28 junho 2023

wislawa szymborska / engano

 
 
Ressoou na galeria de retratos o telefone,
ressoou à meia-noite na sala vazia;
se alguém aqui dormisse logo acordaria,
mas aqui só há profetas insones,
só rainhas a empalidecerem para a lua
e olhando o que lhes é igual sem respirar;
e a aparentemente agitada mulher do usurário
para aquele preciso objecto, no armário, a tilintar –
mas não, não pões de lado o leque
e fica como os outros suspensos no seu ócio.
Eméritos ausentes, em pêlo ou de armadura,
passam pelo alarme nocturno a distracção
na qual eu juro haver mais humor negro
do que se o próprio castelão saltasse da moldura
(de resto, for o silêncio nada mais lhe soa nos ouvidos).
E que interessa se alguém na cidade há já bocado
aplica ingenuamente o bocal à orelha
porque marcou o número errado? Só se engana quem está vivo.
 
 
 
wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998
 



27 junho 2023

louise glück / telescópio

 



 
Há um momento após desviares o olhar
em que te esqueces de onde estás
pois tens vivido, parece,
noutro lado, no silêncio do céu nocturno.
 
Deixaste de estar aqui no mundo.
Estás num lugar diferente,
um lugar onde a vida humana não tem sentido.
 
Não és uma criatura num corpo.
Existes como as estrelas existem,
participando na sua quietude, na sua imensidão.
 
Até que volta a estar no mundo.
De noite, numa colina fria,
a desmontar o telescópio.
 
Só depois percebes
que não é falsa a imagem
mas a relação.
 
Vês de novo como cada coisa
fica tão longe de todas as outras.
 
 
 
louise glück
averno
tradução de inês dias
relógio d´água
2020




26 junho 2023

eunice de souza / dizei-me




 
 
Morte, dizei-me
Dia, Hora, Local.
Tenho de procurar
As minhas cuecas pecaminosas,
Marcar uma consulta
Com um pedicuro
 
 
 
eunice de souza
coração de abacate
trad. francisco josé craveiro de carvalho
do lado esquerdo
2018
 


 

25 junho 2023

manuel antónio pina / morada

 
 
Sozinho na grande cama,
perdido nos seus frios corredores,
ouço, de quartos interiores,
a tua voz que me chama.
 
Do fundo da noite enorme
onde pouso a cabeça por fora
a tua voz de alguém acorda-me
como num sono insone.
 
Como se a tua voz agora
antigamente me chamasse
e tudo, menos a tua voz, faltasse
fora da minha memória.
 
 
 
manuel antónio pina
o caminho de casa (1989)
todas as palavras, poesia reunida
assírio & alvim
2012




 

24 junho 2023

vasco graça moura / sobre a minha cidade


antonio cruz, sem título 1941

 

 
sobre a minha cidade, falei-te ontem mostrei-te
as esquinas do tempo, a imagem de fachadas
que ainda conheci, de outras que
eu próprio ignorava; sobre
 
a minha cidade e suas pedras, seus espaços
de árvores graves; e o que foi arrasado,
ou está a desfazer-se; as manchas do presente, a
poluição dos homens; e o que foi
 
violentamente arrancado por negócios sucessivos,
erros, brutalidades: o que era e o que foi
o que é dentro de mim o seu obscuro,
imaginário ser: costumes e conflitos,
 
maneiras de falar, a gente
e a confusão das ruas, as casas do barredo;
sobre a minha cidade achei que tu
tiveste gratidão, a viste.
 
que percorreste as pontes que da minha
cidade a ti me trazem, entre
gaivotas alastrando e músicas diferentes,
e foste nascer nela.
 
 
 
vasco graça moura
os rostos comunicantes
poesia 1963/1995
quetzal editores
2007
 


23 junho 2023

eugénio de andrade / porto


antonio cruz, óleo sobre madeira

  

O Porto é só uma certa maneira de me refugiar na tarde, forrar-me de silêncio e procurar trazer à tona algumas palavras, sem outro fito que não seja o de opor ao corpo espesso destes muros a insurreição do olhar.
 
O Porto é só esta atenção empenhada em escutar os passos dos velhos, que a certas horas atravessam a rua para passarem os dias no café em frente, os olhos vazios, as lágrimas todas das crianças de S. Vítor correndo nos sulcos da sua melancolia.
 
O Porto é só a pequena praça onde há tantos anos aprendo metodicamente a ser árvore, aproximando-me assim cada vez mais da restolhada matinal dos pardais, esses velhacos que, por muito que se afastem, regressam sempre à minha vida.
 
Desentendido da cidade, olho na palma da mão os resíduos da juventude, e dessa paixão sem regra deixarei que uma pétala pouse aqui, por ser de cal.
 
 
 
eugénio de andrade
vertentes do olhar
poesia
fundação eugénio de andrade
2000




22 junho 2023

nuno júdice / elegia

 
 
Ouvi dizer que não se dava com ninguém,
nos últimos tempos; subia sozinho a rua, até ao café,
e nada lhe desviava o olhar de uma atenção fixa
em algures, ou num pensamento que guardou para
si próprio. A vida é sempre uma realidade frágil
para quem se apercebe do outono e os primeiros ventos
do norte, que trazem consigo os céus limpos e as nuvens frias,
arrefecem a alma que não ganhou o hábito da solidão. «A poesia,
respondo-lhe, não dá resposta a esse último desconforto
do ser.» Ele não me ouve, agora que o seu próprio nome
se apaga na monotonia das tardes e das lentas estações. Só
uma ave antiga cruza, por vezes, o céu de esquecimento
em que a sua sombra dorme; deixando um sulco de asas,
como um verso, acordar por instantes a sua imagem.
 
 
 
nuno júdice
hífen 6 fevereiro, 1991
cadernos semestrais de poesia
heresias
1991
 



21 junho 2023

eduardo pitta / ligações perigosas

 
 
A história deles pode ter sido,
por vontade alheia,
a simulação excessiva
e luminosa
de outra culpa maior.
Ainda que Inês fosse um chavalo
 
Pedro não andaria ali à toa
e a legenda dos algozes trucidados quadra
de viés numa corte predadora.
Importa pouco a conexão
estrangeira, as dezassete léguas
de um cortejo
 
siderante como aqueloutro que à luz
de seiscentas arrobas de cera
para sempre mediatizou
D. João Afonso Telo, miminho
de cantareira de el-rei.
A boca à mercê de novas dominações.
 
 
eduardo pitta
hífen 6 fevereiro, 1991
cadernos semestrais de poesia
heresias
1991
 



20 junho 2023

antónio barbedo / as vozes dentro da cabeça

 
 
 
…all the fury, the anguish, the remors,
the voices, voices, voices, voices…
                   
                                                MALCOLM LOWRY, Lunar Caustic


 
1. LUNA PARK
 
Quando subiu a escada de corda sabia que. Do outro lado pode haver uma barra, ou não. Do outro lado pode haver a mão à espera. Lançou-se no trapézio, entre aplausos e música.
Quando caiu na pista ainda respirava. Nas espáduas despontava uma ligeira plumagem. Como se fossem asas.
 
2. E UMA MOEDA NO BOLSO
 
Da arte de cultivar a rosa ele sabia.
Quando fechou as persianas, a porta, eram as primeiras horas da manhã. Não deixou bilhetes, número de telefone, fotografias. Um casal encontrou-o uns dias depois nas dunas. Morto, com um tiro na cabeça.
Na autópsia descobriram, incrustada no cérebro, em lugar da bala, uma viçosa flor vermelha.
 
3. MÃE
 
Tinha deixado escrito, a letra miúda, o aparo de ouro, a tinta violeta, no caderno de viagem – depois do deserto é o mar. quando o rasto na areia húmida se dividiu, espantando as gaivotas. E caminhou para a água, onda após onda, na memória do exílio, até à voragem.
 
4. VIAJANTE DE MUITOS ROSTOS
 
Quando encontrou o caçador de instantes a luz reflectiu-se na lenta da câmara fotográfica. Apontada com cuidado, disparando guardava imagens, não pensamentos nem afectos, instantâneos. Como um tiro numa emboscada em áfrica.
A luz queimava o olhar. O duplo estava próximo, focava a máquina. Devagar, sem ruído, arrastou-se para a sombra. Apertou a navalha no bolso. Alguém murmurava: - morre-se quando a imagem da retina encontra a imagem da película.
 
5. SALMO
 
Ela apagou a luz e queimou o incenso. Disse: - Para onde ir longe do teu espírito, como ocultar-me da tua face?
Quando ele chegou descobriu as sete lâminas dispostas sobre a mesa. Uma vela na penumbra alumiava-lhe o corpo coberto de fios. Da vulva aos mamilos armadilhado, o cronómetro ao ritmo do pulso, a granada sobre o peito. Escutou no clamor da música a voz indistinta – alma, arma, ama.
 
6. O CADERNO QUEIMADO
 
Tinha comido as fezes, bebido mijo: fodera uma cabra. Quando atravessou o rio, rasgou os pulsos, cobriu-se de terra. Leu: – se tudo está escrito desaprender a falar é o que resta.
Acordou. Fez a barba, deu lustro aos dentes. Lá fora as primeiras vozes, sirenes. E o coração apodrecendo contra as grades, contra.
 
 
 
antónio barbedo  
hífen 6 fevereiro, 1991
cadernos semestrais de poesia
heresias
1991



19 junho 2023

helga moreira / sentido algum nos permite revelar

 
 
Sentido algum nos permite revelar onde estamos
ou, apenas um percalço, a sensação sempre presente
de desprendimento.
Intuímos como quem segue a noite em imagens
sem nomeações ou mistérios
abandonados apenas ao desencadear de turbulências
que nos trazem alegrias, tristezas,
um ou outro odor, alguma mágoa.
 
Vamos confinando o dia, a noite, todo o corpo
ao olhar, à voz que nos persegue
e nunca é demais a tarde
quanto é tarde já pela manhã e melhor fora
não repartir esta luz à medida, por vezes, do ardor
e do que fica no poema
outra conjura, outro norte, a mesma voz, um outro tema?
 
 
 
helga moreira
hífen 6 fevereiro, 1991
cadernos semestrais de poesia
heresias
1991
 
 

18 junho 2023

gil de carvalho / discours de la méthode

 
 
É verdade. Amanhã não terás tão pouca seca na varanda.
Penso, logo, a ferida.
Corres ao longo da casa, feliz, aprendes
Costura, o riso na corda dos portões,
Uma casa de correcção para os lábios,
Abertos, dizem todos.
Mal te conhecem, e nunca lembram
Da pá que procura terra perdida
Vês na boca
Quente, um vestido, ao vento traz
A tua pele. Ergo, «uma certeza».
A febre na veneziana que nada esconde
Da tua vida, entre finas persianas,
Vi-te, áspera já na luz
Cauterizada, perdida naquela rua,
Antes, ninfas que pelo cheiro na varanda
O vulcão comprima. O fundo cortado à saída
No pudor sem astros, História. ‘Manhã
Descobres terra, infinita, invisível ainda
Fria.
 
 
gil de carvalho
hífen 6 fevereiro, 1991
cadernos semestrais de poesia
heresias
1991
 



17 junho 2023

jorge figueira / um a um caminhamos sem mãos

 
 
Passo pelos cafés do porto e
nossa senhora nunca vi povo tão
violado tão entregue à mesa
aos guardanapos
aos infinitos da mesa
cruciforme.
limpam os dedos
das mãos.
cegam o pescoço como
crianças estrábicas
tocam na estridência do inferno
e no carisma do pé
levantam voo num arredondado
de estupidez e saliências.
(demasiado sobre a mesa
o vinho e a água criam
demasiada suspensão
comunal).
cada um tem as suas barbatanas
veias grossas e
infalíveis
cada um vai ao seu museu
 
as mulheres carregam a tradição
da sombra
concebem a roupa do sono
ideias tremeluzentes
e sob um tecto moribundo
e violeta
esperam pelo bailarino
pelo bailado central
do homem
hércules.
 
 
jorge figueira
hífen 6 fevereiro, 1991
cadernos semestrais de poesia
heresias
1991
 



16 junho 2023

josé emílio-nelson / a dimensão do céu

 



 
Entre as imagens do céu, as de maior beatitude e profundeza, são as que se proíbem à criança: a descida da noite ou a iluminação atroante do dia.
 
Desdobra-se a luz finíssima e as nuvens apagadas dão um novo rosto aos céus. O que se perdeu daquele tecto de estrelas é o calcanhar vagaroso e encoberto que passeia. Disse-me, é a Lua. A criança estava deitada a vê-la mover-se depressa, e a mostrar aquele aspecto de cavalo manso à bicharada da neblina. E vê um louco a atar o cabelo de um gigante na crina, o homem a acordar arrastado pela convulsão do vento e a fragilidade de uma figura, anão talvez, que se sente perseguido. Outros embatem nesse corpo impetuoso de Deus. Um olho único, luzidio, indescritível, empalidece com a monstruosidade do Príncipe das Trevas.
 
Abre-se o azul naquele espaço vasto e algo soberano faz girar o cone de um Universo que assustava a criança. Na verdade, a dimensão do céu é a alma da criança.
 
 
 
josé emílio-nelson
hífen 6 fevereiro, 1991
cadernos semestrais de poesia
heresias
1991