29 julho 2019

manuel de castro / paralelo w




Largos largos largos LARGOS HORIZONTES         
– não te recordarei. Há um país fatal,
existe uma zona de aventura, um segredo

O amor possui o tempo – Ignora
que já não há velas nem os capitães
são agora donos de seus barcos.
Tudo nos transporta participa
do nosso imparável movimento.

Ignora

que os ancoradouros são para os navios
mas os navios partem
e por vezes não regressam

Todos os meus amigos são rosas brancas
todo o meu amor é ave lenta

No entanto

prefiro-me veneziano rápido
oferecendo anéis aos mendigos
vestir-me de rubro e negro para ti
ao som dos clarins
fluir viagem de flores súplice de perigo

os navios partem
por vezes não regressam e todavia
eis O SUL – uma palavra, um gesto
um lugar, um anel
– rápido som de clarim
Viagem de Flores
Perigo

este é o tempo em que morrem os Príncipes
ao sol posto num final sereno
e se iniciam os ritos bárbaros
da Grande Velocidade
manchas no céu da noite
quebram e reúnem seus corpos
em cósmicos espelhos
enquanto um mágico aceno de fluor
descreve a partida das nossas frotas
na imensidão azul escura
cristalizando no oculto um sentido
para a vida e a morte
concretizando o movimento dos nossos músculos
– um brilho que cheira a limo e sal.

Sobre os cadáveres assim incorruptíveis
dos velhos príncipes desagregados no mar
passam os navios
e a geração angélica e terrível
talha o seu destino sobre-humano
onde a noite vais expulsar os astros
iniciar-se, e ter um nome diferente.



manuel de castro
paralelo w
1958






28 julho 2019

irene lisboa / fins de junho




Sinto-me olhada a furto.
Olham-me,
espiam-me
com modo céptico
e meio terno.
Entra em mim,
toma-me inteira
um estranho retraimento,
desdém,
ou indiferença.
A minha vontade é de fugir,
de me libertar,
de me recuperar…

Depois, fora,
oprimida
e entristecida,
desejo reconstruir,
sem saber bem como,
o fio trémulo da vida…
Desejo sentir-me apreciada,
enobrecida!


irene lisboa
um dia e outro dia…
poesia I
obras de irene lisboa  I
editorial presença
1991







27 julho 2019

herberto helder / para o leitor ler de/vagar




Volto minha existência derredor para. O leitor. As mãos
espalmadas. As costas
das. Mãos. Leitor: eu sou lento.
Esta candeia que rodo amarela por fora,
e ardentescura por dentro.
Candeia tão baixa-viva. Sou lento numa luminos-
Idade como em meio de ilusão.
Volto o que é um rosto ou
um esquecimento. Uma vida distribuída
por solidão.

Sou fechado
como uma pedra pedríssima. Perdidíssima
da boca transacta. Fechado
como uma. Pedra sem orelhas. Pedra una
reduzida a. Pedra.
Pedra sem válvulas. Com a cor reduzida
a. Um dia de louvor. Proferida lenta.
Escutada lenta.

— Todo o leitor é de safira, é
de. Turquesa.
E a vida executada. Devagar.
Torna-se a infiltrada cor da. Pedra
do leitor.
Volto para essa pedra absoluta. Relativa
à minha pedra.
Minha pedra pensada com a forma
de. Uma lenta vida elementar.

Leitor acentuado, redobrado leitor moroso.
Que entende o relato sem poros,
o mês atroz dealbado sobre a pedra
sem orelhas, pedra sem boca. E que desce os dedos
sobre. Meus dedos pelo ar. E toca e passa.
Pelas pálpebras paradas. Pelos
cerrados lábios até às raízes.
E cai com seus dedos em meus dedos.
Podres. E espera devagar.
Leitor que espera uma flor atravancada,
balouçando baixa
sobre. Mergulhados
filamentos no terror
devagar.

Mas que espera. Doce. Contra o hermético
movimento do mundo.
E que o mundo movimenta contra.
As ondas de Deus auxiliado
auxiliar. E que Deus movimenta contra. Suas ondas
muito lentas, amarguradas ondas muito.
Antigas, ignoradas, corridas. Sobre
a primitiva face do poema. Leitor
que saberá o que sabe dentro. Do que sabe
de mais selado. E esperará
dias e anos dobrado, leitor. Varrido
pelo movimento dos dias.
Contra o movimento nocturno do. Poema devagar.

E que espera.
E para quem volto. Muitas coisas sobre
uma coisa. Volto
uma exaltante morte de Deus. Auxiliado
auxiliar. O espírito, a pedra.
Do poema.
Leitor à minha frente. Vindo
do mais difícil lado
das noites. Ainda tocado e molhado
de suas flores aniquiladas.
Rodo. Para esse rosto difuso e vagaroso
meu sono.
A fantasia minuciosa. A oblíqua inovação.
A solidão. Trémula devagar.

Leitor: volto
para ti. Um livro que vai morrer depressa.
Depressa antes. Que a onda venha, a onda
alague: A noite caída em cima de teus dedos.
De encontro à cor de encontro à. Paragem
da cor. Este livro apertado nas estrelas
da boca, estrelas.
Aderentes fechadas. Por fora
leves às vezes, presas.
Para eu batê-las durante o tempo.
Eterno, o tempo. De uma onda maior que o nosso
tempo. O tempo leitor de um. Autor.
Ou um livro e um Deus com ondas de um mar
mais pacientes. —
Ondas do que um leitor devagar.


herberto helder
poesia toda
lugar
assírio & alvim
1996




26 julho 2019

valter hugo mãe / as brincadeiras




brincávamos a cair nos braços
um do outro como faziam as actrizes
nos filmes com marlon brando e
suspirávamos sem saber habituar o
coração à dor

o amor um pelo outro como se a desgraça
nos servisse bem o peito todo em movimento
a vida podia durar um dia

doíam-me os braços e tu caías uma e outra vez
distante eu era um lugar abandonado
querias culpar-me por ser triste de outro modo
lento convicto culpado fui o primeiro a dizer que
amar é afeiçoar o corpo ao perigo

a minha mãe avisava valter tem cuidado
não brinques assim vais partir uma perna
vais partir a cabeça vais partir o coração
estava certa foi tudo verdade


valter hugo mãe
publicação da mortalidade
poesia reunida
segundo livro, terceira parte
pornografia erudita
assírio & alvim
2018





25 julho 2019

paulo da costa domingos / quatro



A Beleza quer-se cheia,
mas um de cada vez…
Vale mais um prodígio néscio
que um desejo insatisfeito.

Só os amantes da Beleza
deixam perplex’ o Belo,
cingido a núbeis axiomas.

Mesmo quando a folha cai,
Recebe a terra esses beijos.

Múltiplos.



paulo da costa domingos
a céu aberto
averno
2017







24 julho 2019

rui costa / não são poemas



Não são poemas o que eu escrevo
São casas onde os pássaros esperam.
Nas suas janelas coincide o mundo.
Nos seus esteios resvalam gigantes.
Algumas vezes ódio.
Algumas vezes amor.
Não são mortalhas incondicionais do medo.
O HÓSPEDE DA CASA NÃO
TEM O DEVER DE SER FELIZ!
Não são poemas que eu escrevo
São espelhos onde os rostos principiam.


rui costa
«não sou quem era quando lhe mordi a orelha»
mike tyson para principiantes
antologia poética
assírio & alvim
2017





23 julho 2019

samuel beckett / bebe sozinho



bebe sozinho
incha arde fornica rebenta só como defronte
dos ausentes mortos os presentes fedem
retira os olhos e lança-os sobre os juncos
se eles se divertem ou se dão lamentos
pouco te importe existe o vento
e o estado de vigília


samuel beckett
poemas escolhidos
tradução de jorge rosa e armando da silva carvalho
dom quixote
1970









22 julho 2019

lawrence ferlinghetti / o olhar do poeta obscenamente olhando



O olhar do poeta obscenamente olhando
vê a superfície do mundo redondo
                com os seus telhados bêbados
                e oiseaux de madeira nas cordas da roupa
                e machos e fêmeas de gesso
                com pernas ardentes e seios de roseira
                em camas desmontáveis
e as suas árvores plenas de mistérios
e os seus parques domingueiros e as suas mudas
                                                          [estátuas
e a sua América
                com as cidades fantasmas e as Ilhas Ellis
                                                                  [vazias
e a sua paisagem surrealista de
                planícies sem espírito
                subúrbios de supermercados
                cemitérios aquecidos a vapor
                dias santos de cinerama
                e catedrais protestatárias
um mundo à prova de beijo formado de tampas de
                                         [retrete tampax e táxis
                cowboys de drugged-stores e virgens de
                                                             [las vegas
                peles-vermelhas expropriados e matronas
                                                           [cinemalucas
                senadores não-romanos e não-objectores
                                                      [de consciência
e todos os outros fatais e desguarnecidos
                                                              [fragmentos
do mundo do imigrante que se tornou real de mais
                e se extraviou
                                        no meio dos banhos de sol


lawrence ferlinghetti
a coney island of the mind
trad. josé palla e carmo
cadernos de poesia
dom quixote
1972








21 julho 2019

eugénio de andrade / ao luís miguel nava, noutra estrela




Dizem que foste tu
a escolher a violência
da tua morte, num acorde perfeito
com os teus versos. Não é verdade:
tu sabias que nenhum inferno
é pessoal, por isso procuravas
um rio onde ardesses
para voltares a nascer longe da terra.
Apenas isso – o resto é merda.




eugénio de andrade
relâmpago nº. 15 10-2004
revista de poesia
fundação luís miguel nava
2004





20 julho 2019

bénédicte houart / há tantas criaturas



há tantas criaturas, mas
a minha preferida é deus
de todas tem alguma coisa
de nenhuma, tudo



bénédicte houart
inimigo rumor
número 15
2º semestre 2003







19 julho 2019

yorgos seferis / a casa perto do mar



As casas que tive tiraram-mas. Calhou
que fossem anos nefastos guerras desolações expatriamentos;
por vezes o caçador encontra as aves de passagem
por vezes não as encontra; a caça
era boa no meu tempo, os chumbos apanharam muitos;
os outros vagueiam ou enlouquecem nos refúgios.

Não me fales do rouxinol nem da cotovia
nem da pequena arvéola
que escreve algarismos na luz com a sua cauda;
não sei muito de casas
sei que têm a sua tribo, mais nada.
novas ao princípio, como as crianças de colo
que brincam nos jardins como as franjas do sol,
bordam coloridas persianas e brilhantes
portas sobre o dia;
quando o arquitecto acaba mudam,
enrugam ou sorriem ou mesmo teimam
com os que ficaram com os que partiram
com outros que voltariam se pudessem
os que se perderam, agora que o mundo
se tornou num imenso hotel.

Não sei muito de casas,
lembro-me da sua alegria e da sua tristeza
às vezes quando paro;
                                            mesmo
às vezes, perto do mar, em câmaras nuas
com uma cama de ferro sem nada meu
olhando a aranha nocturna cismo
que alguém se prepara para vir, que o enfeitam
com roupa branca e negra com jóias multicores
e em seu redor falam baixo damas veneráveis
cabelos cinzentos e rendado escuro,
que se prepara para vir e despedir-se de mim;
ou, uma mulher com pestanas em hélice talhe profundo
voltando de portos meridionais,
Esmirna Rodes Siracusa Alexandria,
de cidades fechadas com as quentes persianas,
com perfumes de frutos de ouro e com ervas mágicas,
que sobe os degraus sem ver
os que adormeceram debaixo das escadas.

Sabes as casas teimam facilmente, quando as despes.


yorgos seferis
tordo
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães e nikos pratisinis
relógio d´água
1993





18 julho 2019

umberto saba / despedida




Vós o sabeis, amigos, e eu o sei.
Também os versos são quais bolas de sabão:
umas sobem, outras não.



umberto saba
«commiato», cose leggere e vaganti (1920)
vozes da poesia europeia III
traduções de david mourão ferreira
colóquio letras 165
fundação calouste gulbenkian
2003









17 julho 2019

antónio gancho / amor, entre a vida e a morte



AMOR, ENTRE a vida e a morte
escolhe à nossa sorte
ou o amor ou a loucura
escolhe a morte escolhe a vida
escolhe o beijo com ternura
amor, a vida não dura
a vida não dura, amor
e a ternura não sabe
mas cabe a ti dizer
o que é loucura até morrer
é a morte é a vida
é o beijo até morrer




antónio gancho
poemas digitais
jun. / jul. 89
o ar da manhã
assírio & alvim
1995