16 abril 2018

rené char / evadne




O estio e a nossa vida éramos uma só coisa
O campo devorava a cor da tua saia perfumada
A avidez e o constrangimento tinham-se reconciliado
O castelo de Maubec enterrava-se na argila
Em breve soçobrariam os vaivéns da sua lira
A violência das plantas fazia-nos vacilar
Um corvo remador sombrio desviando-se da esquadra
Sobre o sílex mudo do meio-dia esquartejado
Acompanhava o nosso idílio com ternos movimentos
Em toda a parte a foice acedia ao repouso
A nossa raridade iniciava um reino
(O vento insone que nos enruga a pálpebra
Voltando noite após noite a página consentida
Quer que cada tua parte que eu retenho
Se estenda numa terra de idade faminta e de lacrimal gigante)

Era no início dos anos adoráveis
Lembro-me de que a terra nos amava um pouco.

         
rené char
furor e mistério
o rosto nupcial
trad. margarida vale de gato
relógio d’ água
2000







15 abril 2018

bernardo soares / apoteose do absurdo




Falo a sério e tristemente; este assunto não é para alegria, porque as alegrias do sonho são contraditórias e entristecidas e por isso aprazíveis de uma misteriosa maneira especial.

Sigo às vezes em mim, imparcialmente, essas coisas deliciosas e absurdas que eu não posso poder ver, porque são ilógicas à vista — pontes sem donde nem para onde, estradas sem princípio nem fim, paisagens invertidas (...) — o absurdo, o ilógico, o contraditório, tudo quanto nos desliga e afasta do real e do seu séquito disforme de pensamentos práticos e sentimentos humanos e desejos de acção útil e profícua. O absurdo salva de chegar apesar do tédio àquele estado de alma em que começa por se sentir a doce fúria de sonhar.

E eu chego a ter não sei que misterioso modo de visionar esses absurdos — não sei explicar, mas eu vejo essas coisas inconcebíveis à visão.

s.d.


fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
presença
1990






14 abril 2018

tereza balté / as visões


  
Que poderias trazer de novo
que consolação tu ou outro
se o tempo nos dispersa a sombra se insinua
se o rosto permanece envolto em sua coroa
se a lua circunscreve o sonho em sua aura
não é outro deserto não é outra palavra
que apaga a nossa chama inspira a nossa ferida
o mistério persiste no astro que ilumina.



tereza balté
horizontes portáteis
editorial inova
1977









13 abril 2018

miguel-manso / campéstico, paisagens e interiores


  
51
um calendário sonegando o Verão
se por ele unicamente me guiasse inventaria
em segredo mais jubiloso almanaque

afastando-me do receio com que entregasse
dedicado o termo desta opereta


miguel-manso
persianas
tinta da china
2015








12 abril 2018

antónio reis / poemas quotidianos


  
52

Nascem
flores
dos beijos
nos teus ombros

e abelhas

E sombras


antónio reis
poemas quotidianos
tinta da china
2017







11 abril 2018

narciso pinto / touché




Esta cidade é uma arca-congeladora!

A lua – decerto em aquário –
Resplandece-nos fingindo,
No lodaçal das pupilas
Dos que atentam sumidos;

Estreia inaugural
D´uma lindíssima ressaca a dois,
Após terrível bezana –
Trave mestra d´intimidades!

A morte é uma foco-de-presença,
Rondando sempre ambulatorial,
E sombreada – quando o convém –
Pela escuridão do amor;

Endomingados toda a vida,
(ançaimando ciúmes e medos)
Calibramos a voltagem do peito
Por meio d´um beijo que doma arritmias…

Ninguém faz caso!



narciso pinto
os deleites do tédio
pangolim
líricas & patuás
língua morta
2017






10 abril 2018

sophia de mello breyner andresen / pátria




Por um país de pedra e vento duro
Por um país de luz perfeita e clara
Pelo negro da terra e pelo branco do muro

Pelos rostos de silêncio e de paciência
Que a miséria longamente desenhou
Rente aos ossos com toda a exactidão
Dum longo relatório irrecusável

E pelos rostos iguais ao sol e ao vento

E pela limpidez das tão amadas
Palavras sempre ditas com paixão
Pela cor e pelo peso das palavras
Pelo concreto silêncio limpo das palavras
Donde se erguem as coisas nomeadas
Pela nudez das palavras deslumbradas

- Pedra   rio   vento   casa
Pranto   dia   canto   alento
Espaço   raiz   e água
Ó minha pátria e meu centro

Me dói a lua me soluça o mar
E o exílio se inscreve em pleno tempo


sophia de mello breyner andresen
livro sexto
1962






09 abril 2018

carlos de oliveira / árvore



I
As raízes da árvore
rebentam
nesta página
inesperadamente,
por um motivo
obscuro
ou sem nenhum motivo,
invadem o poema
e estalam
monstruosas
buscando qualquer coisa
que está
em estratos
fundos,

II
talvez poços,
secretas
fontes primitivas,
depósitos, recessos
onde haja
um pouco de água
que as raízes
procuram
de página
em página
com a sua obsessão,
múltiplos filamentos
trespassando o papel,

III
seguindo o fio
da tinta
que desenha
as palavras
e tenta
fugir ao tumulto
em que as raízes
grassam,
engrossam, embaraçam
a escrita
e o escritor:

como podem
crescer
de tal modo

IV
no poema,
se a árvore
foi dispersa
em pranchas de soalho,
em móveis e baús
que fecham
para sempre
coisas
tão esquecidas,
como podem
romper
de súbito impetuosas
na aridez
do livro

V
e perseguir-me
assim,
se a areia
donde vêm
já vitrificada
pelo tempo
oculta
a árvore que morreu:

procuram
instalar-se
no interior da linguagem
ou substituí-la
por uma
infiltração

VI
quase
mortalizante:
mas
de repente
como apareceram
as raízes sossegam
[que terão
encontrado?]
e retiram
com o mesmo fluxo
do mar que se retraie deixa
atrás de si
silêncio:

VII
é então que vejo
no halo mais antigo
a árvore desolada,
os ramos em que poisam
as aves
doutros livros,
e pressinto
as raízes
através da sílica
onde a família dorme
com os ossos dispostos
nessa arquitectura
duvidosa
de símbolos

VIII
que chegaram
aqui
de mão em mão
para caberem todos
na constelação
exígua
que fulgura
ao canto do quarto:
o baú ponteado
como o céu
por tachas amarelas,
por estrelas
pregadas na madeira
da árvore.


carlos de oliveira
micropaisagem
trabalho poético
livraria sá da costa editora
1998






08 abril 2018

camilo pessanha / ó cores virtuais que jazeis subterrâneas




Ó cores virtuais que jazeis subterrâneas,
– Fulgurações azuis, vermelhos de hemoptise,
Represados clarões, cromáticas vesânias – ,
No limbo onde esperais a luz que vos baptize,

As pálpebras cerrai, ansiosas não veleis.

Abortos que pendeis as frontes cor de cidra,
Tão graves de cismar, nos bocais dos museus,
E escutando o correr da água na clepsidra,
Vagamente sorris, resignados e ateus,

Cessai de cogitar, o abismo não sondeis.

Gemebundo arrulhar dos sonhos não sonhados,
Que toda a noite errais, doces almas penando,
E as asas lacerais na aresta dos telhados,
E no vento expirais em um queixume brando,

Adormecei. Não suspireis. Não respireis.


camilo pessanha
clepsidra
1920





07 abril 2018

ruy belo / morte ao meio-dia




No meu país não acontece nada
à terra vai-se pela estrada em frente
Novembro é quanta cor o céu consente
às casas com que o frio abre a praça

Dezembro vibra vidros brande as folhas
a brisa sopra e corre e varre o adro menos mal
que o mais zeloso varredor municipal
Mas que fazer de toda esta cor azul

que cobre os campos neste meu país do sul?
A gente é previdente cala-se e mais nada
A boca é pra comer e pra trazer fechada
o único caminho é direito ao sol

No meu país não acontece nada
o corpo curva ao peso de uma alma que não sente
Todos temos janela para o mar voltada
o fisco vela e a palavra era para toda a gente

E juntam-se na casa portuguesa
a saudade e o transístor sob o céu azul
A indústria prospera e fazem-se ao abrigo
da velha lei mental pastilhas de mentol

Morre-se a ocidente como o sol à tarde
Cai a sirene sob o sol a pino
Da inspecção do rosto o próprio olhar nos arde
Nesta orla costeira qual de nós foi um dia menino?

Há neste mundo seres para quem
a vida não contém contentamento
E a nação faz um apelo à mãe,
atenta a gravidade do momento

O meu país é o que o mar não quer
é o pescador cuspido à praia à luz do dia
pois a areia cresceu e a gente em vão requer
curvada o que de fronte erguida já lhe pertencia

A minha terra é uma grande estrada
que põe a pedra entre o homem e a mulher
O homem vende a vida e verga sob a enxada
O meu país é o que o mar não quer


ruy belo
boca bilingue 1966
tempo duvidoso
todos os poemas I
assírio & alvim
2004




06 abril 2018

irene lisboa / outro dia




Escrever assim…
escrever sem arte,
sem cuidado,
sem estilo,
sem nobreza,
nem lindeza…
sem maior concentração,
sem grandes pensamentos,
sem belas comparações,
não será escrever!
Mas assim me apetece,
que o entendam ou não,
que o admitam ou não,
escrever…
estender
o delgado, esfiado,
inoperante
pensamento.
Este pensar
não é actuar mentalmente,
sequer,
é descansar…

Estive deitada,
e agora estou sentada.
Deitada via as nuvens,
brancas do sol,
brilhantes,
enoveladas.
Tanta brancura
à frente dos meus olhos!
Afogava-me nela.
De que me lembrava?
Nem eu já sei.
As ideias do dia,
picadas sem dor,
a que sorria,
como apareciam, desapareciam…
Realmente,
só na hora,
no pleno instante
de nos assaltarem,
frescas e imprevistas,
têm o seu sabor.

Deitada,
com a luz nos olhos,
sonhava… sei que sonhava…
na única coisa em que se sonha,
na única coisa em que se pensa,
naquela que é a trama,
o fundo ora baço,
ora vivo,
persistente e teimoso,
das nossas preocupações…

Antes ensaiei vestidos,
mas todos usados…
vestidos do verão,
leves,
remoçantes,
que dá gosto ensaiar.
É uma experiência que se faz…
Vemo-nos ao espelho
e ele que nos diz?
Tudo o que desejamos
e também receamos…
Que me diz o espelho?
Fala-me dos olhos,
fala-me do corpo,
engana-me…
Mas também me diz,
tantas vezes!:
nada esperes,
és tola.

Ai que podem os vestidos,
que podem os espelhos?
Tempo!
Tu é que tens a última palavra!
Corres,
e, sem dó, tudo inutilizas.
Bem hajas!
Inutiliza! Mas não demores!
Destrói! Mata!
Que o pior mal,
de todo o pior,
é esperar,
sempre esperar.
  
Lisboa 1936



irene lisboa
um dia e outro dia….
obras de irene lisboa  I
editorial presença
1991