14 novembro 2021

irene lisboa / outono, um dia

 
 
Cidade, velha cidade,
a ti regresso!
 
Outono, voltaste,
mas nada me trazes,
nem gostos,
nem lembranças,
nem saudades…
 
Nunca tive saudade!
A minha pena,
dor de não ter,
ou de lembrar,
foi sempre rápida e amarga,
nunca dolente,
como é a saudade…
Engano-me?
 
Enfim, outono,
Voltaste! sentimos-te.
Amável, caricioso tempo,
o mais suave do ano!
E eu voltei, também,
aqui estou…
como um molusco
agarrado à concha,
adaptado,
calmo,
indiferente.
 
Passou tempo…
dias, meses,
que me não remoçaram
nem agitaram.
Durante eles vi o mar.
 
O mar é formoso.
Mais formoso
que as casas e as ruas…
Quanto as estranho!
Noto.
Escuras, desiguais!
¿Mas que me importam as casas
e até o mar?
Tudo são quadros
e solidão.
 
É grandioso o mar.
Belo, mas confrangedor…
violento, monótono.
 
Mas que estranheza há em mim,
que há em mim?
 
Há bocado,
daquela janela,
vi uma gaivota.
Tudo me parecia incaracterístico.
Mas a gaivota
lembrou-me o mar…
 
Ó, estar deitada na areia,
e ver passar por cima,
longe,
numa onda de sol,
as gaivotas brancas,
de asas abertas,
refulgentes,
avançando sempre
e parecendo imóveis…
é ver uma coisa ideal,
quase irreal.
 
As gaivotas…
 
Nada! Nem elas,
nem o sol,
nem a névoa,
nem as rochas,
nem a água
têm vida como nós,
nos interessam!
Entristecem-nos…
 

 
irene lisboa
um dia e outro dia…
poesia I
obras de irene lisboa  I
editorial presença
1991






 

13 novembro 2021

fátima maldonado / signo dos peixes

 
 
4
Ontem junto do mar
o fumo devolveu-me a tua sensação.
Caída ali ao pé a gaivota esperava
que uma vaga a levasse
se quiseres.
De qual das mortes teria sucumbido?
Um tiro atravessando o luminoso céu
tê-la-ia prostrado
ou da traição teria reavido
o justo pagamento?
No marfim do bico o sangue destoava
como um dente arrancado nos fica no dentista.
As pedras que apanhara enquanto caminhava
formando à minha volta um túmulo sumário
lembravam-me que a morte
já quase não se afasta.
Acenando aos navios vislumbram-se as sereias
sustendo os maçaricos com que abrem sem gazuas
os cofres submersos,
entesourando assim moedas gangrenadas
de perfis corroídos como talheres inúteis
de prata causticada por noiva que morreu
sem perpassar na loiça a mão suja de Vim.
Antes tínhamos dito
Vendo os pequenos negros de seca carapinha
(maciços de coral espinhando na cabeça):
«Parecem violentos.»
Andando às voltas de bicicleta
nos rápidos passeios que pedem por empréstimo
trazem dependurados no ferro dos pedais
gritos de hienas velhas.
E rindo-se na virilha
assoma a palmatória que misturou as linhas
na palma de seus pais
encostados que foram à parede do posto.
 
 
fátima maldonado
sem rasto
signo dos peixes
averno
2021

 




12 novembro 2021

antónio franco alexandre / duende

 
 
2.
Olha-me agora, que me tens vencido
e sou nas tuas mãos pobre veludo,
de pele morta e rôta mal vestido
e, de sábio que sou, já tartamudo.
Fala-me agora, que não tenho boca
e sou na tua pele mero ouvido,
diz-me palavras soltas sem sentido
ou pede-me por graça o consentido.
Olha-me só para que veja como
tão claro e fundo olhar me tem mantido
na solidão sem nome deste pranto;
ou escreve em mim com hálito de lume
para que seja eu a enrodilhada chama
que se esquece de si e sonha o fumo.
 
 
antónio franco alexandre
duende
assírio & alvim
2002

 




11 novembro 2021

luís miguel nava / o céu agrada-me pensar

 
 
O céu agrada-me pensar que é a memória de dois ou três amigos. Aqueles contra cujos lábios a partir de dentro empurraremos docemente os nossos nomes e que, quando levam comida à boca, sabem que é a nós que estão a alimentar. São dois ou três amigos, aqueles só em cujos corações enfiamos achas, o clarão atinge-lhes os olhos, pensarão: hoje a memória é como se a trouxéssemos em braços. Não sei se quando o mar lhes vier ao espírito o ouviremos rebentar, o certo é que por ele às vezes sobem marés. Há ondas que se vê terem por ele passado antes de contra os nossos corpos deflagrarem.
 

 
luís miguel nava
rebentação
poesia
assírio & alvim
2020







 

10 novembro 2021

eugénio de andrade / as mãos e os frutos

 
 
29
 
Tu és a esperança, a madrugada.
Nasceste nas tardes de setembro,
quando a luz é perfeita e mais doirada,
e há uma fonte crescendo no silêncio
da boca mais sombria e mais fechada.
 
Para ti criei palavras sem sentido,
inventei brumas, lagos densos,
e deixei no ar braços suspensos
ao encontro da luz que anda contigo.
 
Tu és a esperança onde deponho
meus versos que não podem ser mais nada.
Esperança minha, onde meus olhos bebem,
Fundo, como quem bebe a madrugada.
 
 
 
 
eugénio de andrade
as mãos e os frutos (1945-1948)
poesia
editorial inova
1971

 




09 novembro 2021

amalia bautista / a mulher de lot




 
Ainda ninguém nos esclareceu
se a mulher de Lot foi transformada
em estátua de sal como castigo
pela curiosidade irreprimível
e pela desobediência apenas,
ou se ela se voltou pois no meio
de todo aquele incêndio pavoroso
ardia o coração que mais amava.
 
 
 
amalia bautista
trevo
tradução de inês dias
averno
2021




 


 

08 novembro 2021

jacques baron / o desconhecido

 
 
Ele dizia
os meus lábios são cachos monstruosos
de panteras cantantes
mais doces do que os pássaros tão doces da colina
e os touros sangrentos de grandes nuvens obscuras
Ele dizia
trago no meu seio
ondas imensas e acres
no meio das flores tão belas dos grandes dias
Chamava Maria
a uma menina que transporta legumes
Ele dizia ainda
Sou uma papoila
que desperta pela manhã o azul lívido dos bichos
 
 
jacques baron
sonhador definitivo e perpétua insónia
uma antologia de poemas
surrealistas escritos em língua francesa
trad. regina guimarães
contracapa
2021

 
 
 
 
 
 

07 novembro 2021

mário de sá-carneiro / dispersão

 
 
Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto,
E hoje, quando me sinto,
É com saudades de mim.
 
Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida…
 
Para mim é sempre ontem,
Não tenho amanhã nem hoje:
O tempo que aos outros foge
Cai sobre mim feito ontem.
 
(O Domingo de Paris
Lembra-me o desaparecido
Que sentia comovido
Os Domingos de Paris:
 
Porque um domingo é família,
É bem-estar, é singeleza,
E os que olham a beleza
Não têm bem-estar nem família).
 
O pobre moço das ânsias…
Tu, sim, tu eras alguém!
E foi por isso também
Que te abismaste nas ânsias.
 
A grande ave dourada
Bateu asas para os céus,
Mas fechou-as saciada
Ao ver que ganhava os céus.
 
Como se chora um amante,
Assim me choro a mim mesmo:
Eu fui amante inconstante
Que se traiu a si mesmo.
 
Não sinto o espaço que encerro
Nem as linhas que projeto:
Se me olho a um espelho, erro —
Não me acho no que projeto.
 
Regresso dentro de mim
Mas nada me fala, nada!
Tenho a alma amortalhada,
Sequinha, dentro de mim.
 
Não perdi a minha alma,
Fiquei com ela, perdida.
Assim eu choro, da vida,
A morte da minha alma.
 
Saudosamente recordo
Uma gentil companheira
Que na minha vida inteira
Eu nunca vi… mas recordo
 
A sua boca doirada
E o seu corpo esmaecido,
Em um hálito perdido
Que vem na tarde doirada.
 
(As minhas grandes saudades
São do que nunca enlacei.
Ai, como eu tenho saudades
Dos sonhos que não sonhei!…)
 
E sinto que a minha morte —
Minha dispersão total —
Existe lá longe, ao norte,
Numa grande capital.
 
Vejo o meu último dia
Pintado em rolos de fumo,
E todo azul-de-agonia
Em sombra e além me sumo.
 
Ternura feita saudade,
Eu beijo as minhas mãos brancas…
Sou amor e piedade
Em face dessas mãos brancas…
 
Tristes mãos longas e lindas
Que eram feitas pra se dar…
Ninguém mas quis apertar…
Tristes mãos longas e lindas…
 
E tenho pena de mim,
Pobre menino ideal…
Que me faltou afinal?
Um elo? Um rastro?… Ai de mim!…
 
Desceu-me n’alma o crepúsculo;
Eu fui alguém que passou.
Serei, mas já não me sou;
Não vivo, durmo o crepúsculo.
 
Álcool dum sono outonal
Me penetrou vagamente
A difundir-me dormente
Em uma bruma outonal.
 
Perdi a morte e a vida,
E, louco, não enlouqueço…
A hora foge vivida,
Eu sigo-a, mas permaneço…
…………………………………………………………….
…………………………………………………………….
 
Castelos desmantelados,
Leões alados sem juba…
…………………………………………………………….
…………………………………………………………….
 
 
 
mário de sá-carneiro
dispersão
1913





 

06 novembro 2021

david mourão-ferreira / canção, de madrugada

 
 
                                                A Cecília Meireles
 
 
 
Escorrem de noite pelos prédios,
dissimuladas na umidade
— dissimulando elas o tédio
das longas noites da cidade —
deusas solícitas que vão,
com sua etérea assinatura,
quase propor a redenção,
— de rua em rua, dar a mão
a quem se arrasta ou se procura.
 
Pobre de quem vem perguntando
à pedra esquiva das esquinas
a voz e a face dessa amante
de que não restam senão cinzas!
Pobre do outro a quem o gelo
daquele encontro tão malsão
nem conseguiu arrefece-lo!
— Pobres de tantos, sem o selo
de garantia da ilusão!
 
Ó vidas presas por um fio,
junto ao abismo dos fracassos,
quem vos evita o fim sombrio
já desenhado em vossos passos?
— Com grandes túnicas violáceas,
as deusas erguem claras brisas:
nas avenidas e nas praças,
tremem as folhas das acácias,
vibram os peitos infelizes.
 
Até o frígido luar,
que de livor tingia as ruas,
se vai sumindo, devagar,
deixando as almas menos nuas...
Uma promessa de folhagem,
de vento e sol, as veste agora:
e, penetradas pela aragem,
as almas tímidas reagem
à madrugada que as enflora!
 
Súbito, a um gesto das deidades,
quebra-se o fúnebre luzeiro
das outras luas enforcadas
nos braços curvos dos candeeiros.
Já no crepúsculo se esfuma
a doentia sugestão,
— e as deusas tecem, com a bruma,
a nova luz que se avoluma
e é uma promessa ou uma canção.
 
Do sofrimento a noite cessa
na indecisa madrugada:
que ninguém peça a uma promessa
mais que a promessa que foi dada!
A quem sofreu, basta que a vida
levante um sol de entre as ruínas:
uma promessa doutra vida...
— Quanto aprendi!, nesta comprida
noite que tu, Canção, terminas.
 
 
 
david mourão-ferreira
a arte de amar
1967







05 novembro 2021

giórgos markópoulos / épica

  
 
Era um que era popular na praça e nos negócios,
até que de repente descobriu a poesia.
Por todo o lado começou tudo a dar para o torto.
A mulher deixou-o uma tarde.
Vede lá onde dorme agora.
 
Por cima do túmulo voam pássaros.
 
  
 
giórgos markópoulos
a grécia de que falas…
antologia de poetas gregos modernos
trad. manuel resende
língua morta
2021





 

04 novembro 2021

carlos edmundo ory / 10 coisas a pensar em anacha

 
 
1
Brancos são meus pensamentos
Este é o primeiro poema que
te escrevo Anacha ou melhor
em minha língua tu navegas
Com a boca fechada escrevo
muito quieto uma maçã triste
Tinha uma rosa a esperar-te
Vejo cair suas pétalas ao chão
Não as apanho perfumam o meu quarto
E estou sozinho como um louco
 
2
As flores aquecem-me
     Anacha tenho frio
A poesia aquece-me
     Anacha teho frio
A solidão aquece-me
     Tenho fogo Anacha
 
3
O que é um poeta? Ninguém o sabe
Palavras que mordem somos cães
raivosos de tanta doçura
Li-tai-po não me ouve Vem tu
 
4
Minha cabana é formosa
Conhece os meus cantos magoados
E o silêncio sorri-me
É formosa a minha cabana
 
5
Sou chuva de beleza
que gota a gota cai sobre o abismo
Sou o Adónis do sofrimento
Meu coração não é deste mundo
E ninguém ama as minhas chagas
 
6
Não se tape nunca a boca à dor
Nada se perde ao sofrer-se
A vida é uma porta terrível
deixa-a sempre aberta
 
7
A noite é um quarto escurecido pelos amantes
disse William Carlos Williams
Quantas vezes senti a escuridão
dentro de uns cabelos?
 
8
Falar a uma mulher que nos ama
de outra mulher que amamos
não se pode fazer neste mundo
Mas quem tem a culpa?
Eu calo-me neve gelada
 
9
A religião da linguagem
As palavras são estrelas
Quem me escuta quando falo?
Ninguém a não ser o vento negro
 
10
Lendo Esquilo na minha infância
depois duas ou três grandes vozes
Oh Cassandra oh Zaratustra
Ouvir-se-ão palavras ou silêncio
A dor é a única fonte
 
 
 
 
carlos edmundo ory
antologia da poesia espanhola contemporânea
trad. de josé bento
assírio & alvim
1985
 




03 novembro 2021

jorge luís borges / a quem já não é jovem

 
 
Já podes ver o trágico cenário
E cada coisa no lugar devido;
As cinzas e a espada para Dido
E a moeda para Belisário.
Porque vais procurando no brumoso
Bronze desses hexâmetros a guerra
Se estão aqui sete palmos de terra,
O abrupto sangue e o aberto fosso?
Aqui te espreita o insondável espelho
Que sonhará e esquecerá o velho
Reflexo das tuas agonias.
Cerca-te já o derradeiro. A casa
Onde essa lenta e breve tarde passa
E a rua que vês todos os dias.
 
 
jorge luís borges
obras completas 1952-1972 vol. II
o outro, o mesmo (1964)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998




02 novembro 2021

wislawa szymborska / o primeiro amor

 
 
Dizem
que o primeiro amor é o mais importante.
É muito romântico
mas não é o meu caso.
 
Algo entre nós houve e não houve,
deu-se e perdeu-se.
 
Não me tremem as mãos
quando encontro pequenas lembranças,
aquele maço de cartas atadas com um cordel,
se ao menos fosse uma fita.
 
O nosso único encontro, passados anos,
foi uma conversa de duas cadeiras
junto a uma mesa fria.
 
Outros amores
continuam até hoje a respirar dentro de mim.
A este falta fôlego para suspirar.
 
No entanto, sendo como é,
não lembrado,
nem sequer sonhado,
consegue o que os outros ainda não conseguem:
acostuma-me com a morte.
 
 
 
 
wislawa szymborska
instante
trad. elzbieta milewska e sérgio neves
relógio d'água
2006