04 abril 2020

yvette k. centeno / shepperton



no rio
só peixes solitários
só uma lua
a que nunca se vê
só barcos sem pessoas
só água sem maré



y. k. centeno
perto da terra
editorial presença
1984










03 abril 2020

sophia de mello breyner andresen / a hora da partida



A hora da partida soa quando
Escurece o jardim e o vento passa,
Estala o chão e as portas batem, quando
A noite cada nó em si deslaça.

A hora da partida soa quando
As árvores parecem inspiradas
Como se tudo nelas germinasse.

Soa quando no fundo dos espelhos
Me é estranha e longínqua a minha face
E de mim se desprende a minha vida.


sophia de mello breyner andresen
poesia III
obra poética
assírio & alvim
2015





02 abril 2020

firmino mendes / requiem, em tempo de saturno



Adormeçam comigo nas grandes avenidas
de choupos negros
com o coração em sobressalto
tocado pelos sonhos que rodeiam colinas
outeiros à beira da morte
teias de aranha em suspensão nas ervas cortadas
onde brilha a água do céu

Aproximam-se os exércitos em linha de fogo
prontos para a grande laceração
nos socalcos
que aproximam o rio dos cumes
nas escarpas
onde se resguardam as águias
antes do grande ataque à casa viva

Adormecem comigo com o rosto sempre fixo
nos últimos campos de alface e hortelã
Alguém dirá que estamos desacordados
e passará ao lado sem calcar as rosas
enquanto de longe chega o ruído dos bandoleiros

Desaparecem os caminhos mais estreitos
Já não podem passar as palavras
para chamar os vegetais mais pequenos:
alecrim, tomilho, beldroegas, salsa
cardos, orégãos, coentros, cidreira

O mundo toca-se
os dedos renovam a pele
multiplicando os nervos
antes que cheguem os aplicadores de queimaduras




firmino mendes
hífen 10 maio 1997
cadernos semestrais de poesia
anos noventa (alguns poetas)
1997






01 abril 2020

alejandra pizarnik / estar


Vigias neste quarto
onde a sombra temível é a tua.

Não há silêncio aqui
só frases que evitas ouvir.

Sinais nos muros
narram a bela distância.

(Faz com que não morra
sem voltar a ver-te.)



alejandra pizarnick
antologia poética
extracción de la piedra de locura – 1968
tradução fernando pinto do amaral
tinta da china
2020







31 março 2020

hans-ulrich treichel / o desmentido de sísifo


Sou saudável.
Barbeio-me todos os dias.
Visto uma camisa engomada.
Disto não abdico.
Só o pó me dá que fazer.
Tudo o resto é falso:
O monte onde vivo
não é tão alto como pensam.
Nem monte chega a ser.
E a pedra em breve
já só era o resto de uma pedra.
Há uns anos deixei-a
escorregar pelo cano abaixo.
Desde então aqui estou
a fazer declarações públicas.
Tudo o resto é falso.



hans-ulrich treichel
como se fosse a minha vida
trad. colectiva
poetas em mateus
quetzal editores
1994






30 março 2020

harold pinter / previsão do tempo



O dia vai nascer nublado.
Vai estar bastante frio
Mas à medida que o dia avançar
O sol abrirá
E a tarde será seca e quente.

À noite a lua brilhará
E será bastante luminosa.
Haverá, é verdade,
Um vento cortante
Mas que abrandará pela meia-noite.
Nada mais acontecerá.

Esta é a última previsão.

Março 2003



harold pinter
guerra
trad. pedro marques, jorge silva melo e francisco frazão
quasi
2003





29 março 2020

bernardo soares / milímetros (sensações de coisas mínimas)


Como o presente é antiquíssimo, porque tudo, quando existiu, foi presente, eu tenho para as coisas, porque pertencem ao presente, carinhos de antiquário, e fúrias de coleccionador precedido para quem me tira os meus erros sobre as coisas com plausíveis, e até verdadeiras, explicações científicas e baseadas.

As várias posições que uma borboleta que voa ocupa sucessivamente no espaço são aos meus olhos maravilhados várias coisas que ficam no espaço visivelmente. As minhas reminiscências são tão vívidas que (...)

Mas só as sensações mínimas, e de coisas pequeníssimas, é que eu vivo intensamente. Será pelo meu amor ao fútil que isto me acontece. Pode ser que seja pelo meu escrúpulo no detalhe. Mas creio mais — não o sei, estas são as coisas que eu nunca analiso — que é porque o mínimo, por não ter absolutamente importância nenhuma social ou prática, tem, pela mera ausência disso, uma independência absoluta de associações sujas com a realidade. O mínimo sabe-me a irreal. O inútil é belo porque é menos real que o útil, que se continua e prolonga, ao passo que o maravilhoso fútil, o glorioso infinitesimal fica onde está, não passa de ser o que é, vive liberto e independente. O inútil e o fútil abrem na nossa vida real intervalos de estática humilde. Quanto não me provoca na alma de sonhos e amorosas delícias a mera existência insignificante dum alfinete pregado numa fita! Triste de quem não sabe a importância que isso tem!

Depois, entre as sensações que mais penetrantemente doem até serem agradáveis, o desassossego do mistério é uma das mais complexas e extensas. E o mistério nunca transparece tanto como na contemplação das pequeninas coisas, que, como se não movem, são perfeitamente translúcidas a ele, que param para o deixar passar. É mais difícil ter o sentimento do mistério contemplando uma batalha — e contudo pensar no absurdo que é haver gente, e sociedades e combates delas é o que mais pode desfraldar dentro do nosso pensamento a bandeira de conquista do mistério — do que diante da contemplação duma pequena pedra parada numa estrada, que, porque nenhuma ideia provoca além da de que existe, outra ideia não pode provocar, se continuarmos pensando, do que, imediatamente a seguir, a do seu mistério de existir.

Benditos sejam os instantes, e os milímetros, e as sombras das pequenas coisas, ainda mais humildes do que elas! Os instantes (...) Os milímetros — que impressão de assombro e ousadia que a sua existência lado a lado e muito aproximada numa fita métrica me causa. Às vezes sofro e gozo com estas coisas. Tenho um orgulho tosco nisso.

Sou uma placa fotográfica prolixamente impressionável. Todos os detalhes se me gravam desproporcionadamente [a] haver um todo. Só me ocupa de mim. O mundo exterior é-me sempre evidentemente sensação. Nunca me esqueço de que sinto.

s.d.

fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982






28 março 2020

gonçalo m. tavares / guerra, inferno



Uma certa indumentária clássica: os sapatos mantêm-se
Indispensáveis mesmo depois da guerra.
Uma progressiva intimidade com o inferno não
Modifica conceitos estéticos e necessidades orgânicas:
Quais os índices do desejo em dias de bombardeamento?
Há números importantes para perceber a razão por que certas
Palavras se introduziram em todas as línguas,
Do Oriente ao Ocidente. Palavras más.




gonçalo m. tavares
1 poesia
relógio d´água
2004






27 março 2020

joão habitualmente / a minha primeira bicicleta



Foi nela que visitei o sol

E a praia. E o sal
levou-me também até às primeiras raparigas


A minha bicicleta
era o sol – e a própria viagem astral




joão habitualmente
um dia tudo isto será meu
(uma antologia)
porto editora
2019






26 março 2020

filipe marinheiro / escuridões



sozinho, amplio desde início o medo dos erros e equívocos. desato
a alastrar os medos para outras moradas. no entanto, tento permear essas
vertigens, os amores e as nobres sensações espalhando-as nas folhas de
papel brancas como a tinta que vai escrever a um poema e cura a doença
e a vegetação dos textos.
deixo de ter medo preso ao corpo: vou-me curando.



filipe marinheiro
escuridões
âncora
2018









25 março 2020

rui costa / faca de incêndio



8
O diabo tem a mesma cara que tu

Era branco cor do leite quando temos
medo. Medo: quatro agulhas nos olhos
à entrada da árvore, os tecidos regenerando
o ar da praia e à luz fosca que segue a perda
da memória. Eles escondiam-na nas pedras,
até na água, homem e mulher – os peixes agitados
pelo movimento da duna, cidade – altíssima!
trabalhavam na cozinha, construindo cedo –
recuperando a tristeza, segando os legumes.
tacteando – à procura do olhar que retomava
o ponto de entrada, as mãos distribuídas pelo pão.
vamos ver as plantas que pesam ainda sobre a mesa,
as facas, pedaços cortados pela flor quando a terra
abriu, quem falou de alma? não era alma, usa
o meu nome. Este sou eu. Esta sou eu, Eu sei,
Eu sei. Mas a alavanca que os recuperou da queda
dispunha os mesmos dedos pela duna.
Quiseram deitar-se nos lábios das urtigas –
Permanecer.



rui costa
«se uma estrela me falha, agarro numas nuvens»
mike tyson para principiantes
antologia poética
assírio & alvim
2017





24 março 2020

antónio josé forte / grande écran


desenho de Aldina


No grande écran
a festa do homem lobo do homem
e a sua mulher de bicicleta
até que um século de furor
abra a cratera donde irrompe o rosto do poeta
as suas mãos borboletas gigantes
os seus pés peixes voadores
a sua boca asa de fogo branco
e outro século
erga a pirâmide de palavras
que se derramem docemente
de anel em anel
até ao último século




antónio josé forte
caligrafia ardente
hiena
1987





23 março 2020

ernesto sampaio / janela



Na janela levada pelo vento
o castelo de cartas
entre maciços de coral

Considerando o abismo
de séculos e gestos
tudo o que importa
passa-se na outra vertente
mais bela que a cor
desta luva esquecida no mar
onde o tempo
como um crepúsculo
se dispersa na noite
com todos os segundos a arder



ernesto sampaio
feriados nacionais
fenda
1999