Em cada pingo de chuva a minha vida falhada chora
na natureza. Há qualquer coisa do meu desassossego no gota a gota, na bátega a
bátega com que a tristeza do dia se destorna inutilmente por sobre a terra.
Chove tanto, tanto. A minha alma é húmida de ouvi-lo.
Tanto... A minha carne é líquida e aquosa em torno à minha sensação dela.
Um frio desassossegado põe mãos gélidas em torno ao
meu pobre coração. As horas cinzentas e (...) alongam-se, emplaniciam-se no
tempo; os momentos arrastam-se.
Como chove!
As biqueiras golfam torrentes mínimas de águas
sempre súbitas. Desce pelo meu saber que há canos, um barulho perturbador de
descida de água. Bate contra a vidraça, indolente, gemedoramente a chuva; (...)
Uma mão fria aperta-me a garganta e não me deixa
respirar a vida. Tudo morre em mim, mesmo o saber que posso sonhar! De nenhum
modo físico estou bem. Todas as maciezas em que me reclino têm arestas para a
minha alma. Todos os olhares para onde olho estão tão escuros de lhes bater
esta luz empobrecida do dia para se morrer sem dor.
s.d.
fernando
pessoa
livro do
desassossego por bernardo soares. vol.I
ática
1982