08 julho 2020

leonard cohen / quando o desejo repousa



Sabes que estou a olhar para ti
sabes em que estou a pensar
sabes que estás interessada
sou muito hábil
vais esquecer-te de que sou velho
a menos que te queiras lembrar
a menos que queiras ver
o que acontece ao desejo
como ele se torna livre e
desavergonhadamente interessado no amor
por cada mulher
                      e pelas suas meias.
Quando o desejo repousa,
fazem-lhe sinal duas pessoas
distantes sobre uma manta verde
(ou serão as flores do musgo?);
duas pessoas que acenam ao longe
estendidas como coisas
                              que têm de secar
com sorrisos ternos nos
                              rostinhos redondos;
acenam ao desejo
enquanto este repousa em primeiro plano
maciço, tranquilo,
fiel como um cão feito de lágrimas.




leonard cohen
a chama
poemas
tradução de inês dias
relógio d´agua
2019






07 julho 2020

italo calvino / as cidades e os olhos. 3



Depois de ter caminhado sete dias através dos bosques, quem vai para Bauci não consegue vê-la e no entanto já lá chegou. São as finíssimas andas que se elevam do solo a grande distância umas das outras e se perdem acima das nuvens que sustêm a cidade. Sobe-se com escadotes. No chão os habitantes raramente se mostram: têm já tudo de que precisam lá em cima e preferem não descer. Nada da cidade toca o solo à excepção daquelas pernas compridíssimas de fenicóptero em que assenta e, nos dias luminosos, uma sombra perfurada e angulosa que se desenha na folhagem.

Três hipóteses se põem sobre os habitantes de Bauci: que odeiam a Terra; que a respeitam a ponto de evitar qualquer contacto; que a amam tal como ela era antes deles e com binóculos e telescópios apontados para baixo não se cansam de passa-la em resenha, folha a folha, pedra a pedra, formiga por formiga, contemplando fascinados a sua própria ausência.



italo calvino
as cidades invisíveis
trad. josé colaço barreiros
teorema
1999







06 julho 2020

e e cummings / xix poemas



[xii]

esta pequena noiva & noivo estão
de pé)numa espécie
de coroa ele vestido
de açúcar preto ela

velada de açúcar branco
levando um bouquet de
flores artificiais esta
açucarada coroa com esta açucarada

pequena noiva & pequeno
noivo nela espécie de estar sobre
um fino anel que está sobre um muito
menos fino muitíssimo mais

largo & mais espécie de anel & cujo
mais espécie de está sobre um
muito mais que muitíssimo
larguíssimo & grossíssimo & especiíssimo

de anel & todos um dois três anéis
são de bolo & tudo protegido com
celofane contra seja o que for(porque
nada realmente existe




e. e. cummings
xix poemas
trad. jorge fazenda lourenço
assírio & alvim
1998





05 julho 2020

pat boran / canivete



A cheirar ainda a laranjas
depois de anos numa gaveta
entre botões, clipes,
envelopes e óculos velhos…

uma prenda tua:
destinado a cortar,
é a coisa que nos liga
de algum modo.


pat boran
o sussurro da corda
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2018









04 julho 2020

wallace stevens / domingo de manhã



3
Nas nuvens Júpiter teve o seu inumano nascimento.
Mãe nenhuma o amamentou, nenhuma doce terra deu
Movimentos magnânimos à sua mente mítica
Movimentou-se entre nós, como um rei rabugento,
Magnifico, se movimentaria entre as suas corças,
Até que o nosso sangue, misturando-se, virginal,
Som o céu, trouxe tal satisfação ao desejo
Que as próprias corças o discerniram, numa estrela.
O nosso sangue falhará? Ou virá a ser
O sangue do paraíso? E será que a terra
Aparenta tudo o que do paraíso conheceremos?
O céu será então muito mais afável do que agora,
Uma parte de trabalho e uma parte de dor,
E em glória a seguir ao amor constante,
Não este azul divisório e indiferente.

(…)



wallace stevens
ficção suprema
trad. luísa maria lucas queiroz de campos
assírrio & alvim
1991








03 julho 2020

yorgos seferis / inscrição tumular



As brasas dentro do nevoeiro
eram rosas enraizadas no teu coração
e a cinza cobria o teu rosto
todas as manhãs.

Desfolhando sombras de ciprestes
partiste no verão a seguir.



yorgos seferis
esboço para um verão
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães
e nikos pratisinis
relógio d´água
1993








02 julho 2020

elio pecora / mais não tenho do que o desespero



Mais não tenho do que o desespero
e uma confusa vontade de me sumir:
nem uma voz que me vem chamar
no poço vazio onde estou aninhado.
É morte isto que já me encerra.
A memória está desfeita. Houve um tempo
(a quem pertenceu se nada resta?)
quando esperava pelo teu regresso
e sofria, chamava, e tu aparecias
muito te rindo desse meu sofrer.



elio pecora
poemas escolhidos
recinto de amor (1992)
tradução de simoneta neto
quasi
2008






01 julho 2020

till lindemann / sim



Uma rápida palavra o «sim»,
eu jurei-lhe fidelidade.
Fomos para o mar
deixando o mundo perdido na areia.



till lindemann
nas noites tranquilas
trad. pedro garcia rosado
alma mater
2018












30 junho 2020

alejandra pizarnik / o coração do que existe



não me entregues,
               tristíssima meia-noite,
ao impuro meio-dia branco




alejandra pizarnick
antologia poética
los trabajos y las noches  – 1965
tradução fernando pinto do amaral
tinta da china
2020










29 junho 2020

jack gilbert / ir lá



Claro que foi um desastre.
Esse insuportável, dilecto segredo
sempre foi um desastre.
O perigo de quando tentamos partir.
Revendo depois uma e outra vez
o que deveríamos ter feito
em vez do que fizemos.
Mas nesses breves momentos
parecíamos estar vivos. Desencaminhados,
mal-tratados, aldrabados e traídos,
certamente. Mesmo assim, nesse
entretanto, visitámos
a nossa vida possível.



jack gilbert
deixem-me ser ambos
trad. leonor castro nunes e marcos pereira
deStrauss
2020





28 junho 2020

a. m. pires cabral / amar




Amar foi durante muito tempo
gravar iniciais adolescentes,
no fuste das tílias.

Era então uma espécie
de idade de ouro do amor.

Mas tive de aprender à minha custa
que amar pode ser tão envolvente
como um polvo:
ama-se em muitas frentes.

Aprendi que amar, entre outras coisas,
é também navegar as águas da noite
adultamente
sem bússola e sem cautelas,
à proa fugidia dum batel.

E que, em casos mais desesperados,
é ir aos trambolhões de mar em mar.
Tumultuosamente. Sem ser correspondido.
E em chamas, se preciso for.


a.  m. pires cabral
a noite em que a noite ardeu
cotovia
2015





27 junho 2020

inês lourenço / satélite



Os meus olhos acolhem um bando
de reflexos, invisíveis a horas
mais sombrias, na luz aberta
deste fim de Junho. Vêm ao meu
encontro os grandes plátanos do
jardim, ameaçados pelas
prováveis escavações do Metro.
Por ora ainda matizam os rostos
dos passantes e a penumbra das
janelas. No passeio das paragens
de autocarro para Ermesinde,
Areosa e outros debruns urbanos,
o volume dos corpos recorta-se
quadriculado pela luz. Seios e
estômagos transferem-me para
um estranho país de aleitamento e
digestões. Sigo num culpado
exílio a dobrar a esquina e inclino
os passos para o Satélite, onde
regresso ao aroma navegável
do cimbalino.



inês lourenço
o segundo olhar
companhia das ilhas
2015






26 junho 2020

manuel antónio pina / as escadas



Toma, este é o meu corpo, o que sobe as escadas
em direcção à tua escuridão, deixando-me,
ou a alguma coisa menos tangível,
no seu lugar.

Também elas envelheceram, as escadas,
também, como eu, desabitadas.
Anoiteceu, ao longe afastam-se passos, provavelmente os meus,
e, à nossa volta, os nossos corpos desvanecem-se como terras
                                                                         estrangeiras.




manuel antónio pina
como se desenha uma casa
ruínas
assírio & alvim
2012