24 dezembro 2019

eeva-liisa manner / nada



«No se puede vivir sin amar.»
«Si, se puede», respondi
vestindo-me de negro
para o último baile de máscaras.

A minha boca estava cheia de poeira
como se o choro me secasse a garganta
– no entanto não choro desde há um século.

Não desejo o vosso céu, compañeros,
as luzes infames, os falsos amigos,
as ruas dos beijos,
as mentiras dos espelhos voadores.

Quero quebrar o último selo,
uma lua que não ilumina,
uma noite onde nada reluz.



eeva-liisa manner
trad. egito gonçalves
hífen 5 março
cadernos semestrais de poesia
tradução
1990





23 dezembro 2019

wislawa szymborska / amor à primeira vista



Ambos estão convencidos
que os uniu uma paixão súbita.
É bela esta certeza,
mas a incerteza é mais bela ainda.

Julgam que por não se terem encontrado antes,
nada entre eles nunca ainda se passara.
E que diriam as ruas, as escadas, os corredores
onde se podem há muito ter cruzado?

Gostaria de lhes perguntar
se não se lembram –
talvez nas portas giratórias,
um dia, face a face?
algum «desculpe» num grande aperto de gente?
uma voz de que «é engano» ao telefone?
– mas sei o que respondem.
Não, não se lembram.

Muito os admiraria
saber que desde há muito
se divertia com eles o acaso.

Ainda não completamente preparado
para se transformar em destino para eles,
aproximou-os e afastou-os,
barrou-lhes o caminho
e, abafando as gargalhadas,
lá seguiu saltando ao lado deles.

Houve marcas, sinais,
que importa se ilegíveis.

Haverá talvez três anos
ou terça-feira passada,
certa folhinha esvoaçante
de um braço a outro braço.
Algo se perdeu e encontrou?
Quem sabe se já uma bola
nos silvados da infância?

Punhos de porta e campainhas
onde a seu tempo o toque
de uma mão tocou o outro toque.
As malas lado a lado no depósito.
Talvez acaso até um mesmo sonho
que logo o acordar desvaneceu.

Porque cada início
é só continuação,
e o livro das ocorrências
está sempre aberto ao meio.




wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998






22 dezembro 2019

fernando pinto do amaral / sete degraus para a escada de jacob



1.

Saber recomeçar, fugir de novo
outra vez indefeso, vagueando
pelos mesmos lugares, como se neles
houvesse mais que o mundo, uma alegria
imediata, ardendo, ao abandono,
entre casas e ruas vazias. Para quê
voltar a tudo isso? Em cada árvore
ondeia o vento, e o barco dos meus passos
navega sem razão por outros mares.
Há muitos sempres vivo, ainda preso
ao primeiro sabor: o céu de uns olhos
brilhou e vai chamando. Em pouco tempo
Se movem os destinos e eu quis
beber naquela imagem um só fogo,
uma nova ansiedade que deixasse
retida no meu peito a passageira
graça de mais sentidos no deserto
– só assim, afinal, acordaria.
Lava de sonhos, eis que sobe o amor
ou o que vai restar do seu enigma
tão dentro dessa chama-já-promessa:
horas de névoa em doces sobressaltos
rompendo o vão silêncio, desatando
indecifradas músicas? Não sei,
nenhum rosto é igual ao teu rosto, excessivo
gesto da luz, pensando em mim, algures
entre o que vem da noite e o que me abraça
na cega voz da vida, em ti, à espera.



fernando pinto do amaral
poesia reunida 1990-2000
dom quixote
2000




21 dezembro 2019

mário-henrique leiria / claridade dada pelo tempo



XI

escuta amor

talvez um dia
em que de mim já nada mais exista
te lembres de dois braços
que te abraçaram convulsivamente
nessa altura
deixa que os lábios te sangrem
deixa que o sangue
te corra pelo peito

e as mãos
essas
abandona-as…


                                   dezembro- 1950



mário-henrique leiria
obras completas
poesia
e-primatur
2018





20 dezembro 2019

e e cummings / avança um pouco



XLVIII

avança um pouco – porquê o medo –
aqui está a vespertina estrela (tens um desejo?)
toca-me
antes de perecermos
(crê que nada do que foi
inventado pode estragar isto ou este instante)
beija-me um pouco:
o ar
escurece e está vivo –
oh vive comigo na rareza de
estas cores;
que só ligeiramente
sempre estão fora de alcance da morte

e em inglês




e. e. cummings
trad. ana hatherly
hífen 5 março
cadernos semestrais de poesia
tradução
1990






19 dezembro 2019

herberto helder / há dias...



Há dias em que basta olhar de frente as gárgulas
para vê-las golfar sangue. É quando
a pedra está a prumo, quando a estaca
solar se crava atrás das casas e amadurece
como uma árvore.
Mas também ouvi a água bater directa
nas trevas. Por um abraço do sangue eu estava
condenado
ao extravio mortal. Era um dom que me fundia
à substância primária
do terror.
E à riqueza e energia. E à tremenda
doçura humana. Vejo algerozes escoando a massa
das cúpulas, a forma, supremas rosas de pedra
rotativa.




herberto helder
flash
empira
roma
1987








18 dezembro 2019

leopoldo maría panero / leitura




Eu não falo do sol, mas da lua
que ilumina eternamente este poema
onde um bando de crianças corre perseguido pelos lobos
e o verso entoa um hino ao pus.
Oh, amor impuro! Amor das sílabas e das letras
que destroem o mundo, que o livram
de ser verdadeiro, de estar aí para nada,
como um regato
que não reflecte a minha imagem,
espelho do vampiro
daquele que, de dentro da página
vai chupar o teu sangue, leitor
e convertê-lo em lágrima e em nada:
e fazer-te comungar com o aço.



leopoldo maría panero
a canção do croupier do mississípi e outros poemas
trad. jorge melícias
antígona
2019






17 dezembro 2019

jacques roubaud / o sentido do passado




O sentido do passado nasce
                                    de objectos-já.

Em todos os momentos evidentes
                                            procurei-te

E também em ténues
                          interregnos

Procurei quem?
                 onde
                 estás?

quem?

quem, deixou de fazer sentido

nem o quê    (sem nome, em nenhuma língua)

Eu voltaria, dando alguns passos atrás, ficaria
                                    num lugar
                                    diferente, num sentido precário.

Como se o som, ao atravessar a água,
                                    baixasse uma quarta.



jacques roubaud
alguma coisa negro
trad. josé mário silva
tinta-da-china
2016





16 dezembro 2019

alain morin / 5 de julho…




     Estou a lavar a louça. Arranco um último grito aos pratos afogando-os na espuma. As facas serrilhadas que vou buscar às profundezas da tina todas sujas de queijo ou de manteiga, hei-de esfregá-las até não restarem os mais ínfimos vestígios, para que subsista apenas o futuro da mesa posta, onde elas e os garfos estarão, como uma mecânica de luto, de cada um dos lados do disco gelado onde assenta o miserável coração do mundo. São elas o presente do metal – bem como eventualmente o seu futuro – e a sua dinâmica no estreito espaço onde serão utilizadas determinará a abstracção da refeição.



alain morin
trad. luís miguel nava
hífen 5 março
cadernos semestrais de poesia
tradução
1990





15 dezembro 2019

isabel meyreles / o retrato do marinheiro



                        I

Os olhos são cinzentos,
palhetados de negro,
o ciúme os pinta
de um verde azul boreal
o nariz é curto
as maçãs eslavas
os lábios cheios.
Nos dias em que mais seduz
ri muito e forma
três rugas no canto da boca.



isabel meyreles
poesia
o rosto deserto 1966
tradução de natália correia
quasi
2004





14 dezembro 2019

valter hugo mãe / a terra pesa os mortos avalia-os



6
atiro a cabeça ao
chão como flecha entre o
arco dos braços.
quisera tragar o mundo, passar
pela boca a rotação da terra, como
uma mãe que nascesse todos
os dias


valter hugo mãe
estou escondido na cor amarga do fim da tarde
campo das letras
2000





13 dezembro 2019

charles bukowski / o milagre



Trabalhar com uma forma de arte
não significa
mandriar como uma ténia
de barriga cheia,
nem justifica grandeza
ou ganância, nem seriedade
a toda a hora, creio antes
que é um apelo aos melhores homens
nos seus melhores momentos,
e quando eles morrem
e outra coisa não morre,
assistimos ao milagre da imortalidade:
homens que chegaram como homens
partiram como deuses –
deuses que sabemos que aqui estiveram,
deuses que agora nos permitem continuar
quando tudo o mais nos diz para parar.



charles bukowsky
os cães ladram facas
trad. rosalina marshall
alfaguara
2018





12 dezembro 2019

marianne moore / o retiro do mágico




de mediana altura
(que eu vi)
fosco mas lá dentro luz
tal pedra da lua
enquanto fulgia um halo
de frecha de um estore
e um brilho azul do lampião
junto à porta de entrada.
Não dava razão de queixa,
nada mais para obter,
consumadamente chão.


Um maciço de árvores negras por trás
quase tocando as caleiras
com a nitidez de Magritte,
era sobretudo discreto.




marianne moore
o pangolim e outros poemas
trad. margarida vale de gato
relógio d´água
2018