11 outubro 2018

antónio amaral tavares / o edifício da onu


(Charles Sheeler. Secretariado das Nações Unidas. 1951)



Vertical e monolítico

de lado as fachadas levantam-se cegas
como um espírito vigoroso crescente

e paralelo

o mármore da manhã
a suportar a pedra
da existência humana

nos alçados frontal e posterior
a igualdade rigorosa
das janelas alinha-se no mesmo plano

irmão nos tumultos do espaço da cidade
está muito longe o mundo

este edifício

todos o sabemos.




antónio amaral tavares
retratos de nova iorque
do lado esquerdo
2018









10 outubro 2018

francis ponge / fôssemos apenas um corpo




*
Fôssemos apenas um corpo e seguramente estaríamos em equilíbrio com a natureza.

Mas a nossa alma está do mesmo lado que nós na balança.

Leve ou pesada, não sei.

Memória, imaginação, afectos imediatos tornam-na mais pesada; todavia temos a palavra (ou qualquer outro meio de expressão); cada palavra que pronunciamos torna-nos mais leves. Na escrita, ela passa mesmo para o outro lado.

Leves ou pesados, não sei de facto, mas precisamos de um contrapeso.



francis ponge
alguns poemas

tradução de manuel gusmão
livros cotovia
1996








09 outubro 2018

roberto juarroz / todos falam



Todos falam
do que encontraram no caminho.
Alguns falam também
do que não encontraram.
E uns tantos referem-se
ao que não é possível encontrar.

Mas há quem fale de um encontro
que surge de uma emboscada entre as mãos
como uma andorinha que nunca foi parte
de nenhum bando,
como um gesto secreto que recolha
a compaixão que falta nos encontros.

Todo o encontro nasce
como a água perante a sede.
O resto é uma miragem
que não chega sequer
a desconcertar o deserto.



roberto juarroz
a árvore derrubada pelos frutos
trad. rui caeiro, duarte pereira e diogo vaz pinto
língua morta
2018







08 outubro 2018

miguel-manso / lamento londrino





passaram anos sem ter servido à poesia
porque é que agora volto ali?

Londres era, palavra, aquele mesmo nevoeiro
fastidioso, uma morrinha triste como se espera que seja
eu muito novo ainda para saber conciliar a acne
do rosto com a dolência da alma com que acudia
sobre a cama do hotel (colcha amarela, descosida, desmaiada)
a um disco insuportável do Choen: Live Songs, 1973

é fácil perceber agora o porquê de ter repetido
tantas vezes aquele Minute Prologue
dava corda à melancolia, era cedo e tarde para
tanta coisa, e naquele tempo eu tinha a convicção de ser
a pessoa menos contemporânea de mim mesmo

a noite, uma ambulância, o vidro molhado
da janela do quarto onde as imagens nebulosas do dia
nunca se fixavam

terei tentado o choro, o suicídio?
nada, nem um cigarro

viajava, que extravagância, com os meus pais
a autonomia e o inglês rudimentares
coragem nenhuma para ir socorrer sozinho



miguel-manso
mortel
do lado esquerdo
2018







07 outubro 2018

pedro loureiro / máscara





Olha como dançam
e são mais do que o rosto
como renascem os mortos neles
pele, ossos e penas
mandíbulas que se mexem
num ritual de misterioso poder
espectros, pesadelos
de acentuados e expressivos traços
ridículos nos seus disfarces
rostos extremamente longos e testas amplas
sóbrias no seu poder
olhos redondos em alerta ou fúria
nariz adunco de quem não se quer render
ser outro ou a máscara dentro da máscara
grotesco e monstruoso
de proporções exagerado
ser poema, bobo ou marioneta
alvo ou enegrecido
abstracto deus esculpido
e cornos, muitos cornos
nas cabeças gigantescas
que vestem o rosto dos mortos
mantém pois teu peito aberto
à mais pequena máscara do mundo
o rubro e esférico nariz de palhaço




pedro loureiro
that´s all folks
editora urutau
2018









06 outubro 2018

alessandra racca / os olhos





Os olhos são dois, porém muitos.

Um está virado para dentro, mas às vezes farta-se
junta-se ao segundo, capaz de estar
olhos nos olhos, dois a dois, falando sem palavras

Um é feito para se perder em altos céus, prados, águas e montanhas
Um serve para não desviar o olhar, pode chorar, acolhe em si,
compreende
sabe esperar, é um olho que se pousa em cima das criaturas

Um distrai-se, imagina outros mundos, outras possibilidades,
lança-se para além do obstáculo, pulsa, intui
Um diz não, di-lo com força, escolhe, diz agora basta, não

Um é capaz de maravilha, colhe o particular (a vida da poeira
no cone de luz, o olhar do transeunte, a mensagem no muro,
a fadiga da formiga que arrasta migalhas de pão)
Mas também um olho fechado, que conheça a escuridão,
que saiba descansar

E um olho pela solidão, um olho para morrer

Um pelo horizonte
Um para ver pela primeira vez, outra vez

E depois uma boca, que se abre ligeira
a beijá-los todos, a sossega-los, um a um.




alessandra racca
tradução de francesco selva
nervo/3
colectivo de poesia
setembro/dezembro 2018







05 outubro 2018

pedro vale / é preciso viver sem paixôes







É preciso viver sem paixões.
Mergulhar no absoluto anonimato,
Aclamar o tumulto escuro e bruto.
Encenar o drama clemente e lento.
Sentir um amor ideal por anjos nebulosos.
Descobrir um novo fundo de poesia e aguardar
uma voz que nos ordene docilmente:
- Não te movas, nem te inquietes,
nem traias o que
ainda não
és.


pedro vale
azul instantâneo
edição do autor
2018






04 outubro 2018

isabel meyreles / gostava de levar




Gostava de levar
a sensibilidade a tiracolo,
esta máquina fotográfica
do poeta com ciúmes,
retractar a esfolada viva
sangrando de preferência em versos
coroada em Minotauro



isabel meyreles
poesia
o rosto deserto 1966
tradução de natália correia
quasi
2004










03 outubro 2018

edmundo de bettencourt / dia




Com um peso de cegueira a esmagar-me o cérebro,
Face queimada pelo vento contra
E trôpego dos passos que venci em vão,
Atinjo a hora convencional da noite
Em que não há descanso já
Pois o sono é vazio de si mesmo
E mais que nunca durmo só por fora.

Desperto?
Passou um dia? Um ano?

É cinzenta de chumbo a claridade.
É cinzenta de chumbo a escuridão.

No tempo que não pára
Este minuto Aqui
Quanto espaço nos rouba?




edmundo bettencourt
ligação 1936-1962
poemas de edmundo de bettencourt
assírio & alvim
1999







02 outubro 2018

joaquim manuel magalhães / despedes-te depressa destes dias




Despedes-te depressa destes dias
sem o sol que pensaste e te faria
rasgar de ti o que conheces.
Precisas da ignorância e do inútil.
O que sabes soterrou as energias
ao ar do mar onde há barcos e peixes
naturalmente, como tu não és.
Dentre as mãos como pinheiros as carícias
é uma forma de corroeres a vida.
Um espírito nocturno espreita das coisas,
a transitória consciência encontra análogos
nas matérias, na falsidade.
Os vagarosos gestos ocupam os lugares,
a desolada observação dos factos e dos feitos.
O brilho visionário fez-se derrota,
a perfeição nos sonhos,
uma linguagem de sentido perdido.


joaquim manuel magalhães
dos enigmas
moraes editores
1976











01 outubro 2018

antónio franco alexandre / no resto dos seus olhos




no resto dos seus olhos
pousarei o lençol lembrando
o ângulo das chuvas, e os brandos
meteoros.

passeio-me
de tranças, com um fio
azul por entre as franjas
flexíveis da memória.

encontro esse motivo nos seus dedos
na sua carne de curtume branco.

deixe que viva nos seus olhos, rosto.



antónio franco alexandre
ana jotta
sumário
livro de artistas
europpalia 91
1991








30 setembro 2018

ricardo reis / negue-me tudo a sorte, menos vê-la,




Negue-me tudo a sorte, menos vê-la,
        Que eu, estóico sem dureza,
Na sentença gravada do Destino
        Quero gozar as letras.

20-11-1928


fernando pessoa
odes de ricardo reis
ática
1946















29 setembro 2018

filipa leal / são joão




Lembro-me que o Miguel saiu com o manjerico
debaixo do braço.
O manjerico pertencia ao restaurante Batalha,
como os cães pertencem aos seus donos
e os humanos aos seus amantes.
O Miguel roubou o manjerico, é certo,
mas o dono do restaurante devia ter estado mais atento.
O dono do restaurante já devia ter idade para saber amar
as suas plantas.




filipa leal
vem à quinta-feira
assírio & alvim
2016