Ela surge – mas só à meia-noite, quando todos os
pássaros brancos fecham as suas asas sobre a ignorância das trevas, quando a
irmã das miríades de pérolas oculta as mãos na sua cabeleira morta, quando o
triunfador se compraz na volúpia dos soluços, cansado das suas devoções à
curiosidade, máscula e esplêndida armadura de luxúria. Ela é tão meiga que o
meu coração se transforma. Eu temia as grandes sombras que tecem os tapetes do
jogo e os vestidos, tinha medo das contorções do sol ao cair da noite, dos
inquebráveis ramos que purificam as janelas de todos os confessionários onde as
mulheres adormecidas nos esperam.
Ó busto de memória, erro de formas, linhas
ausentes, chamas extintas dos meus olhos cerrados, estou perante a tua graça
como uma criança na água, como um ramalhete de flores num grande bosque. Nocturno,
o universo move-se no teu calor e as cidades de ontem têm gestos de rua mais
delicados do que a flor do espinheiro, mais impressionantes do que a hora. A terra
ao longe multiplica-se em sorrisos imóveis, o céu envolve a vida: um novo astro
do amor desponta em todos os horizontes, e eis que os últimos sinais da noite
se desvanecem.
paul éluard
algumas das palavras
trad. antónio ramos rosa e luiza neto jorge
publicações dom quixote
1977