25 abril 2023

antónio franco alexandre / le tiers exclu, fantasia política

 




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Tínhamos encontrado um pederasta suíço
num café da praça Wilson, na esplanada que
com as suas toalhas carmesim e candeeiros
me recordava Rodes ao entardecer
apesar de ser noite, e já
ter passado o último autocarro para os subúrbios.
Pelo menos, a meio da conversa, B. inclinou
os lábios para o meu ouvido
e murmurou: sale pédé, sem interromper
o suíço (fosse qual fosse o seu nome) que
incessantemente falava, perguntava, comentava,
oferecia cervejas, recordações, licores
ornamentais com pequenos chapéus japoneses.
Em frente, do outro lado da grande oval rosa-escuro
dos edifícios d tijolo da praça Wilson,
um grupo de gente à saída do cinema
dividia-se, precipitava-se
para as paragens de autocarros (tarde demais),
para os cafés iluminados, aromáticos, para os parkings
subterrâneos, para os grandes portões subterrâneos.
Normalmente, normalmente! teria ido a outro café,
Teria estado noutra praça, noutra
Cidade talvez, teria discutido marxismo
e literatura com C. ou com D.,
teria jogado xadrez com o meu amigo espanhol
de Albacete, anarquista por piedade filial,
teria apanhado a horas o autocarro dos subúrbios!
e dormido na cama metálica, diante da mesa metálica,
no meu quarto subterrâneo pintado de verde metálico
minúsculo e frio com a janela alta para o pátio
e o calendário na parede com férias a vermelho;
teria fumado um cigarro, ouvido em LP
os primeiros vagares da sinfonia des adieux, e lido
as mais pequenas linhas do Canard Enchaîné,
e estaria sonhando com colinas
e o cheiro singular das raparigas, ou a ter
o vulgar pesadelo que começa
por uma luz aberta em mãos de gesso;
mas nada disso aconteceu.
Porque jantara, só, num self-service de cimento,
vendo, por vidros foscos, restos do mercado
de frutas e de peixe, deixados tristemente
a apodrecer nas mesas de madeira;
porque encontrara B., só, à entrada de um cinema,
olhando as fotos com ar dubitativo (o ar de sempre)
e lhe dissera: vou tomar um café ao Capitole
e B. riu, um pouco, misteriosamente (o pouco de sempre):
discutir marxismo e literatura? antes os burgueses
que ali (na outra praça, oval, do outro lado)
se sentam confortáveis às mesas luminosas,
não pagam mais do que vocês por xadrez e fumo,
e ainda nos compram o seu prazer de escravos! recordei
hegel, mas: vocês! não me queria em bando
não, certamente, na voz de B., na voz
irónica, ou curiosa, neutra possivelmente, de B.
que eu mal conhecia então, um vago encontro
nos corredores da faculdade, nos cafés, no bar
da rue de valois talvez, onde bebia laranjada
em sábado de orgia: não me queria
assim imaginado. Talvez assim na realidade,
real assim na realidade, que não é fantasia,
discutindo estrutura e sentido, realidade e fantasia,
mas ainda lançando os dados no meio da praça! mas
ainda vivendo, lembrando, trocando os recados
da carne jovem atravessada! mas ainda vivendo
dentro ainda da infância, do desespero
e da aflição e da imensidade da infância,
mas ainda recolhendo a sufocante presença
ainda em nós da infância! e porque
decidi não ir essa noite ao Capitole
acompanhei B. até à praça Wilson que ficava
no caminho para a paragem de autocarros
e sentámo-nos a uma mesa escarlate com candeeiro
respirando o ar doce e oval de toda a praça
silenciosamente; até que um homem menos jovem
de óculos e mapa perguntou se realmente valia a pena
visitar o museu des Augustins, amanhã claro está,
porque à noite está fechado. Seria imbecil?
B. fez um ar enfadado, atraente. Era esse um homem suíço,
não recordo o nome, com óculos e mapa da cidade,
e nos olhos por detrás dos óculos a ansiedade
normal, pensei, num turista que passa
sem conhecer ninguém por toda a terra,
era um homem suíço que, satisfeita ou insatisfeita
a sua curiosidade sobre o museu des Augustins
passou subitamente a falar de santidade e inocência
e Jesus Cristo e Robert ou Rupert Bultman ou Bootman
e alpes e Zürich e inocência e santidade
e vocês, vocês tão jovens, tão decerto inocentes!
B. de ar enfadado, atraente, disse: eu não
eu decerto não mas aqui A. é talvez inocente
assim proclamando não estarmos juntos nem na inocência
(possível) nem na não inocência (possível)
aqui este meu amigo A. é talvez inocente ficou
talvez mergulhado no sofrimento da inocência desde
as colinas da sua infância até esta rosácea oval
quem sabe? Já nessa altura eu sabia
(mas sem palavras para dizê-lo) que os inocentes ignoram a inocência
ignoram a sua inocência e ignoram a inocência dos outros
por isso estão talhados para a inocência e o sofrimento da inocência
por isso estão talhados para ser vítimas da inocência
e da não inocência dos outros, porém
na altura o que admirei foi a maneira como
B. se fez conhecer do homem suíço e de mim
como se afastou da inocência diante do homem suíço e de mim
como se afastou de mim diante do homem suíço e de mim
enquanto o homem suíço repetia (quase gritava) vocês!
tão jovens! certamente inocentes! e eu pensava
que era assim sempre um teólogo de teologia suíça
viajando pela europa com a cabeça teologal e só
uma pequena mala que, observei, estava encostada à mesa.
 
/…
 
 
 
antónio franco alexandre
le tiers exclu, fantasia política
quatro caprichos
assírio & alvim
1999
 



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