19 julho 2020

rainer maria rilke / os sonetos a orfeu


XXI

Canta meu coração, jardins que não conheces;
claros, fundidos em vidro, impossíveis de alcançar.
Água e rosas de Ispahan e de Chiraz, ah! tece-
-lhes louvores, cantas sua ventura, são sem par.

Mostra, meu coração, que deles não te privas.
E que pensam em ti seus figos que já adoçam.
Que tens trato co as brisas, entre os ramos, vivas,
Como se em rosto transformar-se possam.

Evita o erro de haver falhas, lacunas,
prà decisão cumprida, e essa é: existir!
Fio de seda, entraste no tecido.

Não importa a que imagem lá por dentro te unas
(instante até, numa vida de penas), vem sentir:
só o tapete inteiro e em glória faz sentido.



rainer maria rilke
elegias de duíno e os sonetos a orfeu
trad. de vasco graça moura
quetzal
2017





18 julho 2020

sérgio pereira / apaga o cigarro na cúpula do céu



apaga o cigarro na cúpula do céu
a alegria queima como uma desgraça
não consegues ver o que te rodeia
e procuras cair
onde haja um lençol de água

governas os instantes
a partir da superfície
mas o cheiro a resina
fez da tua língua uma eira
para a aterragem dos pássaros

não cumpras o destino da argamassa
chegou a altura de ouvires o frio
e numa terra de ninguém
abraçares a alvorada


sérgio pereira
hífen 10 maio 1997
cadernos semestrais de poesia
anos noventa (alguns poetas)
1997






17 julho 2020

s. kierkegaard / a verdadeira fruição



A verdadeira fruição não está naquilo de que se frui, mas na representação. Se tivesse ao meu serviço um espírito submisso que, quando eu pedisse um copo de água, me trouxesse os vinhos mais preciosos do mundo inteiro agradavelmente misturados numa taça, então dispensá-lo-ia, até que ele aprendesse que a fruição não está naquilo de que fruo, mas em fazer a minha vontade.


s. kierkegaard
diapsalmata
trad. de bárbara silva, m. jorge de carvalho,
nuno ferro e sara carvalhais
assírio & alvim
2011












16 julho 2020

fabio weintraub / hotel




Voltei depois de quinze anos
Queria rever meus pais
assentar praça
arrumar marido

Arrumei um diretor
que afaguei por uma década
e ele saiu à francesa
(por um triz não meti
Uma bala na cabeça)

Já tentei me proteger
Num colar carregava
os ossos do meu avô
e uma safira em meus dentes
(o colar acabei dando, a pedra
no hospital me roubaram)

Nasci girino:
operado antes de um ano
deprimido aos cinco
dopado aos doze

Por ser gago e gay
sempre me humilharam
Tia Rana me protegia
Morreu cedo porque me amava

Não posso comer em público
mastigo como quem defeca
A conta é mamãe quem paga

Barriga de mãe
é o hotel mais caro do mundo


fabio weintraub
telhados de vidro n.º 19
maio de 2014
averno
2014







15 julho 2020

sophia de mello breyner andresen / as casas



Há sempre um deus fantástico nas casas
Em que eu vivo, e em volta dos meus passos
Eu sinto os grandes anjos cujas asas
Contém todo o vento dos espaços.


sophia de mello breyner andresen
obra poética I
dia do mar 1947
caminho
1999











14 julho 2020

josé carlos ary dos santos / soneto presente



Não me digam mais nada senão morro
aqui     neste lugar     dentro de mim
a terra de onde venho é onde moro
o lugar de que sou é estar aqui.

Não me digam mais nada senão falo
e eu não posso dizer     eu estou de pé.
De pé como um poeta ou um cavalo
de pé como quem deve estar quem é.

Aqui ninguém me diz quando me vendo
a não ser os que eu amo     os que eu entendo
os que podem ser tanto como eu.

Aqui ninguém me põe a pata em cima
porque é de baixo que me vem acima
a força do lugar que for o meu.


ary dos santos
vinte anos de poesia
resumo 1972
círculo de leitores
1983







13 julho 2020

joaquim manuel magalhães / o aqueduto



O aqueduto,
côncavo e desafinado,
singra.

Singulares o indulto e o alqueire.
O baloiço broca a representação.
Assinalam a derrota.

Amei muita vez amei-te.
Dissimulei deriva, nocivo,
feliz a rédea da albufeira.



joaquim manuel magalhães
para comigo
traço
relógio d´água
2018






12 julho 2020

ricardo reis / a cada qual, como a estatura, é dada



A cada qual, como a estatura, é dada
        A justiça: uns faz altos
        O fado, outros felizes.
Nada é prémio: sucede o que acontece.
        Nada, Lídia, devemos
        Ao fado, senão tê-lo.

20-11-1928




fernando pessoa
odes de ricardo reis
ática
1946

11 julho 2020

nuno / habituário



Tanta publicidade se fez ao nosso amor
para morrer incógnito, sem um
rectângulo no lado esquerdo dum jornal.

Com os anos, a morte torna-se um hábito.


nuno
livro de visitas
díptico
ed. do autor
2019











10 julho 2020

josé tolentino mendonça / um pequeno tremor



A sua morte não passou de um pequeno tremor
as fúrias gritavam
mas ao longe
dentro das câmaras onde esses gritos
de aranha não se escutam

A sua grandeza era uma quase indiferença
aos desastres

No cimo de si próprio
sustinha objectos improváveis
caminhava pelo fogo
sem desordem
sem desejo doutro passo
uma forma de pudor era nele
a acalmia

sem ele saber as palavras
deslizavam para um lugar sem perigos
mas também sem palavras



josé tolentino mendonça
a noite abre meus olhos
(poesia reunida)
assírio & alvim
2006






09 julho 2020

charles bukowski / aviso



sobre a tua boca vermelha e escurecida gritam pássaros
                                                                      selvagens
e aquários de peixes nadam nas suas selvas,
uma manhã de China, um meio-dia ressequido
                                               de machados e
bruxas;
anseias por um sol infecto de homens e madeixas de
fibra a chamar o meu nome;
atenção, não sou o tontinho do teu marido,
sou o teu amante tonto,
e de todos os teus amantes tontos
o último aqui.



charles bukowsky
os cães ladram facas
trad. rosalina marshall
alfaguara
2018







08 julho 2020

leonard cohen / quando o desejo repousa



Sabes que estou a olhar para ti
sabes em que estou a pensar
sabes que estás interessada
sou muito hábil
vais esquecer-te de que sou velho
a menos que te queiras lembrar
a menos que queiras ver
o que acontece ao desejo
como ele se torna livre e
desavergonhadamente interessado no amor
por cada mulher
                      e pelas suas meias.
Quando o desejo repousa,
fazem-lhe sinal duas pessoas
distantes sobre uma manta verde
(ou serão as flores do musgo?);
duas pessoas que acenam ao longe
estendidas como coisas
                              que têm de secar
com sorrisos ternos nos
                              rostinhos redondos;
acenam ao desejo
enquanto este repousa em primeiro plano
maciço, tranquilo,
fiel como um cão feito de lágrimas.




leonard cohen
a chama
poemas
tradução de inês dias
relógio d´agua
2019






07 julho 2020

italo calvino / as cidades e os olhos. 3



Depois de ter caminhado sete dias através dos bosques, quem vai para Bauci não consegue vê-la e no entanto já lá chegou. São as finíssimas andas que se elevam do solo a grande distância umas das outras e se perdem acima das nuvens que sustêm a cidade. Sobe-se com escadotes. No chão os habitantes raramente se mostram: têm já tudo de que precisam lá em cima e preferem não descer. Nada da cidade toca o solo à excepção daquelas pernas compridíssimas de fenicóptero em que assenta e, nos dias luminosos, uma sombra perfurada e angulosa que se desenha na folhagem.

Três hipóteses se põem sobre os habitantes de Bauci: que odeiam a Terra; que a respeitam a ponto de evitar qualquer contacto; que a amam tal como ela era antes deles e com binóculos e telescópios apontados para baixo não se cansam de passa-la em resenha, folha a folha, pedra a pedra, formiga por formiga, contemplando fascinados a sua própria ausência.



italo calvino
as cidades invisíveis
trad. josé colaço barreiros
teorema
1999