03 novembro 2021

jorge luís borges / a quem já não é jovem

 
 
Já podes ver o trágico cenário
E cada coisa no lugar devido;
As cinzas e a espada para Dido
E a moeda para Belisário.
Porque vais procurando no brumoso
Bronze desses hexâmetros a guerra
Se estão aqui sete palmos de terra,
O abrupto sangue e o aberto fosso?
Aqui te espreita o insondável espelho
Que sonhará e esquecerá o velho
Reflexo das tuas agonias.
Cerca-te já o derradeiro. A casa
Onde essa lenta e breve tarde passa
E a rua que vês todos os dias.
 
 
jorge luís borges
obras completas 1952-1972 vol. II
o outro, o mesmo (1964)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998




02 novembro 2021

wislawa szymborska / o primeiro amor

 
 
Dizem
que o primeiro amor é o mais importante.
É muito romântico
mas não é o meu caso.
 
Algo entre nós houve e não houve,
deu-se e perdeu-se.
 
Não me tremem as mãos
quando encontro pequenas lembranças,
aquele maço de cartas atadas com um cordel,
se ao menos fosse uma fita.
 
O nosso único encontro, passados anos,
foi uma conversa de duas cadeiras
junto a uma mesa fria.
 
Outros amores
continuam até hoje a respirar dentro de mim.
A este falta fôlego para suspirar.
 
No entanto, sendo como é,
não lembrado,
nem sequer sonhado,
consegue o que os outros ainda não conseguem:
acostuma-me com a morte.
 
 
 
 
wislawa szymborska
instante
trad. elzbieta milewska e sérgio neves
relógio d'água
2006





 

01 novembro 2021

louise glück / o passado

 
 
Débil luz surgindo no céu
de súbito entre
dois galhos de pinheiro, as finas agulhas
 
recortadas agora sobre a superfície radiosa
e acima disto
o alto céu emplumado –
 
Cheira o ar. Este é o cheiro do pinheiro branco,
sobretudo intenso quando o vento passa por ele
e o som que faz é igualmente bizarro,
como o som do vento num filme –
 
Sombras movendo-se. Produzem as cordas
o som costumeiro. O que ouves agora
será o som do rouxinol, chordata,
o pássaro macho a cortejar a fêmea –
 
As cordas agitam-se. A rede
balouça no vento, bem
amarrada entre dois pinheiros.
 
Cheira o ar. Este é o cheiro do pinheiro branco.
 
É a voz da minha mãe que ouves
ou tão-só o som que fazem as árvores
quando o ar passar por elas
 
pois que som faria
o passar por nada?
 
 
 
louise glück
noite virtuosa e fiel
tradução de margarida vale de gato
relógio d´água
2021






31 outubro 2021

sérgio ninguém / segundo andamento, a prosa (moderato)

 
 
A ausência foi-se ao vos conhecer. Em cada escarpa, um tom. A essência vive nos vivos. O escuro veste-nos, com a realidade, para o imaginário se habituar à claridade ausente. Faltam dias para o indiscernível chegar. Repetido avanço, pensamento do mito pela forma.
                Fazer vazio sem (o) tempo.
 
 
 
sérgio ninguém
pedra II
edições eufeme
2021









30 outubro 2021

pedro spigolon / pressa seca

 
 
 
Só cessa o exílio
se a mala vira bote
mas até quando repetirei esse apelo
sem encontrar rio algum?
Poderia desenhar uma paisagem
com o meu corpo seco
mas desconheço o motivo das nascentes
e ignoro o passar do tempo.
O rio seca a pressa quando
espalha a imaginação do céu
e as nuvens se demoram
na imitação dos bichos:
um cavalo, um peixe
mas se é um e também outro
não guardaria o céu
a morte do tempo?
Toda a fauna numa nuvem
não devora os minutos?
Os relógios murcham as nuvens
E os homens contam os segundos
ainda mais quando têm pressa
de fugir ao trabalho
E tem-se pressa de viver
algo bom no futuro
quando tudo será calma e cansaço.
Poderá divertir-se com tolices
como quem cumpriu sua meta
e permitirão descansar
os sapatos sujos
no sofá à prestação.
Assim, adiando os dias,
sequer poderemos caçar nuvens
e ouvir o riso dos rios.
 
 
pedro spigolon
espanto
editora medita
2015





 

29 outubro 2021

pier paolo pasolini / who is me, poeta das cinzas

 
 
[…]
 
Vivi <…>
aquela página de romance, a única da minha vida:
quanto ao resto, <o que querem,>
tenho vivido dentro de uma lírica, como todos os atormentados.
Tinha entre os meus manuscritos também o meu primeiro
                                                                             [romance:
eram os tempos de «Ladrões de Bicicletas»
e os literatos descobriam a Itália.
(Eu agora já não sou um literato,
evito os outros, não tenho nada a ver
com os seus prémios e as suas publicações.)
Chegámos a Roma,
ajudados por um doce tio meu,
que me deu um pouco do seu sangue:
eu vivia como pode viver um condenado à morte
sempre com aquele pensamento como uma coisa atrás de mim,
– desonra, desocupação, miséria.
A minha mãe reduziu-se durante algum tempo ao trabalho
                                                                      [de servir.
E eu não me curarei jamais desta doença.
Porque sou um pequeno-burguês, e não sei sorrir…
como Mozart…
Num filme – a que chamei «Passarinhos e Passarões» –
Tentei, é verdade, a ópera buffa, ambição suprema de um escritor,
– mas só em parte o consegui,
porque sou um pequeno-burguês,
e tendo a dramatizar tudo..
 
[…]
 
 
pier paolo pasolini
who is me
poeta das cinzas
trad. de ana isabel soares
barco bêbado
2021






28 outubro 2021

tomás sottomayor / um osso

 
 
Um Osso
Apenas
Pode falar de todas
As histórias de Amor
De todos os momentos
Perdidos no Jardim
 
Da tua Graça
Enquanto tomas banho
Num delírio de Satie
 
 
 
tomás sottomayor
auberge ravoux
língua morta
2021

 




 

27 outubro 2021

arnau pons / agarras-te à voz

 



 
AGARRAS-TE à voz, luz de destempo
que faz encaminhar a vida;
ninguém
se cala, todos querem escrever as trevas;
em direcção a ti, aquilo: empalidece
com lepra e neve a mão coberta,
as unhas com arcos de promessa;
 
rastos: que esboçam?
portas: que abraçam?
real uma só paisagem: os mudos.
arteriais, dragões alados de Medeia;
cosidas letras
estrias do céu;
 
sob a pele,
ficam os cadáveres das palavras;
 
uma poça de sangue abafa no escuro
um grito;
subitamente ergues os olhos
para a escória.
 
 
 
arnau pons
tradução de yvette centeno
eufeme 21 outubro/dezembro 2021
magazine de poesia
edições eufeme
2021






 


26 outubro 2021

daniel faria / e desço à verdura das tuas mãos

 
 
E desço à verdura das tuas mãos
Como as manadas que buscam as minas
 
Faltam-me apenas os pés feridos dos que peregrinam
Faltam-me no chão duro das promessas
Os joelhos
 
Queria tanto andar em redor, rodear-te, se soubesse como
Queria amar-te tanto
 
O que sei da unidade é a túnica
Tirada à sorte. O que sei da morte e da vida
É o livro escrito por dentro e por fora
Silêncio escrito por dentro
Palavra escrita a toda a volta da história
 
O que sei do céu
É a mão com que sossegas os ventos
 
Desço à escritura como os veados aos salmos
 
 
 
daniel faria
dos líquidos
do inesgotável
quasi
2003





 

25 outubro 2021

fernando alves dos santos / uma palavra

 
 
A palavra é a pujante árvore das coisas
qual inverno num pingo de água,
momento temporal num poço muito fundo,
taça de sabedoria
que tudo abrevia.
Beijo de esperança que se empenha na inocência
apenas tentando a inocência das coisas
que permanece sedenta das grandes claridades,
sem tempo e sem modo permanece
na poesia do desejo.
 
Uma gota, uma criança, a forma,
uma ponte entre o futuro e a lembrança.
O grito que congestiona o orgulho dos roteiros
e abre estuários no mundo abundante da seiva
onde a gota nasce e desliza
no calcário do pensamento.
A criança é o centro da multidão que constitui a alma
– à porta das arestas colhendo os frutos,
á porta dos frutos o deserto de uma gota.
E a forma desperta nos meus cabelos brancos,
vinhas que plantei no meio dos torrões da planície
perscrutador e atento
às ciosas palavras das pessoas.
 
Uma palavra estilete coberta de pó,
uma palavra pássaro nas montanhas de ferro
onde envelhecem os seios da pátria,
uma palavra vento possuindo as fragas,
uma palavra mar,
uma palavra agoirenta na concha da mão
quando aí seguramos o pão grosseiro.
Uma palavra da cidade a ferros na prisão
se não solitária na doca
onde fundeamos a nau carregada de tapeçarias.
Uma palavra lírica de ruptura
a dizer de novo as pessoas,
a dizer o chão do sonho novo que pisamos
polifonia dos esporões de basalto
que se expande rebelde.
 
Uma coisa, uma palavra,
quando a noite se situa
sobre os telhados da manhã
e dá alento novo aos nossos lábios
porventura o optimismo das sementes
no ser real da palavra jubilosa
nas frescura da transumância.
 
 
  
 
fernando alves dos santos
diário flagrante [poesia]
edição perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
2005
 




24 outubro 2021

miguel torga / plateia

 
 
Não sei quantos seremos, mas que importa?!
Um só que fosse, e já valia a pena.
Aqui, no mundo, alguém que se condena
A não ser conivente
Na farsa do presente
Posta em cena!
 
Não podemos mudar a hora da chegada,
Nem talvez a mais certa,
A da partida.
Mas podemos fazer a descoberta
Do que presta
E não presta
Nesta vida.
 
E o que não presta é isto, esta mentira
Quotidiana.
Esta comédia desumana
E triste,
Que cobre de soturna maldição
A própria indignação
Que lhe resiste.
 

 
miguel torga
câmara ardente
1962





23 outubro 2021

alberto pimenta / diálogo

  

vês aqueles pontos lá longe, disse o cego,
parando e apontando com a bengala. não, mas
vejo as pessoas lá longe, tão pequenas que
parecem pontos, disse eu. era isso que eu
queria dizer, disse o cego.
 
vês aqueles pontos lá longe, disse o cego,
parando e apontando com a bengala. não, mas
vejo os navios lá longe, tão pequenos que
parecem pontos, disse eu. era isso que eu
queria dizer, disse o cego.
 
vês aqueles pontos lá longe, disse o cego,
parando e apontando com a bengala. não, mas
vejo as casas lá longe, tão pequenas que
parecem pontos, disse eu. era isso que eu
queria dizer, disse o cego.
 
vês aqueles sinais lá longe, disse o cego,
parando e apontando com a bengala. não, mas
vejo as estrelas no céu escuro, tão peque
nas que parecem um espanto, um sinal
e um provérbio, disse eu.
 
essa mania da contradição ainda te há-de
sair cara, disse o cego, brandindo a bengala.
 
 
 
alberto pimenta
obra quase incompleta
fenda
1990






22 outubro 2021

albano martins / os muros

 



 
Os muros. Todos
os muros. Um
só muro. E toda
a sede. E todo
o sal
do mar
 
 
no peito.
 
 
 
albano martins
por ti eu daria
as vogais aliterantes (1981-1985)
glaciar
2021