07 setembro 2019

daniel francoy / latitudes




Fala-me Conrad de um tempo,
ou melhor, de uma latitude
que ultrapassada impede
qualquer regresso –
como se o destino de um homem
fosse descer por uma luz vacilante
degrau após degrau.

Sujamo-nos, não há outro caminho
que não seja ter as mãos sujas.
Sujamo-nos e são as mãos sujas
o último elo a romper-se.
Por elas passa o ouro conseguido
a um custo indizível,
o perfume de amores enlouquecidos,
as flores que colhemos quando
muito jovens ou muito cansados.
O último elo a romper-se porque
da luz mais gasta permanece o pólen.




daniel francoy
identidade
editora urutau
2016







06 setembro 2019

federico garcia lorca / meia-lua




Pela água vai a lua.
Como o céu está tranquilo!
Vai ceifando lentamente
o tremor velho do rio,
enquanto um ramo jovem
a toma por espelhinho.



federico garcia lorca
poemas
trad. de eugénio de andrade
assírio & alvim
2013









05 setembro 2019

luís falcão / envelhecemos avaliando perdas



Envelhecemos avaliando perdas
corroídos pela solidão e pelo medo
tocamo-nos, retemo-nos
como azáleas doentes
cujas ossos
escuríssimos e inacessíveis
procuram uma aliança de fogo branco



luís falcão
bruma luminosíssima
artefacto
2016










04 setembro 2019

joão luís barreto guimarães / um quarto de hotel em madrid




Não se chega a pertencer nunca a
quarto de hotel. Não se lhe ganha afecto (não
é nosso por inteiro) se é
certo que amanhã outro dono estará
emoldurado
ao espelho. Não se chega a confiar nele
(não se lhe lega segredos) sequer a
palavra impudica expurgada
da pele
pela toalha de banho. Não chega a
ser nossa a cama (não se molda
a nosso jeito) melhor que
nem te despeças dessa alcova pela manhã
quando sabes como é lesta a
entregar-se ao próximo viandante
por dinheiro.




joão luís barreto guimarães
você está aqui (2013)
o tempo avança por sílabas
poemas escolhidos
quetzal
2019






03 setembro 2019

tomas tranströmer / passagem para peões



Vento gélido contra os olhos, raios solares dançam
no caleidoscópio das lágrimas quando atravesso
a rua, rua que me tem seguido tanto tempo,
e onde o verão gronelandês brilha nas suas poças d´água.

Ao meu redor rodopia toda a força da rua,
de que nada se recorda e nada quer.
No subsolo, bem no fundo, sob o trânsito,
espera aí há mil anos a floresta por nascer.

Ocorre-me que a rua olha para mim.
O seu olhar é tão suspeito que até o sol
parece uma meada cinzenta no escuro do céu.
Neste instante sou eu que brilho. A rua vê-me!




tomas tranströmer 
50 poemas
tradução de alexandre pastor
relógio d´água
2012






02 setembro 2019

jacques brel / a minha infância




A minha infância passou
Entre tédios e silêncios
Entre falsas mesuras
E batalhas que não houve
De Inverno no ventre
Daquela grande casa
Que tinha ancorado
A norte por entre os juncos
De Verão meio nu
Mas modesto por inteiro
Tornava-me índio
Embora já convicto
De que meus tios cevados
Me tinham roubado o Far West

A minha infância passou
As mulheres nas cozinhas
Onde eu sonhava com a China
Envelheciam em cozinhados
Os homens ao queijo
Envolviam-se em tabaco
Flamengos calados e ponderados
E não me conheciam
Eu que todas as noites
Ajoelhado por nada
Arpejava o meu desgosto
Aos pés da cama imensa
Queria apanhar um comboio
Que jamais apanhei

A minha infância passou
De criada em criada
Admirava-me já
Não serem elas plantas
Admiravam-me ainda
Essas rodas de família
Flanando de defunto em defunto
E que o luto cobre
Admirava-me sobretudo
Vir eu de tal rebanho
Que me ensinava a chorar
Que eu conhecia demais
O meu olhar era de pastor
Mas o coração de cordeiro

A minha infância estourou
Chegou a adolescência
E o muro do silêncio
Uma manhã ruiu
Foi a primeira flor
E a primeira namorada
A primeira gentil
E o primeiro medo
Eu até voei eu juro
Eu juro que até voei
O meu coração abria os braços
Era o fim da barbárie

E a guerra chegou

E eis-nos agora aqui



jacques brel
antologia poética
trad. eduardo maia
assírio & alvim
1997





01 setembro 2019

byron / neste dia completo o meu 36.º aniversário




É tempo deste coração permanecer insensível
porque já não pode comover o dos outros:
mas, se por ninguém eu posso ser amado,
ainda quero amar!

Os meus dias estão nas folhas já caídas;
as flores e os frutos do amor abandonaram-me;
o verme, o cancro, o profundo desgosto
a ninguém mais pertencem!

Como uma ilha vulcânica, sozinho
o fogo vem consumir-se no meu peito;
não há nenhum lume que aí se reacenda
– uma chama funerária!

A esperança, o temor e o ciúme,
tudo o que é excessivo no sofrimento,
e o poder do amor, não posso compartilhar,
só lhes sofro as cadeias.

Mas não é assim – e não é neste lugar –
que deviam estes pensamentos abalar-me, nem agora
quando a glória decora o túmulo do herói
ou lhe coroa a fronte.

A espada, a insígnia e o campo de batalha,
a glória e a Grécia, contemplo à minha volta!
O guerreiro espartano, erguido sobre o escudo,
Não era mais livre.

Desperta (que a Grécia, ela está acordada!)
Desperta, meu espírito! Pensa naquele
cujo sangue vital corre para o lago materno
e encontra o seu destino.

Subjuga os desejos que despertam ainda,
virilidade indigna! – para ti
deveriam ser indiferentes o sorriso ou o duro
olhar da Beleza.

Para que vives, se lamentas a tua juventude?
Aqui fica o lugar de uma morte honrosa.
Caminha para a luta, e deixa que se apague
o teu último alento!

Procura – sem o procurar, tê-lo-ias encontrado –
o túmulo de um soldado, aquilo que mereces;
olha por fim à volta e prefere esta terra,
aceita o teu descanso.



byron
poesia romântica inglesa
(byron, shelley, keats)
trad. fernando guimarães
editorial inova
1977






31 agosto 2019

luis alberto de cuenca / happy family




O pai é corcunda e elegante,
magnânimo, discreto, compreensivo.
Recebe no castelo os filósofos
que não suportam o ancien regime,
enquanto a esposa, vinte anos mais nova,
manda servir o chá, vestida apenas
com o colar de pérolas que lhe trouxe,
do seu périplo pela Austrália, Cook.
Têm um filho loiro, tão cientista
ele, está destinado no futuro
a caçar borboletas por hipnose,
ou a dar uma seca na sociedade
geográfica, ou a fazer-se íntimo
de Cuvier ou Champollion. Dá-se
francamente bem a família, vê-se
por aquele costume da senhora
de lambuzar de chocolate o filho
todas as tardes sendo sete em ponto
– a nova hora taurina –,  face ao cúmplice
e orgulhoso olhar do seu paizinho.



luis alberto de cuenca
a vida em chamas
uma antologia
trad. miguel filipe mochila
língua morta
2018






30 agosto 2019

per aage brandt / o homem é um hóspede efémero da terra




*
o homem é um hóspede efémero da terra,
pensava o poeta asteca, mas um hóspede
nem sempre é um homem aqui na terra;
na rua, num país estrangeiro, na cama de alguém,
acontecem coisas estranhas, um coração é uma
arma eficaz, e (citação) de qualquer modo morreremos,
abandonando-nos uns aos outros, abraçados, com a língua na
orelha
de um corpo que vibra de prazer ou se alonga num grito de
guernica,
depois do encontro com alguém que passou
e desapareceu ou tomou a decisão de ficar

*



per aage brandt
livro da noite
trad. maria joão reynaud
poetas em mateus
quetzal
2004






29 agosto 2019

charles bukowski / facto




poesia cautelosa
e pessoas
cautelosas
duram
apenas o suficiente
para
morrer
em segurança.



charles bukowsky
os cães ladram facas
trad. rosalina marshall
alfaguara
2018







28 agosto 2019

charles simic / a execução



Foi o nascer do sol mais cedo
E o mais tranquilo.
Os pássaros, por razões deles,
Ficaram calados nas árvores
Cujas folhas permaneceram
Quietas o tempo todo
Um número pequeno apenas
Nos ramos mais altos
Salpicados com sangue recente.



charles simic
o último soldado de napoleão
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2018







27 agosto 2019

saint-john perse / chuvas




VII

[…]

«Lavai, lavai a história dos povos nas altas mesas da memória: os grandes anais oficiais, as grandes crónicas do Clero e as publicações académicas. Lavai as bulas e as cartas, e os Diários do Terceiro Estado; as Convenções, os Pactos de aliança e os grandes actos federativos; lavai, lavai, ó Chuvas! todos os velinos e todos os pergaminhos, cor de muros de asilo e de leprosarias, cor de marfim fóssil e de velhos dentes de mula… Lavai, lavai, ó Chuvas! as altas mesas de memória.

[…]


saint-john perse
habitarei o meu nome
antologia
tradução de joão moita
assírio & alvim
2016







26 agosto 2019

eugéne guillevic / carnac (fragmentos)


1

MAR à beira do nada,
Que se mistura ao nada,

Para melhor saber o céu,
As praias, os rochedos,

Para melhor os receber.


guillevic
poesias de guillevic
tradução de david mourão-ferreira
editora ulisseia
1965