10 outubro 2023

juan manuel bonet / não tenhas medo

 
 
 
Pelo corredor avança a penumbra,
umas formas que parecem fantasmas.
Mas não tenhas medo, não são espíritos maus.
São apenas duendes brincalhões
cujo ser se dissolve na música
do piano vizinho ou na canção
de um rio do teu país, que lembres
fechando os olhos. Não, não tenhas medo,
eu acenderei a lâmpada e ir-se-ão.
 
 
 
juan manuel bonet
poesia espanhola de agora volume I
trad. de joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997





09 outubro 2023

rui diniz / o outono

  
Num lugar ao sul às aves lentas é dado
o trémulo saber do mar. As asas afastadas,
o sangue inquieto e um único olhar que
enfrente as mãos e o riso da intempérie,
estas aves deslocam-se e viajam, frequente-
mente até ao norte, a uma galiza sonhada
na pureza do céu, sob o trajecto das primeiras
chuvas, em novembro ou outro mês. O frio
transporta-as aos velhos palácios da Cantuária,
a instância do seu nome e do seu fulgor
arrasta-as até aos enormes salões e ameias,
num precipício comum, a aventura leda e
cega do animal, sua rota de acaso, sua beleza
imortal. Nos campos ásperos e molhados dos
manors, rostos, serenidade e demência, perante as frágeis
regiões que percorrem, abrem sua sulcada voz
e um instante é percorrido desse balbuciar alado,
sombras no céu da silhas, no exacto lugar
de junção das correntes do estreito, caudais
fortes e rápidos, certeza, decisão, um lugar.
Por fim, quando da travessia exaustas, se
Deixam vogar na solidez de um vento, e
Nesse semelhante gesto ao do amor, seu destino
Qual for entre si abertas deliberam.
 
 
 
rui diniz
ossos de sépia
noemas
língua morta
2022





08 outubro 2023

vicente aleixandre / vida





 
Um pássaro de papel no peito
diz que o tempo dos beijos não chegou;
viver, viver, o sol invisível crepita,
beijos ou pássaros, tarde ou cedo ou nunca.
Para morrer basta um pequeno ruído,
o de outro coração ao calar-se,
ou esse regaço alheio que na terra
é um barco dourado para os cabelos louros.
Cabeça dolorida, têmporas de ouro, sol que declina;
aqui na sombra sonho com um rio,
juncos de verde sangue que neste instante nasce,
sonho apoiado em ti, calor ou vida.
 
 
 
vicente aleixandre
la destrucción o el amor (1932-1933)
antologia de vicente aleixandre
tradução de josé bento
editorial inova
1977



 

07 outubro 2023

ted hughes / a máquina

 
 
 
A escuridão devorava-te. E o medo
de seres esmagada. «Uma enorme máquina escura»,
«a mó trituradora e indiferente das circunstâncias». Depois
de olhares o poente alaranjado, foram estas as palavras
que escreveste numa folha. Tinham vindo ter contigo
e eu não. Quando tentaste
fazer-me subir até ao cimo da escada, foi esse terror
que chegou em vez de mim. Enquanto
eu estava, se calhar, sentado com o Lucas, sem outro propósito
do que de cuidar do cão
que não tinha. Um cão a sério
talvez tivesse fitado o vazio,
com os pêlos arrepiados
enquanto a máscara grotesca do teu Mãe-Pai,
metade pedreira, metade hospital, mas no seu toso
de uma força irresistível, cheia dos teus poemas por escrever,
vinha até mim, invisível sem um murmúrio
por entre os imóveis salgueiros,
através da parede do The Anchor,
onde eu esvaziava a minha Guinness de um só trago
sorvendo-me obscuramente
para o interior do outro mundo
onde encontraria a minha casa. Os meus filhos. E a minha vida
sempre a tentar subir os degraus agora de pedra
em direcção à porta agora vermelha
que tu, no teu jeito habitual, abririas
ainda com tempo para falar.
 
 
 
ted hughes
cartas de aniversário
trad. de manuel dias
relógio d´água
2000
 




06 outubro 2023

sylvia plath / o enforcado

 
 
 
Pela raiz dos meus cabelos algum deus me agarrou.
Crepitei nos seus vóltios azuis como um profeta no deserto.
 
As noites fecharam-se de repente como a pálpebra de um lagarto:
Um mundo de dias brancos e monótonos, numa cova sem
     sombra.
 
Um aborrecimento de abutre pregou-me aqui a esta árvore.
Se ele fosse eu, faria o que eu fiz.
 
 
sylvia plath
ariel
trad. maria fernanda borges
relógio d´ água
1996





05 outubro 2023

sophia de mello breyner andresen / intervalo

 




 
Eu só quero silêncio neste porto
Do mar vermelho, do mar morto
 
Perdida, baloiçar
No ritmo das águas cheias
 
Quero ficar sozinha neste espanto
Dum tempo que perdeu a sua forma
 
Quero ficar sozinha nesta tarde
Em que as árvores verdes me abandonam
 
 
 
sophia de mello breyner andresen
coral 1950
obra poética I
caminho
1999
 



04 outubro 2023

neil curry / sobre nada em especial

 



 

 
Eu nunca teria conseguido
                      fazer nada,
              Se não tivesse sido capaz
                             de não fazer nada.
 
 
neil curry
companhia a mrs woolf
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2017





03 outubro 2023

natércia freire / logo que nasci






 

 
Logo que nasci
Foi-me dada ordem
De me procurar.
Logo assim e aqui
Não vou ter descanso
Em nenhum lugar
 
 
 
natércia freire
liberdade solar (1978)
antologia poética
assírio & alvim
2001
 


 

02 outubro 2023

amalia bautista / conheci um dia um homem tão estranho




 

Conheci um dia um homem tão estranho
que continuo a recordá-lo. Disse
que estava condenado para sempre
a suportar o peso de uma enorme
pedra sobre os seus ombros, e que nunca
a levaria até ao seu destino.
Contive a vontade de lhe dizer
“que achas que faço eu com estes fios?”
 
 
 
amalia bautista
trevo
tradução de inês dias
averno
20212
 


 

01 outubro 2023

ana paula inácio / auto-retrato II

 




 
Vivo com a crença estranha
de que nasci morta
e fiz a opção precoce
plas ruas escuras
de la Calle de l’Amargura de Cáceres
à de los Tigres de Martín del Castañar.
Parasita de quem me deita a mão,
fantoche presa por fios,
como se foram tubos
de alimentação artificial,
vivo da generosidade alheia
de quem me dá poesia
por pão ou rosas, Salvé rainha,
nascera eu a 19 de Maio de 1980
e poderia chamar Mário de Sá-Carneiro, meu doce irmão.
Nasci mesmo em 1966
aos doze dias do mês de Junho
sem par,
filha única
«tenho a minha casa para olhar»
 
 
 
ana paula inácio
2010-2011
averno
2011



30 setembro 2023

ana hatherly / 463 tisanas

 
 
337
 
A minha poética do real manda-me que o diga. Mas o que vêem os meus olhos? O melhor do que eu vejo não se vê olhando. Penso nisso e depois escrevo: como eu gostava de poder acreditar nessa vaidade que a todos deita por terra.
 
 
ana hatherly
463 tisanas
quimera
2006
 






29 setembro 2023

ana luísa amaral / a impossível sarça





 
Que mais fazer
se as palavras queimam
e tanta coisa em fumo em tanta coisa
sarças ardentes do avesso
o fogo em labaredas que mais
fazer
 
Que mais fazer
se nem a água tantas vezes
descrita        abençoada
mas de mais e cristã
também castigo
 
Mas como nem castigo
nem as nuvens de fumo na sarça
do avesso
se tudo no avesso
das palavras
 
que não chegam
– mas cegam
 
 
ana luísa amaral
vozes
dom quixote
2011
 


 


28 setembro 2023

wislawa szymborska / sorrisos

 
                                                              
 
Mais alma põe o mundo em ver do que em ouvir.
Os homens de estado têm que sorrir.
Sorrir é sinal de que mantêm a calma.
Seja o jogo ínvio, os interesses outros,
incerto o final, é sempre um consolo
ver a dentadura branca e cordial.
 
Têm que gentis mostrar os seus rostos,
nas salas de encontro, lajes de aeroportos.
Moverem-se lestos, parecerem felizes.
Este acolhe aquele, diz adeus ao outro.
Uma cara risonha é sempre precisa
para o ajuntamento, para a objectiva.
 
Os dentistas, tratando os diplomatas,
são o garante de triunfos espantosos.
Caninos fidedignos, condignos incisivos,
não podem faltar nos transes perigosos.
Os tempos não vão ainda de feição
a que se possa ver nas faces uma simples tristeza.
 
Pensa quem sonha, que a humanidade fraterna de certeza
há-de mudar o mundo na terra dos sorrisos.
Eu cá duvido e, sejamos mais precisos, os estadistas
não deviam rir-se assim e dar tanto nas vistas.
Só às vezes: é primavera, é outono,
sem crispações nem urgência escusada.
É triste por sua natureza o ser humano.
A minha esperança é vê-la um dia revelada.
 
 
 
wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998