02 abril 2019

luís miguel nava / já nem sequer




As ondas que se encontram
ainda agora em formação no espírito
dele já não vêm rebentar ao meu.

Por mim não volto a vê-lo, encontros houve
com ele dos quais a alma ficou cheia de dedadas.

Já nem sequer dele quero ouvir falar,
saber que se ele
fosse uma cama estaria por fazer nada me traz
agora além de desconforto.



luís miguel nava
como alguém disse
desenhos de manuel cargaleiro
contexto editora
1982






01 abril 2019

ana curado / vejamos: a poesia é uma coisa



Vejamos: a poesia é uma coisa
Estafada, fácil, quase insuportável
De se ler, mas, porque me é agradável,
Escrevo para entreter, animo a coisa!

Torna-se uma espécie de dever.
Perguntam críticos, leitores: pode lá ser?!
Mas pode! Concerteza! Há neste país
Alguma gentinha que o que fiz

Não há-de nunca fazer, há-de na espelunca
Horripilar-se, dar ar de enfado, estremuca!
E depois dirá que não a lê – mas a lê
E escreve – pois não lê quem não lê, não se vê?

Não? Não digas, nada! E se te alaga,
Como escreve quem já me aborrece, Sê!
E se não podes salvar-te, diz, se te agrada,
Um palavrão, que às vezes alivia, e coisa!



ana curado
sião
organização e notas de
al berto, paulo da costa domingos e rui baião
lisboa
1987







31 março 2019

ana hatherly / olho




Olho
uma rosa vermelha
numa jarra vermelha
Vejo
o absoluto vermelho
da absoluta rosa



ana hatherly
fibrilações
quimera
2005









30 março 2019

fiama hasse pais brandão / verso vão



Onda de sol, verso de ouro,
perífrase vã. Extasiar-me,
antes, por esta fusão,
mistura de brilhos. Ou, ainda
mais íntima, a consciência
extensa como o céu, o corpo de tudo,
semelhança absoluta. Respirar
na quebra da onda. Na água,
uma braçada lenta
até ao limite de mim.



fiama hasse pais brandão
ecos
obra breve
poesia reunida
assírio & alvim
2017







29 março 2019

sophia de mello breyner andresen / se alguém passa agora nos areais,




Se alguém passa agora nos areais,
Se alguém passa agora nos pinhais,
Diz,
Em gestos plenos e naturais,
Tudo o que eu, tão em vão, perdidamente quis.



sophia de mello breyner andresen
dia do mar
obra poética
assírio & alvim
2015









28 março 2019

isabel meyreles / todos os poetas fazem versos




Todos os poetas fazem versos.
Não eu.
A minha máquina de fabricar palavras
utiliza um alfabeto protoplásmico
que reproduz a tua imagem
incansavelmente
assim eu digo
é tempo que tu partas
e me deixes fazer poemas
como toda gente.



isabel meyreles
poesia
o rosto deserto 1966
tradução de natália correia
quasi
2004






27 março 2019

josé miguel silva / mudar de casa



Para a Renata Botelho



É bom mudar de casa, de janela,
arrumar de outra maneira as ilusões,
tratar de coisas parvas como tintas
e sofás, pôr ordem entre os livros
e a vida, simular a liberdade.

Parece-nos possível voltar a acreditar
na mão que nos estende um pé de salsa,
na pechincha da beleza quando passa
no poente da razão.

Apetece cometer uma loucura,
comprar um telescópio, decorar
o canto nono dos Lusíadas,
subir uma escada do avesso,
pensar que nunca mais teremos frio.


josé miguel silva
ulisses já não mora aqui
língua morta
2014






26 março 2019

charles bukowski / vitória




as promessas que fizemos
honramo-las
e
quando formos cercados
pelos cães das horas
nada
nos poderá ser confiscado
a não ser
as nossas vidas.



charles bukowsky
os cães ladram facas
trad. rosalina marshall
alfaguara
2018







25 março 2019

léo ferré / a desordem é a ordem menos o poder




[…]

A desordem é a ordem menos o poder!

Já não há nada

Sou um preto branco que come graxa
Porque se chateia de ser branco, este preto,
Fartou-se que lhe dissessem: «Branco de merda!»

Em Marselha, a sardinha que entope o porto
Estava recheada de heroína
E os homens-rãs não regressaram…
Libertai as sardinhas
E acabam-se os peixeiros!

Se soubesses o que eu sei
Apontavam-te o dedo na rua
Mais vale então que nada saibas
Assim, ao menos, ficas numa boa, anónimo, Cidadão!

Tens direito, Cidadão, ao mínimo decente
À publicidade das enzimas e do charme
Ao tráfico de dólares e aos traficantes de armas
Que arrastam os jornais na lama e no sangue

[…]


léo ferré
il n´y a plus rien / já não há nada
trad. antónio ferreira, luísa mariante e maria paiva
ler devagar
2017








24 março 2019

ricardo reis / cada um cumpre o destino que lhe cumpre.




Cada um cumpre o destino que lhe cumpre.
E deseja o destino que deseja;
                Nem cumpre o que deseja,
                Nem deseja o que cumpre.

Como as pedras na orla dos canteiros
O Fado nos dispõe, e ali ficamos;
                Que a Sorte nos fez postos
                Onde houvemos de sê-lo.

Não tenhamos melhor conhecimento
Do que nos coube que de que nos coube.
                Cumpramos o que somos.
                Nada mais nos é dado.

29-7-1923




fernando pessoa
odes de ricardo reis
ática
1946







23 março 2019

emily dickinson / à luz da luz que parte




À luz da luz que parte
Vemos melhor, de facto,
Que à do pavio que fica.
Há algo na partida
Que a visão clarifica
E os raios aviva.



emily dickinson
duzentos poemas
trad. ana luísa amaral
relógio d´água
2014







22 março 2019

josé saramago / regra




Tão pouco damos quando apenas muito
De nós na cama ou na mesa pomos:
Há que dar sem medida, como o sol,
Imagem rigorosa do que somos.


josé saramago
os poemas possíveis
porto editora
2018














21 março 2019

josé de almada negreiros / se é dever dizer o que




Se é dever dizer o que
sem mestre aprendi da
vida digo:
a natureza tem tudo
mas cada coisa de
sua vez.
É simultânea como o
conhecimento:
sabe-se bem uma coisa
por causa de várias
que se sabem mal.
E tive paz quando
soube que antigos
me tinham deixado
isto mesmo.



josé de almada negreiros
poemas
assírio & alvim
2017