27 agosto 2023

antónio gedeão / uma qualquer pessoa

 
 
Precisava de dar qualquer coisa a uma qualquer pessoa.
Uma qualquer pessoa que a recebesse
num jeito de tão sonâmbulo gosto
como se um grão de luz lhe percorresse
com um dedo tímido o oval do rosto.
 
Uma qualquer pessoa de quem me aproximasse
e em silêncio dissesse: para si.
E uma qualquer pessoa, como um luar, nascesse,
e sem sorrir, sorrisse,
e sem tremer, tremesse,
tudo num jeito de tão sonâmbulo gosto
como se um grão de luz percorresse
com um dedo tímido o oval do rosto.
 
Na minha mão estendida dar-lhe-ia
o gesto de a estender,
e uma qualquer pessoa entenderia
sem precisar de entender.
 
Se eu fosse o cego
que acena com a mão à beira do passeio,
esperaria em sossego,
sem receio.
Se eu fosse a pobre criatura
que estende a mão na rua à caridade,
aguardaria, sem amargura,
que por ali passasse a bondade.
Se eu fosse o operário
que não ganha o bastante para viver,
lutava pelo aumento do salário
e havia de vencer.
 
Mas eu não sou o cego,
nem o pobre,
nem o operário a quem não chega a féria.
 
Eu sou doutra miséria.
A minha fome não é de pão, nem de água a minha sede.
A minha mão estendida e tímida, não pede.
Dá.
Esta é a maior miséria que, em todo o mundo: há.
 
E eu que precisava tanto, tanto, de dar qualquer coisa a uma
      qualquer pessoa!
 
E se ela agora viesse?
Se ela aparecesse aqui, agora, de repente,.
se brotasse do chão, do tecto, das paredes,
se aparecesse aqui mesmo, olhando-me de, frente
toda lantejoulada de esperanças
como fazem as fadas nos contos das crianças?
 
Ai, se ela agora viesse!
Se ela agora viesse, bebê-la-ia de um trago,
sorvê-la-ia num hausto,
sequiosamente,
tumultuosamente,
numa secura aflita,
numa avidez sedenta,
sôfregamente,
como o ar se precipita
quando um espaço vazio se lhe apresenta.
 
 
 
antónio gedeão
máquina de fogo
1961




26 agosto 2023

armando silva carvalho / armas brancas

 
 
3.
 
Terás tempo também para o murmúrio.
Para a água cantante. Para as falsas fontes
de Roma e da cultura.
Os Bárbaros isolam os metais junto à fronteira.
Ouvem-se-lhes os gritos por cima das alfaias.
Nem a neve os detém nem a canícula
que o dia de hoje é a lagoa enorme onde desaguam
os nomes todos dados à palavra.
De noite se quiseres podes fazer a tua cama em África
e o sangue aceso seguirá a música
entre o cobalto e a linha Maginot.
Da renda mais tranquila escolherás os melhores vocábulos:
a mãe risonha sob os castanheiros,
a viola muda ao canto da sala,
o rubor do pão oculto no regaço.
Ninguém te levará esta manhã a sério.
Partes os caules das jarras conscientes
bebes o mijo louro
e espreguiças-te no interior dos átrios
literários.
Com uma nova máquina fazes a barba
À relva adolescente dos sentidos.
 
 
 
armando silva carvalho
armas brancas 1977
o que foi passado a limpo, obra poética
assírio & alvim
2007
 



25 agosto 2023

lars huldén / encontrei-me com um homem em tiblis

 
 
Encontrei-me com um homem em Tiblis
que me disse que te ama.
A noite já ia alta lá no hotel.
Estava em frente a mim no quarto
e disse-me que te amava.
Fazia-me lembrar um pouco eu mesmo
mas tinha o penteado ao contrário
e o pijama abotoava à esquerda.
 
 
                 Island i december, 1976
 
 
 
lars huldén
o mundo adormecido espera impaciente
antologia de poesia finlandesa
trad. amadeu baptista
contracapa
2021
 



24 agosto 2023

howie good / entre as musas

 
 
Os taxistas viram-se sempre e perguntam-me
“Pra onde?”. Há vezes em que penso
em lá voltar. Mas não o faço.
O que vi simplesmente não faz sentido –
uma mulher mais ou menos como a Emily Dickinson,
com um bibe preto sinistro, de pé junto à janela
com o alfabeto a rondar à sua volta.
Apercebes-te de como aquilo era perigoso?
Tão perigoso que perdi um sapato ao fugir.
 
 
 
howie good
afagando a face de lorca
uma antologia
trad. francisco josé craveiro de carvalho
companhia das ilhas
2020




23 agosto 2023

carlos de oliveira / sesta

 
 
Dentro do bosque
os passos dum caçador.
Dentro da sombra
a cobra do calor.
 
E dentro do meu sono
outro sono maior.
 
Estalando as folhas secas
vai a cobra invisível.
Nas mãos do caçador
ainda a vida é plausível.
 
Só dentro do meu sono
toda a morte é possível.
 
 
 
carlos de oliveira
colheita perdida
trabalho poético
livraria sá da costa editora
1982





22 agosto 2023

fernando lemos / princípios

 
 
no princípio era o silêncio sem rosto apenas vácuo
apenas vácuo obstinado raiz de tempo
não observado mas repleto de plumas
névoa traçada no ponto mais sublimado
 
que da luz o pó colado noutro pó
em chamas intercaladas   respiração
boca-a-boca novos suspiros e bolhas
incandescentes de ardida saliva
 
recorte de canção em sílaba só
curta desenhada de inércia e traço
imenso com linha irreconhecível
de tantos cheiros anunciados na ânsia
 
a cor das plantas de arame seco    na
água feita de terra recuperada
para se ver o nada crescer no poente
como véu escuro de primeiro sombreado
 
 
1998
 
 
 
fernando lemos
poesia
porto editora
2019



21 agosto 2023

joão rebocho / faltaste um verão

 



 

faltaste um verão
e outro
o recolher obrigatório
anos depois
faltaste o
não devias ter vindo
 
 
 
joão rebocho
vende-se gelo
heteronimus
2023




20 agosto 2023

josé manuel teixeira da silva / porto, traseiras da sé

 



 
                                              para os meus pais
 
 

São nossos, tão de longe, esses olhos
Por aqui sempre ficaram
no esplendor reverso das traseiras
Longamente inscrevem, na luz que os enruga
a mais aérea e límpida gravura
 
Tudo o que da água sabe o filho de um peixe
assim nos ensinam, distraídos
a inclinar a cabeça, como evitar
a demorada disposição da terra
um tempo que em relances se acumula
 
Encontramo-nos todos nestes pátios
inocentes das nuvens que nos sabem
Há luzes que se acendem a espaços
pelo granito, caliça, ferros, aquela torre
Alguém de novo as vê uma primeira vez
 
 
 
josé manuel teixeira da silva
as súbitas permanências
quasi
2001




19 agosto 2023

guilherme gontijo flores / desiderium



 
Como quem vê no céu
que estrelas faltam
achar em cada falta
seu desejo
& assim deliberadamente
desastrá-lo
 
 
 
guilherme gontijo flores
carvão: :capim
artefacto
2017


 



18 agosto 2023

josé carlos barros / poema

 
 
Até à praia vinham do mar alto, às
vezes. Traziam cordas e cigarros, lenços
e perfumes, óculos e usos
tão diferentes. Misturavam tudo nos copos,
dançavam em cima das mesas, partiam
vidros, pediam em voz alta
mais cerveja, música, vinho, tiravam
droga dos bolsos fundos. Tinham sempre
dinheiro para trocar por um corpo, e
depois um corpo para trocar por
dinheiro. Faziam tatuagens nos
braços, atavam os pulsos que
cortavam, contavam segredos até
de manhã. Nunca se cansavam.
 
 
 
josé carlos barros
estação
on y va
2020
 



17 agosto 2023

rui diniz / postal com guache

 
 
Com Zelkie, com Vania. Ou um remoto retrato
De Dorian Gray. Eis como vivo – digo para mim.
Há sangue. Bebem beer na gare do midi.
Mas eu exilei-me em Toledo,
comprei livros. Durmo. Como laranjas num bar.
E quando é noite sonho cavalos, como suas narinas
Alargando cheiram o perigo.
 
Com Tom, pergunto. Um tom de sinos em infâncias
com vasos etruscos. Dilatam os rostos nos sons. São
os criados, no fundo, varrendo o desconsolo. Há anos.
Com uma faixa azul sobre o vestido de organdi branco:
Vania vestida para beber gin. Ou um remoto cais.
Ou um quadro de bosch. Com figos,
na prisão.
 
 
 
rui diniz
ossos de sépia
noemas
língua morta
2022




16 agosto 2023

Isabel de sá / memória de infância

 
 
O corpo do rapaz irradiava um esplendor juvenil. Os músculos eram macios, a pele coberta por uma penugem ainda leve.
 
Atravessáramos o Inverno absorvidos pela ânsia de conhecimento. Não seria especialmente a ternura ou o afecto que nos unia, antes a aventura dos corpos no extremo da adolescência. Ele tinha uma forma peculiar e sensível de brincar com os meus cabelos muitos lisos, fazendo passar por eles os dedos como agulhas. Este corpo de rapaz vivera no poema.
 
Um mamilo pequeno e claro trouxera à minha pele lenta memória de infância: a menina que um dia me tomara por recém-nascido alimentando-me do sue brevíssimo seio.
 
Chegara Setembro com a poalha ténue do entardecer. Nossos corpos entravam no estado adulto onde cada um procurava o poema, isolado numa solidão própria.
 
 
 
 
isabel de sá
semente em solo adverso (poesia reunida)
em nome do corpo 1985
officium lectionis edições
2022
 




15 agosto 2023

luís filipe parrado / álvaro de campos revisited (2019)





 
Sim,, tenho tudo,
tudo o que preciso de ter,
as unhas sujas de terra,
a possibilidade
dos mais vastos domínios,
o cordel de enrolar o pião.
Sim, tenho tudo.
Só não tenho o pião.
 
 
 
luís filipe parrado
roma não perdoa a traidores
língua morta
2021