17 dezembro 2021

pier paolo pasolini / who is me, poeta das cinzas

  
[…]
 
Como é que me tornei marxista?
Bem… passeava eu entre florzinhas cândidas e azulinhas
                                                                                          [da Primavera,
aquelas que nascem logo depois das prímulas,
– e pouco antes de as acácias se carregarem de flores,
odorosas como carne humana, que se decompõe ao calor
                                                                                                    [sublime
da mais bela estação –
e escrevia nas margens de pequenas lagoas
que lá, na aldeia da minha mãe, com um daqueles nomes
intraduzíveis se chamam “fundas”,
com os rapazes filhos dos camponeses,
que inocentes, se banhavam
(porque viviam impassíveis à vida que levavam,
enquanto eu achava que tinham consciência daquilo que eram)
escrevia os poemas d’ «O Rouxinol da Igreja Católica»:
passava-se isto em ’43:
em ’45 <foi completamente diferente>.
Aqueles filhos de camponeses, já um pouco mais crescidos,
um dia puseram ao pescoço um lencinho vermelho
e marcharam
em direcção ao centro do governo, com as suas portas
e os seus palacetes venezianos.
Foi assim que soube que eram trabalhadores,
e que, portanto, havia os patrões.
Pus-me ao lado dos trabalhadores e li Marx.

[…]
 
 
 
pier paolo pasolini
who is me
poeta das cinzas
trad. de ana isabel soares
barco bêbado
2021




16 dezembro 2021

mário cesariny / estado segundo

 
 
 
IV
 
Um corte nos dedos      e agora
que estamos no inverno
vale a pena esperar mais depressa
a maravilha minúscula
o império
que foi comprado para bêbados
a dez centavos o hectar
 
 
 
mário cesariny
pena capital
assírio & alvim
1999




15 dezembro 2021

ruy belo / relatório e contas

 
 
Setembro é o teu mês, homem da tarde
anunciada em folhas como uma ameaça
Ninguém morreu ainda e tudo treme já
Ventos e chuvas rondam pelos côncavos dos céus
e brilhas como quem no próprio brilho se consome
Tens retiradas hábeis, sabes como
a maçã se arredonda e se rebola à volta do que a rói
Há uvas há o trigo e o búzio da azeitona asperge em leque o som inabalável
nos leves ondulados e restritos renques das mais longínquas oliveiras conhecidas
Poisas sólidos pés sobre tantas traições e no entanto foste jovem
e tinhas quem sinceramente acreditasse em ti
A consciência mói-te mais que uma doença
reúnes em redor da casa equilibrada restos de rebanhos
e voltas entre estevas pelos múltiplos caminhos
Há fumos névoas noites coisas que se elevam e dispersam
regressas como quem dependurado cai da sua podridão de pomo
Reconheces o teu terrível nome as rugas do teu riso
começam já então a retalhar-te a cara
Despedias poentes por diversos pontos realmente
És aquele que no maior número possível de palavras nada disse
Comprazes-te contigo quando o próprio sol
desce sobre o teu pátio e passa tantas mãos na pele dos rostos que tiveste
Repara: não esbarras já contra a cor amarela?
Setembro na verdade é mês para voltar
Podes tentar ainda alguns expedientes respeitáveis
multiplicar diversas diligências nos ameaçados cumes dos outeiros
ser e não ser fugir do rótulo aceitar e esquivar o nome fixo
E no entanto é inevitável: a temperatura descerá mais dia menos dia
Calas-te então cumprido como um rosto e puxas toda a tarde
sobre esse corpo que se estende e jaz
Andaste de lugar para lugar e deste o dito por não dito
mas todos toda a vida teus credores saberão onde encontrar-te
pois passarás a estar nalguma parte
Tens domicílio ali que a terra sobe levemente
e toda a tua boca ambiciosa sabe e sente quanto barro encerra
 
 
 
ruy belo
todos os poemas I
o testamento de elvira sanches
assírio & alvim
2004




14 dezembro 2021

luis garcia montero / canção 2001

 
 
Os jornais são
longas noites de inverno.
 
As minhas palavras ardem no lume.
 
E nos televisores
chove no molhado,
precisamente ali onde a terra
não conhece a chuva.
 
O frio do sermão
descobriu rosas, castigos e milagres
nas regras impuras da objectividade,
e agora vende notícias
em vez de areia branca nos passos do náufrago
ou liberdade nos cemitérios.
 
São as regras
e o mar não as esquece.
Espero-te à luz de um passado imperfeito.
Chegas pelas sombras de um futuro perdido.
 
 
 
luis garcia montero
a intimidade da serpente (2003)
as lições da intimidade
antologia
trad. de nuno júdice
abysmo
2018




 

13 dezembro 2021

albano martins / as palavras do pai

 
 
Olha, meu filho, esta
é a árvore
da vida. Crescerás
com ela. Às vezes
nos seus ombros colherás
lágrimas em lugar
de frutos, mas
é nos ramos mais altos
que o sonho
mora e a liberdade
floresce.
 
 
 
albano martins
por ti eu daria
toda a poesia
caderno de argolas (2000-2010)
glaciar
2021




 

12 dezembro 2021

josé agostinho baptista / eden mar hotel

 
 
Anoitece.
No promontório a oeste,
as aves do mar parecem adormecidas.
Uma única estrela acende a sua luz sobre o
horizonte,
sobre as lanternas brancas e azuis,
sobre a inquietação dos peixes vermelhos.
Mas nada se ouve.
Ninguém bate à porta,
os amigos são apenas uma palavra vazia,
sepultada para sempre.
Silenciosamente,
duas lágrimas descem do meu rosto,
na varanda deste hotel,
entre as árvores do fogo e a noite em ruínas.
Fecho os olhos.
Dói, às vezes docemente, dói a vida.
 
 
 
josé agostinho baptista
quatro luas
assírio & alvim
2006




 

11 dezembro 2021

jorge roque / um exemplar falhado da espécie

 
 
I
Fascinados pela possibilidade alimentar que o extraordinário progresso criou, os povos desenvolvidos, organizados em estados, governados pela economia, administrada por uns quantos que com ela lucram, acomodam-se de boca cheia à condição de animal de criação na empresa desses quantos, cujo negócio é precisamente a classe privilegiada de que fazem parte. E se isto custa a perceber, tão perversa é esta aliança entre exploração e privilégio, o pior, está bom de ver, é o mais mau. Quero dizer: a janela que abriste, não mais poderás fechar. O frio que por ela entra é sem regresso. O homem que nesse desabrigo se ergue, não há casaco que o vista. Ínfimo diante da força surda do mundo, é nu que treme, nu que sofre, nu que desesperado grita. E nu, por fim, que morrerá sem alcançar a razão do seu grito. Lembrando o comentário do meu vizinho de baixo, proferido a respeito de pessoa alheia, mas curvado à verdade triste de ele mesmo ser um deles: coitado!



jorge roque
ladrador
averno
2012




 

10 dezembro 2021

josé ángel cilleruelo / a casa

 
 
Verão livros amontoados e sem ordem.
Muitos lidos, os romances de Joaquín Belda
assustarão alguém. Não vão achar diário
nem sublimes escritos com intimidades.
Não há quadros no quarto. Não há outra esperança
além de uma esferográfica que ainda escreva,
um envelope, um selo. E quando procurarem cartas
apenas verão velhos recortes de jornal.
Os cadernos que me ofereceram em Málaga.
Péssimas fotografias de família. Onze
versos casuais de um soneto inexistente.
E um feixe de razões para o esquecimento.
Quando abandonar a casa o último dia
pouca vida mais nela encontrarão.
 
 
 
josé ángel cilleruelo
o dom impuro
antologia
trad. joaquim manuel magalhães
averno
2004




09 dezembro 2021

william carlos williams / chegada

 
 
 
E, todavia, chegas
dás por ti a desatar-lhe
o vestido
em alheios aposentos –
sentes que o outono
deixa cair as suas folhas de seda e linho
junto aos seus tornozelos.
Falso é o brilho do corpo que emerge
e se contorce
como o vento do inverno…!
 
 
 
william carlos williams
antologia breve
tradução josé agostinho baptista
assírio & alvim
1993




 

08 dezembro 2021

sharon olds / domingo à noite na cidade

 
 
De mãos dadas, estendemo-nos na cama,
as nossas pernas compridas cruzadas como asas
dobradas, os nossos pés compridos tocando aos pés
da cama na sombra, o alçado gravado como
lápide com uvas. O teu cabelo em desalinho, escuro
como uma avelã negra, frisado como rebentos
de videiras. A tua mão direita na minha mão
direita. A minha mão esquerda na tua esquerda.
Braços entrelaçados como patinadores, estendemo-nos
sob a pintura de uma paisagem de campo: as silvas
negras e difusas como fumo, as árvores
erguendo os cinzentos esqueletos de peixe,
e ao centro, sobre nós,
o calmo lago
mudo como se fora eterno.
 
 
 
sharon olds
satanás diz
trad. margarida vale de gato
antígona
2004




07 dezembro 2021

samuel beckett / vêm

 
 
 
vêm
diferentes e parecidas
com cada uma é diferente e parecido
com cada uma a ausência de amor é diferente
com cada uma a ausência de amor é parecida
 
 
 
samuel beckett
trad. miguel esteves cardoso
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990





06 dezembro 2021

charles simic / livro de história

 
 
 
Um miúdo encontrou as suas páginas soltas
Numa rua movimentada
Deixou de jogar à bola
Para correr atrás delas.
 
Elas escaparam-se das suas mãos
Voando como borboletas.
Apenas pôde entrever
Alguns nomes, uma data.
 
Nos arredores o vento
Fê-las subir.
Foram arrastadas sobre o depósito de pneus usados
Em direcção ao rio cinzento,
 
Onde afogam os gatinhos –
E a barcaça desliza,
Aquela que crismaram Vitória
De onde um aleijado acena.
 
 
 
charles simic
trad. josé alberto oliveira
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001




05 dezembro 2021

federico garcia lorca / ao ouvido de uma jovem

 
 
Não quis.
Não quis dizer-te nada.
 
Vi em teus olhos
duas arvorezinhas loucas.
De brisa, de riso e de ouro.
Meneavam-se.
 
Não quis.
Não quis dizer-te nada.
 
 
 
federico garcia lorca
transversões
poemas reescritos em português
trad. de zetho cunha gonçalves
contracapa
2021