa
De rendas que entre cardos só flutua…
– Triste de Mim, que vivo de Alma prà rua,
E nunca a poderei deixar em casa…
 
                                           Paris – novembro 1915
 
 
 
mário de sá-carneiro
poemas
biblioteca editores independentes
assírio & alvim
2007
 




29 outubro 2023

vasco graça moura / de olhos fechados

 
 
1
 
deixava-se falar, tecer
excitações sobre o mundo,
na fronteira enervada
de nunca serem horas de dormir.
 
uma presença podia ser
apenas a marca jacente,
a crispação deixada pelo peso
quente da cara na almofada.
 
num relevo de palavras ditas antes,
de olhos fechados, vibrava
o assustador, o subitamente perturbante
de uma maior nudez
 
na febril fabricação da fala
num território alucinado,
como se a luz entrecortasse, extra-
vagando, as imagens.
 
 
 
vasco graça moura
a sombra das figuras
poesia 1963/1995
quetzal editores
2007






 

28 outubro 2023

artur do cruzeiro seixas / há uma espécie de flor

 




 
Há uma espécie de flor
que vejo naquela rua.
 
Por isso por ali passo
como se isso fosse necessário
à salvação do mundo.
 
De tanto olhar a flor
um dia
soube enfim o seu nome.
 
Olhou-me
e disse:
sou o António…
 
África, 60
 
 
cruzeiro seixas
viagem sem regresso
tiragem limitada
2001
 




27 outubro 2023

herberto helder / os capítulos maiores da minha vida

 
 
os capítulos maiores da minha vida, suas músicas e palavras,
esqueci-os todos:
octagenário apenas, e a morte só de pensá-la calo,
é claro que a olhei de frente no capítulo vigésimo,
mas não nunca nem jamais agora:
agora sou olhado, e estremeço
do incrível natural de ser olhado assim poe ela
 
 
 
herberto helder
servidões
assírio & alvim
2013