09 maio 2020

al berto / carta da região mais fértil


(a meu pai)



vai certamente estranhar esta quase interminável carta
pai    
há muito que o silêncio se fez entre nós    
o pai com os seus trabalhos por aí onde o tempo custa a passar    
e eu pobre de mim    
tão aflito me sinto com a velocidade desse mesmo tempo    
a cidade é veloz    
não sei se o pai poderá compreender esta velocidade    
aqui tudo se tornou dia após dia mais doloroso    
minha mulher anda atarefadíssima com o arranjo da casa    
parece que mais nada existe para ela    
eu sempre na rua por aí  
porque não consigo suportar aqueles móveis
onde o pó não chega a pousar 
não consigo suportar aquela barulheira de electrodomésticos    
continuamente a funcionarem    
já não consigo suportar minha mulher`


saio de casa logo de manhã    
muitas vezes não me apetece ali voltar    
deambulo pela cidade gasto tempo de café em café    
perco-me    
noite dentro caminho sem direcção precisa    
sem saber para onde vou atravesso a cidade     
à procura não sei bem de quê    
o corpo esvaziou-se lentamente e    
com o passar do tempo sei agora    
este casamento foi um erro    
estou terrivelmente só    
talvez seja por isso que me lembrei de lhe escrever    
pai    
decidi partir    
não me pergunte para onde nem porquê    
partir é o que ressoa na minha cabeça   
viajar sem fim e jamais voltar    
também é inútil perguntar-me as razões de tudo abandonar    
este conforto enjoa-me esta vida dá-me vertigens e diarreia    
de resto duvido que existam razões de peso    
tenho a certeza de que seria capaz de suportar minha mulher
se ainda a amasse    
partilharia com ela a loucura que adquiriu pela casa    
a semanal mudança de lugar dos móveis    
e mais estranho ainda    
quando põe a máquina da roupa a trabalhar sem nada lá dentro    
diz que adora aquele insuportável ronronar de aço    
que lhe faz muita companhia    
enfim    
se eu ainda a amasse talvez    

mas é certo que arranjei outras compensações    
a amizade segura de um amigo    
talvez seja melhor não revelar grande coisa sobre este assunto    
poderia chocar o pai por demasiado íntimo e delicado
duvido mesmo que conseguisse entender a amizade como eu a entendo    
que quer    
sempre gostei da travessia das noites e das pessoas    
e de beber    
muitas vezes nem sei quem são as pessoas com quem falo    
o pai dir-me-á que tudo isto são simples fugas    
é possível    
desde que me conheço que me fujo    
amo essas fugas esses pedaços doutras vidas cruzando-se    
com pedaços sombrios da minha    
não leve a mal estes desvarios    
no fundo teria sido melhor para mim ter ficado aí    
onde o tempo parece não avançar e a terra é fértil    
provavelmente hoje seria um desses pastores que meditam     
sobre as fases da lua mesmo antes delas se iniciarem    
é possível que hoje fosse um operário exemplar    
trabalharia sem sequer me pôr a questão de que há outro mundo    
por descobrir para lá do incessante roncar surdo das máquinas    
tudo explodiu dentro de mim e não sei como dizer-lho  
vou largar tudo    
a mulher o trabalho a cidade onde vivo a casa de que não gosto    
a cidade apagou em mim muitos desejos    
a única coisa que ainda faço com prazer é vagabundear    
o que não é muito     
mas sinto-me livre e feliz e anónimo

olho a vida como se o mundo desabasse dentro de instantes    
quanto ao emprego não se preocupe    
vou escrever ao meu patrão para me despedir    
não sei o que me espera longe daqui    
nem sei onde pararei de viajar    
sei que devo partir de todos os lugares onde chegar    
se é que alguma vez vou chegar a algum lugar    
fascinam-me sobretudo as cidades costeiras
nelas poderei embarcar para outras cidades
ou ficar no cais a ver os barcos afastarem-se    
e quedar-me silencioso horas a fio    
olhando-os desaparecer    
com o simples desejo de ir com eles    
mas ficar    
ficar um dia mais para que o desejo de partir se torne tão forte    
insustentável    
e me apeteça morrer em cada porto de partida e de chegada    
nesta incerteza viverei o resto dos meus dias    
atravessando mares devassando corpos e noites    
que de mastro em mastro se tornam peganhentas    
indecisas

digo isto porque ultimamente tenho sonhado muito
facto extraordinário que já não me acontecia há muito tempo    
nesses sonhos surgem-se grandes planos de rostos    
antigas topografias de corpos    
desenhados minuciosamente no espaço como mapas pormenorizados    
dalguma costa pedregosa    
paisagens exuberantes imagens a preto e branco    
semelhantes a fotografias ou a visões    
feras que silentemente passeiam pela praia    
e parecem não ter peso    
imensos mares que não consigo localizar nos mapas    
cheguei mesmo a comprar uma quantidade incrível de mapas    
passei noites a estudá-los    
senti a necessidade absoluta de saber onde encontraria    
aquelas paisagens de rostos e de feras com pêlo ruivo    
assim percorri estradas e arquipélagos    
percorri cidades sem me deter para pernoitar    
imaginei sedes e fomes terríveis doenças    
e nada consegui saber de mim mesmo    
nem onde se encontrava meu corpo


por vezes acordava em sobressalto    
olhava minha mulher dormir    
perscrutava seu corpo moreno enrolado no lençol    
avistava praias espreguiçadas pela penumbra do quarto    
deve ter sido uma das últimas vezes que a amei     
mas só mais tarde comecei a ter visões
ficava sentado na cama estático os olhos em alvo    
apercebia pequenas formas geométricas flutuantes    
delicados cristais movimentando-se aderiam aos dedos    
sementes de estrelas rebentavam deixando escorrer resina    
claridades pelas paredes abauladas    
o ar ficava incandescente    
podia vê-lo e senti-lo cortante sobre o peito    
a princípio assustei-me    
mas com o tempo habituei-me    
como me habituei a ver no escuro a desolação de barcos naufragados    
e a viver sem corpo sem sombra e sem reflexo    
minha mulher achou melhor internarem-me    
mas nunca me foi visitar    
nem uma só vez enquanto estive atado a uma cama    
precisava tanto dela    
ou de alguém que me tocasse    
para me certificar que a vida ainda latejava no fundo do corpo    
não se assuste pai    
tudo isto passou e a morte parece não querer nada comigo    
de resto    
a vida também não    
talvez não devesse falar-lhe destas coisas    
que direito terei eu de o inquietar? de o perturbar?    
nem sequer lhe devia escrever    
na verdade fomo-nos afastando tanto nos últimos anos    
o pai já deve ter os cabelos todos brancos    
pouco ou nada tínhamos a dizer um ao outro    
o sol a chuva o mar e a tempestade eram-me indiferentes    
o cheiro quase doce da terra molhada    
não sei se o pai consegue imaginar o que é uma cidade    
que respiração ferida de cimento se exala dela    
um coração de gasolina e de néon palpita das avenidas    
aos subúrbios de lata e de estrumeiras    
que cicatrizes sujas de lágrimas se abrem ao cair da noite    
e tudo brilha e tudo parece viver por trás do que já está morto    
entradas de cinemas montras jornais luminosos umbrais de luz    
poderá imaginar tanta luz em plena noite?    
o espaço rasgado por passos rostos barulhos sibilantes    
sirenes gritos pequenos suicídios    
ignoro se o céu imenso daí não o acharia estreito aqui    
percebe agora como é que alguém se pode perder na noite?    
não sei


noutros tempos é possível que tivesse vivido como aventureiro    
como esses homens tristes tisnados pelo mar    
viajam    
levando mercadorias e mensagens iam de porto em porto    
enriquecendo fornicando rezando e largando enteados e sífilis    
quem sabe se não sou habituado pela sombra dum país qualquer    
muito antigo e distante    
ou apenas pelo eco duma língua que estala no coração    
uma voz um rosto murmurado um presságio    
então comecei por atravessar o rio nos cacilheiros    
de dia e de noite sem me aperceber que o tempo deste rio    
já o haviam pintado em retábulos magníficos    
e o rio só existia quando sonhava   
como se isto resolvesse alguma coisa ia e vinha    
sem nunca ter a sensação de quem chega ou de quem parte    
sentia-me como que a boiar num tempo remoto    
e de mais longe ainda que o meu próprio corpo podia lembrar    
um cheiro inquietante a sal devassava-me a intimidade do sonho    
corroí-me a memória


pensei depois ao olhar as fotografias    
as poucas onde me conseguia reconhecer    
que resolveria esta angustiante procura    
julguei que se pudesse recuar ou avançar no tempo    
ser jovem e velho e velho e jovem simultaneamente    
talvez pudesse reencontrar-me de novo ou insinuar-me    
no corpo fotografado    
encontraria o sorriso simples da infância que me revelaria o nome    
mas foi impossível    
porque aquele rapaz que sorria e me olhava    
com os seus olhos em papel sépia não era eu    
e tive medo    
passava as noites a embebedar-me    
turvava a memória de tudo e de todos    
era-me doloroso não conseguir corrigir o passado    

a viagem que de manhã início é um sobejo de vida    
ignoro se irei parar a um desses países cuja linguagem desconheço    
e os costumes do amor me são estranhos    
não sei se haverá regresso    
mas não esquecerei a sua colecção de selos    
quando o pai receber um postal dum determinado lugar    
é sinal de que nesse lugar não estarei    
será inútil tentar saber o meu paradeiro    
pouco importa se continuo vivo    
se calhar esta viagem não passa de pura imaginação

    
tem de me desculpar esta última carta    
de resto pouco disse do que inicialmente lhe queria dizer    
paciência pai    
não nos veremos mais e eu tenho pena de nunca ter tocado    
os seus cabelos brancos    
mas de qualquer maneira já nos víamos muito pouco    
tanto tempo sem memória nos separou

    
peço-lhe que queime esta carta    
destrua-a    
e se a minha mulher lhe escrever ou telefonar    
diga que nada sabe do seu filho há muitos anos   
é melhor assim    
nenhum resíduo nenhum brilho deve assinalar a minha passagem


al berto
três cartas da memória das índias 1983/1985
o medo
assírio & alvim
1997








08 maio 2020

wislawa szymborska / filhos da época


Nós somos filhos da época,
a época é política.

Todas as tuas, nossas, vossas
questões diárias, questões nocturnas
são questões políticas.

Queiras tu ou não
os teus genes têm passado político,
a pele matiz político,
os olhos aspecto político.

Os temas que abordas têm ressonância,
o que calas tem expressão
de um modo ou outro na política.

Passeias pela floresta
e dás passos políticos
num chão político.

Também são políticos os versos apolíticos,
e lá no alto a lua resplandece,
a lua já objecto não lunar.
Ser ou não ser, eis a questão.
Mas que questão, responde lá, então.
Questão política.

Não tens sequer que ser um ser humano
para adquirires significado político.
Basta-te seres petróleo bruto,
matéria-prima, forragem substancial.

Ou mesa então de reuniões em cuja forma
se apoiaram longos meses:
na qual se negociou a vida ou morte,
quadrada ou redonda.

Pessoas entretanto faleceram,
morreram animais,
casas arderam
e campos tornaram-se bravios
como nos tempos de outrora
muito menos políticos.



wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998





07 maio 2020

octavio paz / teu nome



Nasce de mim, de minha sombra,
amanhece em minha pele,
aurora de luz sonolenta.

Pomba brava teu nome,
tímida sobre o meu ombro.


octavio paz
antologia poética
liberdade sob palavra (1935- 1957)
trad. luís pignatelli
publicações dom quixote
1984











06 maio 2020

manuel resende / vida



Vida passajada, alinhavada
Cerzida, em ponto de cruz, ou de estrada,
Ou de pérola, tenho-te tratado
Com todos os cuidados –
E tu, madrasta, sempre
Logo num ai devoras o almoço que eu
Preparei com tanto amor, a manhã inteira.
Sempre a começar de novo, sempre a dar-me outra manhã,
Quando a de ontem já me bastava para toda a vida.


manuel resende
poesia reunida
edições cotovia
2018










05 maio 2020

rui caeiro / sabem que mais?



Sou um homem dado ao álcool e a eternas dúvidas
e que na rua ou lá onde seja a todo o momento pode tropeçar
ou morrer: voar é que é muito mais improvável

Sou um homem de áridas certezas e uma esperança
a essa arrasto-a, pela mão pelos cabelos pelas orelhas
paro escuto e olho antes de atravessar

com ela. E não lhe sei o nome. E não me preocupo



rui caeiro
sobre a nossa morte bem muito obrigado
o sangue a ranger nas curvas apertadas do coração
maldoror
2019








04 maio 2020

billy collins / depois de amanhã



Se tivesse de escolher um favorito
dentre os quatro heterónimos de Fernando Pessoa,
teria de ser Álvaro de Campos,
escolhido para o papel de Sensacionista Cansado.

Esta manhã nada acontece de especial,
só a gata enrolando-se novamente numa cadeira
e a água para o chá a começar a ferver –
uma cena que o Álvaro teria achado inteiramente suficiente,

ele que não começou nem terminou nada,
que prefere a janela
à porta, o amanhã ao hoje
ou melhor ainda, o depois de amanhã,

essa cidadela de quietude, intocada
pela ambição ou o trabalho, sem mácula sequer
de uma mão a aproximar a agulha de um disco
ou deslocando uma cadeira do pátio para o sol.

Sim, gosto do Pessoa sonhador
que evita os eléctricos e os mercados,
e que, como um floco de neve, quase nem existe,
mas isso não significa que não goste dos outros.

Agora mesmo, na janela das traseiras,
os quatro Pessoas perseguem-se uns aos outros
à volta de uma grande árvore, segurando os seus chapéus,
cada um deles vestido de forma mais extravagante

que o outro. Acima deles um céu pálido,
nuvens brancas como barcos à vela sobre Portugal.
Consigo ver tudo desde o meu sofá onde
toco algumas melodias tristes no flautim.

Entretanto, a água para o chá evaporou-se no ar,
e a coroa de chamas queima apenas a chaleira,
e a gata mudou de lugar.
Ela adora a cama por fazer, os lençóis montanhosos.




billy collins
trad. ricardo marques e ricardo vasconcelos
lisbon revisited
dias de poesia
casa fernando pessoa
2019




03 maio 2020

vladimir maiakovski / luar

Paisagem


Deve haver lua.
Ela já aparece um pouco
além.
E ei-la cheia suspensa no ar.
É sem dúvida deus
que com uma prodigiosa
colher de prata
remexe a sopa de estrelas.


vladimir maiakovski
33 poesias
trad. adolfo luxúria canibal
edições snob
2019








02 maio 2020

bertolt brecht / a lição do jardineiro



Pequeno reino de sebes e canteiros
O meu jardim me ensina
Que até a rosa nobre de Mileto
Tem de, para ser bela, ser podada.
Também ela deve compreender
Que a couve, o alho e outros legumes
De origem modesta, mas não menos úteis,
Têm, como ela, direito
À sua ração de água.
O jardim seria mato
Se só na rosa imperial pensássemos.



bertolt brecht
poemas
selecção e trad. de arnaldo saraiva
presença
1976






01 maio 2020

josé gomes ferreira / a caricatura do banqueiro…



                            (Lá de fora da Cidade vem o Coro da
                            Lamentação Geral em honra dos pobres her-
                            óis que morrem pelo que JULGAM-QUE-
                            EXISTIU. Festa fúnebre com foguetes de
                            lágrimas.
                                 Entramos no Banco. – Não há poemas
                            sociais sem bancos nem banqueiros. De cha-
                            ruto. )



II

A caricatura do Banqueiro…
(a verdadeira imagem ficou em casa a sorrir para o filho)
… dum lado para o outro
a entrar e a sair do espelho.

Parecia mal trazer os olhos secos
agora que os homens morriam
contra si mesmos
nos Dias Habituados.

E lágrimas? Nem uma.
Só as pérolas da mulher
choradas pelos náufragos
nos colos de bruma
dos bailes do Cofre Forte.

E era urgente,
era necessário
aquecer a morte.

Então
– sempre em casa a sorrir para o filho com a Boca Verdadeira –
untou-se de luz postiça,
correu ao sótão em frente
e com voz de sacrário
depois da burocracia da missa,
foi pedir as lágrimas emprestadas
à engomadeira
que continua a tossir nos versos de Cesário.

E ela deu-lhas.
«Leve-as. Até me apetece descansar um bocadinho da injustiça.»



josé gomes ferreira
poesia V
lágrimas trocadas - 1956
portugália
1973







30 abril 2020

diogo vaz pinto / que queres que te diga?



para o David


Que queres que te diga?
Não estamos velhos, se isso te consola.
Mas também já soa mais a conversa.
Uns passos fora e as paisagens
já nos arreganham os dentes.

Entre fósforos apagados e calcanhares de Aquiles,
eriçaram-se flores na carcaça do animal
que ia levar-nos daqui.

Baixou uma névoa não sei de onde,
e ando há semanas fodido
com os correios que já não asseguram
serviço de e para Pasárgada.

Ouve o que te digo: esta coisa
da realidade
está a meter água por todos os lados
e quem não se mandar agora
já não sai.

Qual poesia, qual caralho!
Depois de bater tudo, de ver os magrelas
dos cães a guerrearem por côdeas
entre os sacos de lixo da morte,
o que te digo é: nem faças as malas.
Onde quer que a gente venha
a fincar a bandeira dos ossos,
o passado só irá atrapalhar.



diogo vaz pinto
aurora para os cegos da noite
maldoror
2020