02 maio 2023

carlos saraiva pinto / havia mais ar

 



 
havia mais ar.
mais limites de árvores.
um charco era um espelho
que tinha sua esperança
e os musgos sabiam que a chuva
chegava cedo
quando o outono
escolhia os choupos das margens
para dar ao douro
o nome que um corpo sentia,
 
próximo da boca e do olhar
por quem são João da cruz
abandonava neve nas montanhas
 
eu subia para a lareira
e tudo era um livro aberto
de navios infantis
no caudal dos tanques.
 
hoje, a luz é mais complexa
e dorme neste quarto asilar
a que pertence a desordem
dos papéis.
os meus projectos são poucos.
apenas desejo sentir os ombros
sobre as ruínas das famílias sepultadas.
 
teu ramo de rosas chegou tarde.
 
o sublime não arde nos quintais
onde decido desprender-me
dos papéis insensatos e loucos.
 
a orfandade é o ciclone que uivará
nas vidraças
que escondem aquele recanto da casa
em que repousa a minha cabeça na travesseira.
 
O tempo não pertence ao amor.
tarde o reconheço.
 
a palavra da vigília
alimenta vasos e sementeiras
que no pátio
dão alguma serenidade
àquilo que a poesia antecipa.
dispo o casaco vulgar
e a poeira torna-se líquida.
os remos são poucos
nas metáforas.
nem sei se o pão
que trouxe para as paisagens
bastará para a fome.
 
 
 
carlos saraiva pinto
escrever foi um engano
o correio dos navios
2001
 



01 maio 2023

alexandre o'neill / o tabaco da vida

 



 
De amor cantando,
sem nele demasiado acreditar,
dei a volta ao coração (demorei anos):
está só – mas sem nenhuma vontade de parar…
 
Desiludidos? Paciência, amigos…
Bebamos mais, fumemos, refumemos,
entre as mulheres, o tabaco da vida.
Como cedilhas pendurados que felizes seremos,
 
exemplares cretinos nesta noite comprida…
 
 
 
alexandre o´neill
poemas com endereço 1962
poesias completas
assírio & alvim
2000
 



30 abril 2023

irene lisboa / se eu fosse…

 



 

Se eu guardasse patos.
Mas não figura romântica, dama, estilizada.
Não como a que se debruça risonha, regaçada,
para o lago pequeno do jardim da Estrela.
 
Se eu guardasse patos, de pé descalço ou de
tamancos…
De cana na mão, malhada do sol, esgrouviada,
sem graça nem disfarces!
Levaria o meu rebanho à minha frente, direitinho
à pancada.
Vá tu, mole. Vá tu, mal mandado. Vá, vá!
 
Real guardadora de patos de borda-de-água…
Se eu fosse!
Patos, meus cuidados, batidos e dóceis correríeis
como gamos.
 
Ou se eu fosse uma mulher de canastra.
Das que atravessam a correr as pranchas, carre-
gadas e airosas.
Tantos passos para lá, tantos outros para cá…
Entre o barco e o cais o espaço é curto e
debaixo há água.
E a prancha ginga.
Mas elas correm pesadas, seguras e rítmicas.
 
Ser uma mulher de canastra…
Se eu fosse!
 
 
 
irene lisboa
um dia e outro dia…
poesia I
obras de irene lisboa  I
editorial presença
1991
 



29 abril 2023

manuel gusmão / é isto: a noite de manhã


8
 
É isto: a noite de manhã
Tu levantas-te
 
Manhã e noite não se vêem ao espelho
antes o estilhaçam para dentro
desencontram-se interminavelmente
 
mas ouvem-se uma à outra entre as salas da casa
 
Tu estás súbita ali na esquina do corredor
sinto por momentos a tua cara negra
e a imensidão do teu corpo anoitecido
 
passas-me a manhã devagar
de mão a mão
como um mapa fosforescente
 
onde por certo íamos morrer
 
 
 
manuel gusmão
mapas o assombro a sombra
anos 90 e agora
uma antologia da nova poesia portuguesa
selecção e organização de jorge reis-sá
quasi
2001





 

28 abril 2023

carlos de oliveira / instante

 
 
Esta coluna
de sílabas mais firmes,
esta chama
no vértice das dunas
fulgurando
apenas um momento,
este equilíbrio
tão perto da beleza,
este poema
anterior
ao vento.
 
 
 
carlos de oliveira
sobre o lado esquerdo
trabalho poético
livraria sá da costa editora
1982




27 abril 2023

antónio franco alexandre / le tiers exclu, fantasia política

 




3/3

…/
 
A presença do homem suíço, útil, necessária,
tornara-se absolutamente redundante e perniciosa,
balbuciante, alemã, inaceitável, teológica, inútil (pensei),
como uma luz excessiva sobre B., a nuca, o corpo de B.,
uma luz teológica sobra a nudez, teológica, de B.,
uma imaginação excessiva sobre o corpo de B.,
antes fugir! e disse: não, não fico, vou
para casa (uma marcha, contudo, de quilómetros
por ruas desoladas, além do canal, rumo aos subúrbios),
é tarde. Vejo no rosto desfeito do homem suíço
a imaginação suíça e a imaginação teológicas desfeitas,
o alívio e a dor da tentação desfeita, enquanto
B. diz eu também não (em palavras francesas) e continua
a falar em palavras francesas com o rapazola nocturno
da recepção. Assim desaparece o homem suíço
desta história. Assim desapareço eu
do átrio, da recepção, da praça oval
a caminho de casa, que é um quarto subterrâneo
num subúrbio sem transportes nocturnos. Assim
desaparece B.? assim fica todo o sangue de B.
a latejar no meu sangue, a violência
e a ternura do corpo de B. a desfazer-se
nas ruas nocturnas, em frente ao museu des Augustins,
nas ruas desfeitas, silenciosas, rumo aos subúrbios,
a boca intensa, o sopro intenso, o corpo intenso de B.
inclinando-se sobre a minha boca, o meu corpo emigrante,
assim desaparece B. no meio da agonia e da raiva
e da teologia, assim se transforma
a nudez de B. no avesso da minha roupa emigrante,
assim se transformam desejo, agonia, terror,
em realidade e fantasia, em noção
meramente política, assim aparece e desaparece
o corpo esguio infinitamente desejável desfeito
entre ruas nocturnas onde marcho e só
uma barcaça de carvão turva o liso
asfalto do canal assim aparece agora B.
no quarto de hotel do homem suíço menos jovem
uma vez afastado o amigo inocente? uma vez desejado
o corpo ausente do amigo inocente? uma vez usada
a inocência ou não inocência do amigo inocente
com mero savoir-faire das ruas nocturnas da cidade
cujo mapa ficou, aberto, sobre a mesa escarlate?
Assim aparece e desaparece o corpo de B.,
a nudez de B. na boca do homem suíço qualquer
traído pela confusão, e pela inocência, do amigo inocente que marcha
por ruas nocturnas silenciosas, com a imagem
do corpo de B. ao avesso da roupa a transformar-se
num pedaço cortado do seu corpo emigrante,
isto é, numa víscera, um rim suplementar! um
tumor, pernicioso, uma pergunta em perfeitas
frases francesas unicamente? Assim aparece e desaparece
o rosto desfeito do homem suíço inútil
a juntar o seu corpo inútil ao corpo de B.
que aparece e desaparece no corpo inútil do seu
amigo inocente, que sou eu? E mais tarde
(dias mais tarde? encontro B. na livraria,
rue do taur, consultando o Métier de Bourdieu
demasiado caro. Encontro o desejo de B.
na livraria, consultando o Métier. Encontro-me
a soluçar por dentro do meu corpo emigrante
diante de B., diante da roupa de B., diante
da boca de B., às avessas do corpo de B.
amigos vários de B. acompanham o corpo de B.
rue du Taur, amigos jovens de B.
escutam a história do homem suíço menos jovens
contada por B. em perfeitas frases francesas,
em frases exactas e claras que omitem
o sopro de B. soprando para mim, para a minha nuca,
e omitem o rosto confuso, desfeito, do homem teológico,
e omitem o corpo de B., a agonia e o desejo de B.,
e omitem a marcha do amigo inocente de B.
pelas ruas nocturnas dos subúrbios,
e omitem o rosto desfeito, inútil, com que ouço
a história do homem suíço na boca de B.,
e omitem o sofrimento da infância, o abjecto
e pernicioso sofrimento da teologia desfeita,
e omitem o amor, que aparece e desaparece
no terror e confusão a desfazer-se da infância
que ouço B. falar do homem suíço dégoûtant,
da confusão e terror do homem suíço dégoûtant desfeito
diante do rapazola nocturno, indiferente e cortês,
que ouço na boca de B. as perfeitas palavras
francesas mais exactas e claras, o talhe perfeito,
o sangue perfeito de B. latejando junto
ao meu corpo emigrante, ao meu corpo ao avesso
do ar, encontro-me a soluçar por dentro diante
de B.,dos amigos mais jovens de B., do riso e
da crueldade e da exactidão de B. e dos amigos de B.,
que ouço a ouvir-me da boca de B. tivesse sido
aqui alguém como A. alguém jovem assim
como aqui A. jovem assim, isto porém
nas palavras francesas mais exactas
quando a boca francesa as pronuncia, passando
sobre o corpo teológico do homem suíço desfeito
e sobre o corpo do amigo inocente que marcha
nas ruas nocturnas suburbanas descobrindo, só,
o fim e a finalidade da sua infância,
e sobre a nudez infinita do corpo de B. ou de
outro corpo qualquer nas mãos do homem suíço útil
que um dia, quem sabe, serei eu, noutro
destino, noutro café, noutra cidade, perfeitamente!
gritei, em palavras francesas. Enquanto eu
nos inventava Rodes, a maravilha oitava,
marchando quilómetros de asfalto suburbano
na agonia final da infância toda, no terror
e confusão e agonia do mundo mal recém-nascido,
assim tudo desfeito se perdia, assim a boca
das palavras exactas se trocava e vendia, assim trocava
por palavras o sangue, o corpo atravessado
por flechas, doiradas, como na imagem
pública do museu des Augustins. Assim
comecei a aprender o argot da praça oval
onde um dia, já desta velha idade habituado,
desfeito em teologia viria, virei a uma mesa
de toalha encarnada e candeeiro, virei, viria
diante de B. e do amigo talvez inocente de B.
assim embrulhado em teologia suíça ouvindo
a boca de B. que se inclina para a nuca
do amigo talvez inocente de B. e teria, terei
a mais pequena mala encostada aos pés da mesa
junto aos pés de B., ao corpo de B. que recordo
com exactidão, à nudez do corpo de B. que recordo
com exactidão, no quarto de hotel, 3º andar.
Dificilmente, contudo, recordo o rosto do homem suíço
menos jovem, que tínhamos (B. e eu) encontrado
num café da praça Wilson. Dificilmente, contudo,
recordo o rosto de B., o corpo de B. às avessas
do ar, o sopro da boca de B. inclinando-se
sobre a minha nuca. Dificilmente, contudo, recordo
o corpo do amigo talvez inocente de B. marchando
por ruas suburbanas, aprendendo artes, argot,
inventando Rodes: pode-se rir do trocadilho.
Nesse dia, nessa noite, aprendi
toda a teologia, que dificilmente recordo, contudo.
Nesse dia, nessa noite, acabou-se-me a paciência
para a fantasia, ah, mudar a vida, sempre, ser
quase invisível de tão transparente! o mundo
não cessa de nascer, de aparecer e desaparecer
no meio das mais inúteis palavras, transforma-se
o corpo dos amantes nas palavras amantes inúteis,
transforma-se o corpo de B. no amor a todas
as coisas amantes amadas, e esta é
a minha certeza, a minha verdade, a minha virtude teologal.
Como seria diferente e fácil o curso da minha vida
se tivesse, esse dia, essa noite, virado à direita
como era normal! em direcção ao Capitole,
sem hesitar, olhando sempre em frente! Uma vez
casado, e os filhos feitos, teria
decidido ficar, fazer-me todo inteiro, aberto
só na mesa final. Deitaria no chão
o meu corpo, outro corpo qualquer, e ao domingo
visitaria o mártir no museu, fechado, des Augustins,
sem me reconhecer. Encontraria B.
numa esplanada da praça Wilson,
sem me reconhecer. Encontraria, outra vez, o homem
suíço menos jovem, teólogo, sem me reconhecer.
Encontraria A., o amigo talvez inocente de B.,
sem me reconhecer. Encontraria o corpo de B.,
encontraria a nudez do corpo de B. no meu corpo,
sem me reconhecer. Talvez tarde, talvez nunca
aprendesse argot e artes de navalha
nas ruas que saem da praça Wilson,
talvez tarde, talvez nunca o meu corpo
fosse a pele do corpo de B., a nudez do corpo de B.,
a pele da nudez do corpo de B. no corpo do homem
suíço, teólogo, menos jovem, em palavras francesas.
Em palavras francesas, exactas, claras,
sem me reconhecer. Estaria no mundo
sem conhecer, sem amar o vazio, por isso
sem me reconhecer. Teria, terei
marchado inúteis quilómetros de asfalto suburbano
sem amar o que não conheço, o que não sei.
Não estaria, hoje diante de todos vós
com palavras inúteis, inexactas e obscuras,
a falar-vos de B., da história de B.,
das imaginações de B. e das sua palavras
tão exactas e claras que ao ouvi-las
ficaríamos cegos, todos nós, ardendo
em lume escarlate, dizia A., disse B.
em palavras francesas que mal traduzi. Foi,
na verdade, à esquerda que virei, em direcção
à praça oval iluminada e aromática
em companhia de B., do corpo iluminado e aromático de B.,
do aroma e da luz do corpo de B. inteiramente oculto
ao avesso da roupa e das palavras perfeitas de B.,
do sangue de B. desde então a latejar nas imperfeitas
palavras estrangeiras em que desde então oculto
a nudez de B., a esperança e a fé
e o amor de B. desde então a iluminar
e a perfumar as ruas nocturnas dos subúrbios
noutra cidade, noutro país, noutra razão teológico-
-política, noutro poema escrito
Por B., somente, em perfeitas palavras estrangeiras.
 
 
 
antónio franco alexandre
le tiers exclu, fantasia política
quatro caprichos
assírio & alvim
1999
 




26 abril 2023

antónio franco alexandre / le tiers exclu, fantasia política

 




 
2/3

…/

Ora eu não era, não fui nunca cristão, por isso sabia
(sem palavras para dizê-lo, aos outros, ou
a mim) que a teologia, incluindo a teologia suíça,
é uma coisa carnal, antes de pensada
sentada nas vísceras, na agonia dos corpos (*),
e também que a ideia de inocência é uma ideia
perniciosa e culpada, como um quarto
completamente vazio com calendário na parede
e roupa pouco limpa pelos cantos,
é uma ideia nascida em cabeças pouco limpas
pelos cantos, uma coisa verdadeiramente sem interesse
em realidade ou fantasia. Por isso admirei
o enfado atraente de B., o bocejo invisível de B. que me lembrou
a hora do último autocarro, acabada de passar,
o último autocarro, acabado de partir,
a possibilidade de alguns quilómetros de marcha
no alcatrão silencioso, rumo aos subúrbios,
passando primeiro em frente ao museu des Augustins
e depois em frente ao palácio des Sports
onde o show de catch estaria terminando agora,
depois ao longo do canal, depois em frente até
ao alcatrão liso, deserto, dos subúrbios,
a maneira que B. tinha de encolher os ombros
só com a voz, a exactidão
indiferente de B. diante do homem suíço e de mim,
a juventude de B. afirmando a sua não inocência
diante do homem suíço e diante de mim,
o corpo inteiramente vestido de B., inteiramente escuro
e outro dentro da roupa, o avesso inteiramente outro
da roupa de B. no corpo de B., escondido
do homem suíço e escondido de mim. Talvez
a língua francesa seja mais exacta? ou todos
sejamos igualmente exactos, cada qual
na sua língua mãe? mais leves? admirava
a boca de B., as palavras francesas na boca de B.
mais francesas do que as palavras francesas na boca
do homem suíço, que era teólogo e alemão, possivelmente.
Os estrangeiros nunca falam a língua francesa
com a desejada exactidão, com a clareza
típica da língua francesa falada por uma boca
igualmente francesa, e a boca de B.
era uma boca francesa, como a roupa de B.
era uma roupa francesa, e o corpo de B.
escondido no avesso da sua roupa francesa
era um corpo francês, inteiramente
alheio ao homem suíço menos jovem
à teologia e à santidade do homem suíço ansioso
por seduzir com a inocência todos os
jovens inocentes ou não inocentes à vista
na praça oval chamada Wilson, que éramos
nós, B. e eu. Pensei então noutras circunstâncias
estaria noutra praça, noutra cidade, noutro país,
e não estaria a ouvir falar de santidade e Jesus e
a recordar Rodes e o monge enlouquecido que
distribuía imagens santas junto ao porto
mostrando os dentes aos jovens marinheiros.
Os emigrantes nunca falam perfeitamente
a língua estrangeira onde vivem, onde talvez
acabem por morrer, nunca são exactos e claros
sobretudo em língua francesa; e com o tempo
com a passagem dos anos deixam também
de ser exactos e claros na sua língua mãe,
de ser exactos e claros na realidade
como na fantasia. Assim enquanto eu
me deixava enlear no mistério da trindade
no tratado de Agostinho, e no kerygma de Barth
e em toda a vasta agonia teológica e suíça
do homem suíço menos jovem, de mala
e óculos e mapa da cidade agora deixado
aberto sobre a mesa vermelha com cinzeiro e copos
enquanto me enleava e agoniava e seguia
os gestos do homem suíço menos jovem
que agora, subitamente, se inquietava
de não ter reservado quarto em nenhum hotel,
nem conhecer ninguém, nem poder partir
para a suíça antes de amanhã, antes de
visitar o museu des Augustins e ver o mártir
varado de flechas, antes de resolver o mistério
da inocência que se deixa usar (pelos inocentes
e pelos não inocentes), antes de voltar
já sozinho e sem mapa a este café
a esta mesa estrangeira e aromática onde agora
a tentação, confusa, lhe revela
a razão e a agonia da teologia, assim enquanto
eu me enleava a agoniava ao hálito
teológico do homem suíço menos jovem,
B. inclinou a boca para o meu ouvido
E murmurou: sale pédé, que era ou seria o homem suíço,
c´est toi qu´il veut, ou outras palavras
mais exactas e precisas na sua boca francesa
sem hálito, como uma boca vestida
do avesso. B. inclinou a boca
para a minha nuca, senti o sopro da sua boca
e pensei na sua boca enquanto se inclinava
para mim. Não vi os lábios, não vi a boca
de B. que se inclinava para mim,
só imaginei a boca de B. enquanto realmente se inclinava
para mim, para o meu corpo emigrante mal vestido
com roupa emigrante, onde o corpo aparecia.
Para melhor ver B. quase fechei os olhos
para obter um efeito tri-ou tetra-dimensional,
não o fazer mas o desfazer, não a imagem mas
o sopro da boca de B. virada do avesso
que se inclinava para mim. Na recepção
do hotel o rapazola nocturno
olhou-nos com indiferença. O homem suíço
sentiu-se, subitamente, na impossibilidade de falar
francês ao rapazola nocturno e francês da recepção;
faltavam-lhe palavras, ar, indiferença. A teologia
da tentação, confusa, brotava-lhe da boca suíça
irremediavelmente, confundindo as palavras francesas
irremediavelmente estrangeiras. A tentação, confusa,
fazia-se carne diante do homem suíço confuso, incapaz
de falar ao rapazola nocturno, inteiramente
cortês e indiferente. Enquanto eu, agora,
à luz branca e demasiada da recepção, do átrio,
enquanto eu, agora, via no rosto confuso do homem suíço
o horror da tentação, a confusão e a agonia da teologia
do homem suíço incapaz de palavras francesas
irremediavelmente estrangeira diante do rapazola nocturno
da recepção nocturna, cortês e indiferente,
via no rosto confuso, desfeito, do homem suíço
o horror e a agonia da tentação, enquanto B. usava
a precisão, a exactidão das palavras francesas
para trocar opiniões com o rapazola nocturno
sobre hotéis filmes cinemas sociologia! enquanto
eu via no rosto do homem suíço as imaginações
do homem suíço no quarto de hotel 3º andar
e via, nas imaginações do homem suíço
vistas no rosto desfeito do homem suíço,
o corpo de B. a despir-se da roupa ao avesso
do corpo de B. a despir-se, a nudez da roupa de B.
junto ao meu corpo, juntos na inocência e na não inocência
do meu corpo emigrante, agora nu, juntos a usar
a não inocência, a tentação, confusa, a teologia, e
o quarto de hotel do homem suíço teólogo, a ansiedade
dos olhos do homem suíço sem óculos, sem mapa,
a usar a inocência confusa do homem suíço
para despirmos a roupa francesa e emigrante
a três, a quatro dimensões, para sabermos
quem somos, B. e eu, agora indiferentes ao homem suíço,
ao rapazola nocturno, à luz do átrio excessiva.
 
/…
 
 
(*) por isso a teologia é teológico-política.
 
 
 
antónio franco alexandre
le tiers exclu, fantasia política
quatro caprichos
assírio & alvim
1999



 


25 abril 2023

antónio franco alexandre / le tiers exclu, fantasia política

 




1/3

Tínhamos encontrado um pederasta suíço
num café da praça Wilson, na esplanada que
com as suas toalhas carmesim e candeeiros
me recordava Rodes ao entardecer
apesar de ser noite, e já
ter passado o último autocarro para os subúrbios.
Pelo menos, a meio da conversa, B. inclinou
os lábios para o meu ouvido
e murmurou: sale pédé, sem interromper
o suíço (fosse qual fosse o seu nome) que
incessantemente falava, perguntava, comentava,
oferecia cervejas, recordações, licores
ornamentais com pequenos chapéus japoneses.
Em frente, do outro lado da grande oval rosa-escuro
dos edifícios d tijolo da praça Wilson,
um grupo de gente à saída do cinema
dividia-se, precipitava-se
para as paragens de autocarros (tarde demais),
para os cafés iluminados, aromáticos, para os parkings
subterrâneos, para os grandes portões subterrâneos.
Normalmente, normalmente! teria ido a outro café,
Teria estado noutra praça, noutra
Cidade talvez, teria discutido marxismo
e literatura com C. ou com D.,
teria jogado xadrez com o meu amigo espanhol
de Albacete, anarquista por piedade filial,
teria apanhado a horas o autocarro dos subúrbios!
e dormido na cama metálica, diante da mesa metálica,
no meu quarto subterrâneo pintado de verde metálico
minúsculo e frio com a janela alta para o pátio
e o calendário na parede com férias a vermelho;
teria fumado um cigarro, ouvido em LP
os primeiros vagares da sinfonia des adieux, e lido
as mais pequenas linhas do Canard Enchaîné,
e estaria sonhando com colinas
e o cheiro singular das raparigas, ou a ter
o vulgar pesadelo que começa
por uma luz aberta em mãos de gesso;
mas nada disso aconteceu.
Porque jantara, só, num self-service de cimento,
vendo, por vidros foscos, restos do mercado
de frutas e de peixe, deixados tristemente
a apodrecer nas mesas de madeira;
porque encontrara B., só, à entrada de um cinema,
olhando as fotos com ar dubitativo (o ar de sempre)
e lhe dissera: vou tomar um café ao Capitole
e B. riu, um pouco, misteriosamente (o pouco de sempre):
discutir marxismo e literatura? antes os burgueses
que ali (na outra praça, oval, do outro lado)
se sentam confortáveis às mesas luminosas,
não pagam mais do que vocês por xadrez e fumo,
e ainda nos compram o seu prazer de escravos! recordei
hegel, mas: vocês! não me queria em bando
não, certamente, na voz de B., na voz
irónica, ou curiosa, neutra possivelmente, de B.
que eu mal conhecia então, um vago encontro
nos corredores da faculdade, nos cafés, no bar
da rue de valois talvez, onde bebia laranjada
em sábado de orgia: não me queria
assim imaginado. Talvez assim na realidade,
real assim na realidade, que não é fantasia,
discutindo estrutura e sentido, realidade e fantasia,
mas ainda lançando os dados no meio da praça! mas
ainda vivendo, lembrando, trocando os recados
da carne jovem atravessada! mas ainda vivendo
dentro ainda da infância, do desespero
e da aflição e da imensidade da infância,
mas ainda recolhendo a sufocante presença
ainda em nós da infância! e porque
decidi não ir essa noite ao Capitole
acompanhei B. até à praça Wilson que ficava
no caminho para a paragem de autocarros
e sentámo-nos a uma mesa escarlate com candeeiro
respirando o ar doce e oval de toda a praça
silenciosamente; até que um homem menos jovem
de óculos e mapa perguntou se realmente valia a pena
visitar o museu des Augustins, amanhã claro está,
porque à noite está fechado. Seria imbecil?
B. fez um ar enfadado, atraente. Era esse um homem suíço,
não recordo o nome, com óculos e mapa da cidade,
e nos olhos por detrás dos óculos a ansiedade
normal, pensei, num turista que passa
sem conhecer ninguém por toda a terra,
era um homem suíço que, satisfeita ou insatisfeita
a sua curiosidade sobre o museu des Augustins
passou subitamente a falar de santidade e inocência
e Jesus Cristo e Robert ou Rupert Bultman ou Bootman
e alpes e Zürich e inocência e santidade
e vocês, vocês tão jovens, tão decerto inocentes!
B. de ar enfadado, atraente, disse: eu não
eu decerto não mas aqui A. é talvez inocente
assim proclamando não estarmos juntos nem na inocência
(possível) nem na não inocência (possível)
aqui este meu amigo A. é talvez inocente ficou
talvez mergulhado no sofrimento da inocência desde
as colinas da sua infância até esta rosácea oval
quem sabe? Já nessa altura eu sabia
(mas sem palavras para dizê-lo) que os inocentes ignoram a inocência
ignoram a sua inocência e ignoram a inocência dos outros
por isso estão talhados para a inocência e o sofrimento da inocência
por isso estão talhados para ser vítimas da inocência
e da não inocência dos outros, porém
na altura o que admirei foi a maneira como
B. se fez conhecer do homem suíço e de mim
como se afastou da inocência diante do homem suíço e de mim
como se afastou de mim diante do homem suíço e de mim
enquanto o homem suíço repetia (quase gritava) vocês!
tão jovens! certamente inocentes! e eu pensava
que era assim sempre um teólogo de teologia suíça
viajando pela europa com a cabeça teologal e só
uma pequena mala que, observei, estava encostada à mesa.
 
/…
 
 
 
antónio franco alexandre
le tiers exclu, fantasia política
quatro caprichos
assírio & alvim
1999
 



25 de abril sempre! fascismo nunca mais

 


24 abril 2023

josé gomes ferreira / homens de outros séculos

 
 
II
 
Homens de outros séculos:
invejai-me!
 
Cá estou no século vinte
no Dia do Grande Ruído
quando se escancaram na terra
as Portas de Bronze
para todos os recomeços…
 
…E os braços dos mortos abriram no chão
caminhos de garras
para obrigar as sombras dos homens a erguerem-se no êxtase
de morrer de pá!
 
Cá estou no século vinte
nesta paisagem de bocejos
e estrelas estagnadas
onde só há cegos
presos na própria noite
aos tombos de declive…
– sem ao menos suspeitarem
de que anda uma nova Morte pelo mundo!
 
Cá estou no século vinte
nesta primavera de cadáveres
tão contentes de terra
que até beijam as raízes
para que as flores dos outros
nasçam mais límpidas
nas manhãs do sol múrmuro a espreguiçar-se no vento
                                                           das planícies…
 
 
 
josé gomes ferreira
poesia II
invasão 1940-1941
portugália
1962




23 abril 2023

joaquim manuel magalhães / grahams bond registered



 

Onde apareces chamo eu uma janela,
o que não sou eu, um rosto, essa palavra
com que digo o que despedaças,
uma rouca fachada,
um resto que lembro quando te vais embora,
uma coisa de prisão saindo da penumbra.
 
 
 
joaquim manuel magalhães
fotografias de jorge molder
os dias, pequenos charcos
editorial presença
1981


 


joão miguel fernandes jorge / vanitas







 

 
Vem. Abre o livro.
Quem lê não está morto.
Somente aproxima as palavras
da chama do tempo.
Quase foge. Quase se funde
na luz da vela.
Vem. Lê baixo, num murmúrio,
as palavras.
Último esforço ruinoso, as palavras
fecho de um mundo sem esperança.
A palavra
a última que puderes ler
reflecte na fundura da órbita
a causalidade de deus.
Irradia a última palavra
luz interior
a imagem incendeia a própria caveira
dessa palavra
vem
abre o livro
quem lê não está morto
 
              
                                /Mestre desconhecido, pintura italiana, séc. XVII/
 
 
 
joão miguel fernandes jorge
museu das janelas verdes
relógio d´água
2002