15 fevereiro 2020

edmundo de bettencourt / noite vazia


Crescimento do silêncio a devorar as nuvens.
Voo incansável e monótono das aves brancas do cérebro.
Florida e ondulada suspensão da mágoa.
As ferocidades são ternuras desmaiando na estepe adivinhada.
O amor abre goelas bocejantes nos côncavos da ausência do espaço.
E a morte espreitando a lentidão
irradia baçamente a sua despedida.

Noite vazia.

As aves brancas do cérebro
inutilmente abatem as suas asas!


edmundo bettencourt
poemas surdos 1934-1940
poemas de edmundo de bettencourt
assírio & alvim
1999






14 fevereiro 2020

saint-john perse / amargos



[…]

Tu aí estás, meu amor, e só tenho lugar em ti. Elevarei para ti a fonte do meu ser, e te abrirei a minha noite de mulher, mais clara que a tua noite de homem; e a grandeza em mim de amar te ensinará talvez a graça de ser amado. Licença então aos jogos do corpo! Oferenda, oferenda, a favor de ser! Abre-te a noite uma mulher: o seu corpo, as suas angras, a sua praia; e a noite anterior onde jaz toda a memória. Dela faça o amor o seu refúgio!

[…]


saint-john perse
antologia poética
trad. carlos cunha e alfredo margarido
guimarães editores
1961




13 fevereiro 2020

vasco gato / esta música, ouves?


Esta música, ouves?

sabe que
quando nos separamos

– tu seguras uma ponta,
Eu seguro outra –

as coisas do mundo
tocam o cordel
da nossa distância.



vasco gato
um passo sobre a terra
língua morta
2018







12 fevereiro 2020

rui coias / a ordem do mundo


7.
Em qualquer momento, no começo e no fim,
mesmo na medida de toda a vida – falhos de toda a pena,
permanecemos sem amanhã nem princípio,
esbatidos na idade e na distância, saqueados na sua mentira,
apenas acumulando areia para o fundo de um recreio
a simular um amuleto contra o regresso impossível.
Não temos trégua – não podemos voltar – e afastamo-nos – sem
ruído – lá para onde de longe chamamos, no ar rarefeito
– figuras resumidas a uma branca poeira informe,
em quantas inumeráveis semelhanças com a morte.
Pressentida ruína, a do íntimo declínio disto tudo,
demais cientes na incerteza como o sinal exposto da memória,
resina que nela se abate à frente dos olhos, que
esmaga cada braçada do tempo ao seu embuste
e nos recusa a menor separação do abandono –
que por nada existimos – e só acenamos – acenamos –
senão para crer no que julgamos não ter acontecido,
senão a entender a justa aceitação da nossa vida.




rui coias
a ordem do mundo
quasi edições
2005







11 fevereiro 2020

sarah kirsch / orvalho negro


  
O acaso conduziu-me a esta planície
Onde durmo sobre juncos como sobre seda.
Na terra pantanosa vive-se sem calendário
O inverno faz-se sentir mas não se sabe o seu ano.




sarah kirsch
trad. maria teresa dias furtado
hífen 7 abril
cadernos semestrais de poesia
dias inúteis
1992









10 fevereiro 2020

pat boran / a bondade de um homem



A bondade de um homem vê-se
pelo que ele diz a um cão
quando tem de saltear da cama
a meio de uma noite de inverno
porque um maldito cão tem estado a ladrar

e vai, abre a porta
de camisola interior e boxers
e ali à frente no baldio cheio de buracos
a que chamam campo de jogos
dá com o rafeiro de pata

no ar na expectativa
e um ar que diz: Graças a Deus
por momentos pensei
que só eu estava acordado
nesta terra de merda.



pat boran
o sussurro da corda
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2018






09 fevereiro 2020

bernardo soares / paisagem da chuva



Em cada pingo de chuva a minha vida falhada chora na natureza. Há qualquer coisa do meu desassossego no gota a gota, na bátega a bátega com que a tristeza do dia se destorna inutilmente por sobre a terra.

Chove tanto, tanto. A minha alma é húmida de ouvi-lo. Tanto... A minha carne é líquida e aquosa em torno à minha sensação dela.

Um frio desassossegado põe mãos gélidas em torno ao meu pobre coração. As horas cinzentas e (...) alongam-se, emplaniciam-se no tempo; os momentos arrastam-se.

Como chove!

As biqueiras golfam torrentes mínimas de águas sempre súbitas. Desce pelo meu saber que há canos, um barulho perturbador de descida de água. Bate contra a vidraça, indolente, gemedoramente a chuva; (...)

Uma mão fria aperta-me a garganta e não me deixa respirar a vida. Tudo morre em mim, mesmo o saber que posso sonhar! De nenhum modo físico estou bem. Todas as maciezas em que me reclino têm arestas para a minha alma. Todos os olhares para onde olho estão tão escuros de lhes bater esta luz empobrecida do dia para se morrer sem dor.

s.d.


fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
ática
1982






08 fevereiro 2020

jorge melícias / os dedos batem o nome



Os dedos batem no nome e estacam.
Não há profundidade depois disso.
Queria emergir magnífico
do meu fôlego,
cantar sob os foles da língua.
Digo que todo o nome é dançado,
que freme como tocado de dentro.


jorge melícias
a luz nos pulmões
quasi
2000











07 fevereiro 2020

joão miguel fernandes jorge / falava como se um sonho pudesse



Falava como se um sonho pudesse

um sonho não teria tantas árvores
um sonho não as teria tão
suspensas e tão tomadas

que dizia que diziam?
que queriam eles de mim?



joão miguel fernandes jorge
à beira do mar de junho
relógio d´água
2019








06 fevereiro 2020

alain bosquet / três poemas



1
Em cada ave dormia uma montanha.
Em cada mão o réptil sagrado
Vinha comer o sal. Nas ruas do porto
Um bispo velho interrogava a árvore.
O vinho andava nu, e havia perto do rio
quem chorasse as savanas perdidas
depois do seu encontro com a neve.
Como o fogo lhe faltasse, o feiticeiro
casou com a cidade enquanto ardia.


alain bosquet
trad. de eugénio de andrade
hífen 5 março
cadernos semestrais de poesia
tradução
1990






05 fevereiro 2020

antónio carlos simão / fiz más decisões




Fiz más decisões,
deixei que o mel doce da minha fé
secasse,
fossilizadas as orações extintas,
imóveis e ainda assim presentes.
Deixei todos os frascos por abrir
a ganhar pó no chão, alguns
ainda embrulhados.
Adiei a curiosidade,
assustei-me com a força para os abrir,
gastei demasiado tempo a sonhar.
            Gasto demasiado tempo a sonhar.
Juro que nunca quis envelhecer, eu juro.
Mas fiz más decisões
e deixei que o mel doce da minha fé secasse.
Fui ficando progressivamente cético e horrível
mente crente nos espelhos corporativos
e demasiado bonito à luz do frasco que inventei, já aberto
e de onde nasci.
Naquele espaço onde o mel nunca seca
e não existem decisões, sequer.
Juro que me arrependo de ter tentado envelhecer
e fiz más decisões
e deixei que o mel
doce da minha fé
secasse.

  

antónio carlos simão
nervo/7
colectivo de poesia
janeiro/março 2020








04 fevereiro 2020

jacques brel / o moribundo



Adeus Emile sempre te quis bem
Adeus Emile sempre te quis bem sabes
Cantámos os mesmos vinhos
Cantámos as mesmas mulheres
Cantámos os mesmos desgostos
Adeus Emile vou morrer
Não é fácil morrer na Primavera sabes
Mas lá vou para o meu canteiro com a alma em paz
Porque já que és bom como o pão branco
Sei que cuidarás da minha mulher
E que todos riam
E que todos dancem
E que todos se divirtam como loucos
E que todos riam
E que todos dancem
No dia em que me meterem na cova

Adeus Cura sempre te quis bem
Adeus Cura sempre te quis bem sabes
Não líamos pela mesma cartilha
Não seguíamos as mesmas vias
Mas demandávamos o mesmo porto
Adeus Cura vou morrer
Não é fácil morrer na Primavera sabes
Mas lá vou para o meu canteiro com a alma em paz
Porque já que tu eras seu confidente
Sei que cuidarás da minha mulher
E que todos riam
E que todos dancem
E que todos se divirtam como loucos
E que todos riam
E que todos dancem
No dia em que me meterem na cova

Adeus Antoine sempre te quis bem
Adeus Antoine sempre te quis bem sabes
Estou lixado por morrer hoje
Ao passo que tu estás bem vivo
E até mais rijo que o tédio
Adeus Antoine vou morrer
Não é fácil morrer na Primavera sabes
Mas lá vou para o meu canteiro com a alma em paz
Porque já que eras seu amante
Sei que cuidarás da minha mulher
E que todos riam
E que todos dancem
E que todos se divirtam como loucos
E que todos riam
E que todos dancem
No dia em que me meterem na cova

Adeus mulher sempre te quis bem
Adeus mulher sempre te quis bem sabes
Vou tomar o comboio de ver a Deus
Vou tomar o comboio que sai antes do teu
Mas cada um toma o comboio que pode
Adeus mulher vou morrer
Não é fácil morrer na Primavera sabes
Mas lá vou para o meu canteiro de olhos fechados mulher
Porque já que por ti amiúde os fechei
Sei que cuidarás da minha alma
E que todos riam
E que todos dancem
E que todos se divirtam como loucos
E que todos riam
E que todos dancem
No dia em que me meterem na cova



jacques brel
antologia poética
trad. eduardo maia
assírio & alvim
1997






03 fevereiro 2020

adonis / seis notas do lado do vento




5

                Escrevo em árabe. Nesta língua, a presença identifica-se com o invisível. O mundo está aí ausente, embora visível. O homem, segundo esta visão, é um estado continuado de ausência. A verdade reside no seio da língua enquanto desvendar da essência do mundo através das palavras de que Deus fez uso. Neste sentido, o próprio ser é aí uma língua. Os vivos estão adormecidos, hão-de despertar depois da morte. Escrever poesia nessa língua, e segundo o seu génio, é desvelar o invisível e o abismo da ausência que nos separa dele. Escrever poesia é prender-se a dizer uma «coisa», e essa «coisa» em árabe é o próprio abismo e o invisível. Se a poesia tem algum poder de fundar, funda aqui a presença do invisível. A escrita, em árabe, ensina apenas que a pátria não é um lugar, que não se situa em parte nenhuma. Ensina que é ela própria a pátria. Ensinou-me como poderia dizer: o meu corpo é o meu país.


adonis
arco-íris do instante
antologia poética
tradução de nuno júdice
dom quixote
2016