11 dezembro 2019

roberto juarroz / às vezes parece




Às vezes parece
que estamos no centro da festa.
No entanto
no centro da festa não há ninguém.
No centro da festa está o vazio.


Mas no centro do vazio há outra festa.



roberto juarroz
trad. arnaldo saraiva
hífen 7 abril
cadernos semestrais de poesia
dias inúteis
1992






10 dezembro 2019

joão almeida / só



Encontrei Georges, meio profeta
Meio cavalo, estendido no chão

Olhos inofensivos de longa vigília
Cheirava a mofo e a rim

Levantou a cabeça para me ver mijar

Lembrava-lhe a infância
As histórias do pai
Mulheres que mijavam de pé
Em aldeias extintas

Mais droga, porno e poesia
Fomos conversando.


joão almeida
canto skin
língua morta
2019





09 dezembro 2019

joão do nascimento / são poucas as coisas que são-tudo




são poucas as coisas que são-tudo. uma cadeira em equilíbrio é-definitivamente-tudo. a rua onde mora. o lembrar. as-telhas de ver porque apenas reflexo, e o silêncio da cor, que não-mais do que uma ausência muito constante de livros-à conversa com os pássaros. quando a conversa dos pássaros é tudo é-mais do que tudo. e o mar é-sempre
          porque saber mentir é semelhante a escrever nas costas-dos postais. é semelhante a demorar muito nos sítios-de passagem. é semelhante a acreditar nas árvores. no tempo de que são feitas as árvores. é quase igual a acreditar. e depois. e depois, são poucas as coisas que são-tudo. como: uma cadeira em equilíbrio é-definitivamente-tudo. e se alguma semelhança existe entre a gaveta e as coisas que guarda. a semelhança é possivelmente mais, e o mar é-sempre

15/03/01



joão do nascimento
apeadeiro
revista de atitudes literárias
n.º 2 primavera de 2002
quasi
2002





08 dezembro 2019

bernardo soares / a literatura, que é a arte casada com o pensamento,



A literatura, que é a arte casada com o pensamento, e a realização sem a mácula da realidade, parece-me ser o fim para que deveria tender todo o esforço humano, se fosse verdadeiramente humano, e não uma superfluidade do animal. Creio que dizer uma coisa é conservar-lhe a virtude e tirar-lhe o terror. Os campos são mais verdes no dizer-se do que no seu verdor. As flores, se forem descritas com frases que as definam no ar da imaginação, terão cores de uma permanência que a vida celular não permite.

Mover-se é viver, dizer-se é sobreviver. Não há nada de real na vida que o não seja porque se descreveu bem. Os críticos da casa pequena soem apontar que tal poema, longamente ritmado, não quer, afinal, dizer senão que o dia está bom. Mas dizer que o dia está bom é difícil, e o dia bom, ele mesmo, passa. Temos pois que conservar o dia bom em uma memória florida e prolixa, e assim constelar de novas flores ou de novos astros os campos ou os céus da exterioridade vazia e passageira.

Tudo é o que somos, e tudo será, para os que nos seguirem na diversidade do tempo, conforme nós intensamente o houvermos imaginado, isto é, o houvermos, com a imaginação metida no corpo, verdadeiramente sido. Não creio que a história seja mais, em seu grande panorama desbotado, que um decurso de interpretações, um consenso confuso de testemunhos distraídos. O romancista é todos nós, e narramos quando vemos, porque ver é complexo como tudo.

Tenho neste momento tantos pensamentos fundamentais, tantas coisas verdadeiramente metafísicas que dizer, que me canso de repente, e decido não escrever mais, não pensar mais, mas deixar que a febre de dizer me dê sono, e eu faça festas com os olhos fechados, como a um gato, a tudo quanto poderia ter dito.

s.d.





fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982







07 dezembro 2019

cesare pavese / oficio de viver



3 de Fevereiro de 1941

Que existe afinal, na minha ideia fixa de que tudo consiste no secreto e amoroso «em si», que cada criatura oferece a quem a sabe penetrar? Nada, porque esta amorosa comunhão nunca a pude realizar.

No fundo, o segredo da vida é fazer como se tivéssemos o que mais dolorosamente nos falta. O preceito cristão está aqui inteiro. Convencermo-nos de que tudo foi criado para o bem, que a fraternidade humana existe – e se não é verdade, que importa? O conforto desta visão consiste em acreditar-se nela, não no facto de que seja real. Porque se acredito, se tu, se ele, se eles acreditam, tornar-se-á verdadeira.





cesare pavese
o ofício de viver - diário (1935-1950)
trad. alfredo amorim
relógio d´água
2004





06 dezembro 2019

franz kafka / diários



1911, 12 de Janeiro

Não escrevi muito sobre mim nestes dias, em parte por preguiça (durmo tão profundamente durante o dia, tenho mais peso enquanto durmo), em parte também por medo de trair o conhecimento que tenho de mim. Este medo justifica-se, porque uma pessoa só devia fixar na escrita a sua autopercepção quando o puder fazer com a maior integridade, com todas as consequências secundárias e também com toda a verdade. Porque se isto não acontecer – e eu de qualquer maneira não sou capaz de o fazer – o que está escrito irá, de acordo com a sua própria finalidade e com o poder superior do que fi fixado, tomar o lugar daquilo que se sentia apenas vagamente, de tal modo que o sentimento verdadeiro desaparecerá enquanto o não valor do que foi anotado será reconhecido tarde de mais.




franz kafka
diários (1910-1923)
trad. maria adélia silva melo
difel
1986






05 dezembro 2019

arthur rimbaud / digo que é preciso ser-se vidente



carta para Paul Demeny, Charleville, 15 de Maio de 1871
(excerto)


[…]

          Digo que é preciso ser-se vidente, tornar-se vidente.
          O poeta torna-se vidente através de um longo, imenso e ponderado desregramento de todos os sentidos. Todas as formas de amor, de sofrimento, de loucura; ele procura-se a si mesmo, ele esgota em si todos os venenos para ficar apenas com as quintessências. Inefável tortura para a qual ele precisa de toda a fé, de toda a força sobre-humana, através da qual ele se torna entre todos o grande demente, o grande criminoso, o grande maldito – e o Sábio supremo! – Porque ele alcançou o desconhecido! Porque ele cultivou a sua alma, já de si rica, mais do que ninguém! Ele alcança o desconhecido, e quando, aterrorizado, acabar por perder a inteligência das suas visões, ele tê-las-á visto! Que ele rebente no seu salto pelas coisas inauditas e infindáveis: outros horríveis trabalhadores virão; e começarão pelos horizontes nos quais o outro vergou!

[…]


jean-arthur rimbaud
cartas e documentos
obra completa
trad. miguel serras pereira e joão moita
relógio d´água
2018






04 dezembro 2019

marcel proust / um homem que dorme…




Um homem que dorme tem em círculo à sua volta o fio das horas, a ordem dos anos e dos mundos. Consulta-os instintivamente ao acordar e neles lê num segundo o ponto da terra que ocupa, o tempo que decorreu até ao seu despertar; mas as respectivas linhas podem misturar-se, quebrar-se. Basta que, já de manhã, depois de uma insónia qualquer, o sono o invada enquanto lê, numa posição muito diferente daquela em que habitualmente dorme, basta que tenha o braço levantado para deter e fazer recuar o sol, e ao primeiro minuto depois de acordar já não saberá que horas são, julgará que mal acaba de se deitar.



marcel proust
em busca do tempo perdido
volume I do lado de swann
trad. pedro tamen
relógio d´água
2003






03 dezembro 2019

albert camus / também é importante o tema da comédia



Maio de 1935

Também é importante o tema da comédia. O que nos protege das maiores dores, é o sentimento de estarmos abandonados e sós, mas não tão sós no entanto para que os «outros» não nos «considerem» no meio da nossa dor. É nesse sentido que os nossos minutos de felicidade são por vezes aqueles em que o sentimento de abandono nos sufoca e nos arrasta para uma tristeza sem fim. É neste sentido também que muitas vezes a felicidade não é mais que o sentimento compadecido da nossa infelicidade.

Admirável para os pobres – Deus colocou a complacência ao lado do desespero como o remédio ao lado da enfermidade.



albert camus
primeiros cadernos
trad. não disponível
livros do brasil
1973





02 dezembro 2019

s. kierkegaard / que irá acontecer?



Que irá acontecer? Que trará o futuro? Não sei, não pressinto nada. Quando uma aranha, de um ponto firme, se precipita nas suas consequências, ela vê continuamente um espaço vazio à sua frente em que, por mais que se debata, não consegue encontrar ponto de apoio. Assim sucede comigo – à minha frente sempre um espaço vazio; o que me impele para diante é uma consequência que se encontra atrás de mim. Esta vida está virada ao contrário e é horrível, não se aguenta.


s. kierkegaard
diapsalmata
trad. de bárbara silva, m. jorge de carvalho,
nuno ferro e sara carvalhais
assírio & alvim
2011









01 dezembro 2019

vasco graça moura / o mês de dezembro



II
mestria do silêncio dúbias rimas
a música mordida ou as catástrofes
(a arte é hipocrisia da memória)
que são as obras da maturidade

mas as rasuras deixam cicatrizes
e é doce o silvo da respiração
quando o presente aos poucos se degrada
como estas linhas lidas num espelho

podem usar-se as mais escuras sílabas
(alguns rumores que a noite devorasse)
porque é no inverno que as coisas se repetem
e a coerência do amor foi recordada



vasco graça moura
o mês de dezembro
poesia 1963/1995
quetzal editores
2007





30 novembro 2019

fernando pinto do amaral / ondas



Outra vez por aqui. Vou sentar-me,
já não espero ninguém, é muito tarde,
sempre foi muito tarde e para mim
é escassa a eternidade. Cada sonho
é o último sonho e o céu
deixou de obedecer aos próprios deuses.

Outra vez o deserto. De que música
cerco ainda os teus olhos? Que mentiras
hei-de ensinar ao corpo e à sua
verdade?

Depois de todas as febres do amor
já nem o amor da própria febre. Apenas
um gesto sem memória e o rumor
das ondas.



fernando pinto do amaral
acédia 1990
dominei
poesia reunida 1990-2000
dom quixote
2000





29 novembro 2019

herberto helder / lugar



I
Uma noite encontrei uma pedra
oh pedra pedra!
verde ou azul, de lado, como se estivesse morta.
Encontrei a noite como uma pedra inclinada
sobre o meu corpo
puro, profundo como um sino.
Vi que havia em mim um pensamento
inocente, uma pedra
quando se entra na noite pelo lado onde
há menos gente.
Ou era um sino de um futuro
maior silêncio, tão
grande silêncio para se habitar só em gestos.

Aí eu poderia erguer-me na ponta
dos pés e ficar para sempre, como uma chama
que a noite viesse alimentar com sua
própria matéria que se queima. Noite —
— lenha para nossa leveza humana. Encontrei
uma coisa caída, talvez madura, um pouco
metida pela terra dentro.
Alguma coisa dessas coisas da imobilidade, objecto
executado pelo sono,
onde eu passava os dedos apavorados e doces.

Som ou degrau que eu beijaria,
elevando-se da terra, não como uma árvore
ou uma mulher
desenvolvida em sua atmosfera de doçura
e dolorosa exaltação. Alguma coisa
subida de raízes mais milagrosas, que se não
exprimia com a brevidade
subtil de folhas, ou a quente agudeza de dedos espalhados.
Algo não levantado inteiramente da obscuridade
de uma vida sepulta,
e não jacente por sobre o qual milhares de estrelas
rolassem as asas de gelo.
Uma coisa numa existência demorada entre
o êxtase e a força sombria
das estações.

                        Encontrei uma pedra pedra
que não era uma colina com o mês de março em volta.
Nem era a boca materna aberta
debaixo dos rios podres.
Uma coisa para se encostar a cabeça, oh não
para morrer. Para alguém subir
e de onde não era possível gritar. Uma pedra
sem folhas, um sino
sem pensamento. Encontrei algo que não andava
pelos montes nem seria atravessado
por uma flecha. E não sangrava.
Que não se ouvia se cantava. Talvez fosse fria
ou vivesse abrasada sobre a ilusão.

Era verde na noite quando se vem de longe,
ou azul, ou verde pelo milagre
que não existe. Ou então
era clara de certas flores que se dobram.
Ou então era alta, ou esmagada, ou degolada,
no meio de um silêncio global.
Encontrei em mim essa clareira desarrumada na seiva,
como se um poço distante ressoasse,
ou como
se os dias se fossem aproximando da minha idade
triunfante.
e eu me calasse e movesse o rosto aberto
pela luz para a abstracta violência
da solidão.

                   Encontrei
um animai adormecido, uma flor hipnotizada,
uma viola ferozmente taciturna.
Era amarela só se eu levantasse a cabeça, ou era
tão escura na infância grande.
Encontrei uma verde pedra cravada no mundo
das pessoas, à entrada da candura,
tão admirável pelo azul da terra dentro.
Uma coisa incompreendida no instante
de morrer para a frente.

Encontrei ondas e ondas contra mim, como se eu fosse
um homem morto entre palavras.
Campos de cevada inspirados no fogo que batiam
nas costas das minhas mãos,
aldeias inteiras cantando sua pureza
quase louca. Encontrei depois o lugar
onde deitar a cabeça e não ser mais ninguém
que se saiba. Uma pedra
pedra seca, uma vida entre muitos dons.
Com as raízes de quem divaga.
Uma pedra sem som como quem se move
sobre os alimentos.

Encontrei como quem arrasta para a noite
um símbolo pesado e ardente.
                                                       Ou a ideia
de uma morte mais leve que o coração sem nada
do amor.
Se me perguntam, digo: encontrei
a lua, o sol.
                    Somente o meu silêncio pensa.

— Se era uma pedra, um sino. Uma vida verdadeira.



herberto helder
poesia toda
lugar
assírio & alvim
1996