07 agosto 2016

josé agostinho baptista / melancolia




Melancolia,
despojos e tendas, sinais,
no desabar das praias.

Havia um cão que caminhava.
Um cão sem nome, às vezes deitado.

Tão meus eram os seus olhos de cão deitado e às vezes
corria.

Há cães como esse,
cães que atravessam a desolação da areia como faro de
desaparecidos deuses, muito antigo.

São lugares para o sono, estes.
Lugares onde se adormece para sempre no rebordo do sol,
na lassidão dos braços.

Silva o ar nos corredores da respiração e não se sabe
o porquê das coisas
o tesouro das marés.

Insurge-se na pele, na exaltação dos poros, o verão de
cada ano,
uma saudade de búzios e barcos esquecidos,
um assombro de náufragos.

Despojos e peles, tardes de iodo e bronze.
Começará o desejo na demora do sol,
no relevo das nádegas?

Há cães que espreitam.
Cães que vagueiam no alarme das dunas, comovidos
homens deitados, com o azul por cima e à volta, de
lado a lado.

Tendas, gritos entrecruzados e a ave imóvel,
tranças desfeitas pela desatenção das ondas, em
desordem,
embatendo.

Caminham os relógios, vorazes ponteiros destruindo
tudo,
e o homem corre, senta-se, enreda a alma nas cordas
do verão,
sinais da paixão, decrépitas gentes, tristes.




josé agostinho baptista
auto-retrato
biografia
assírio & alvim
2000




06 agosto 2016

mia couto / o bebedor de sóis



No deserto,
onde o céu é redondo,
de mim mesmo sou miragem.

Na areia
me afundo, defunto,
até não haver sombra
senão sob cansaços de pálpebras.

Quando não há mais
que vento e dunas,
em mim invento o derradeiro oásis.

Uma raiz
então me convoca,
pedindo-me certo e definitivo.

Não nasci, porém,
para junto de fontes morar.

De novo,
vou por onde não há caminhos.

E só no fogo deixo pegada.


mia couto
tradutor de chuvas
caminho
2013



05 agosto 2016

mario luzi / ano



Benéficas agora, ainda tranquilas
As cepas, as uvas
A vinha do enforcado. O Outro
É ainda o desconhecido, o Outro estava, está sempre
Fechado neste céu opaco
Onde a luz avinhada
É cada vez mais frouxa
 – e o grito do tentilhão já é só gelo.

Aqui, nestes trabalhos calmos,
Claros, aqui prossegue arde
O tudo que não tenho
Mas tenho que perder.
Os tempos que se foram,
O tempo que aí vem
Arremetem –
Sem saber como, cheguei aqui,
Espero, ardo, avanço por
Dias e dias inacessíveis
E torno-me sem fim o que já sou,
A repousar nesta luz vazia.


mario luzi
trad. ernesto sampaio
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001



04 agosto 2016

marcos tramón / num bar nocturno



Uma, como se fosse toda um nervo,
inquieta. A outra, sóbria, mais serena.
Ambas morenas e provocadoras
(como um convite inalcançável),
Beijam-se sem pudor (já te toparam)
Certas de tentar a quem as olha.
A tua cara uma garrafa, vermelha,
de vinho tinto entre as mãos delas
(bebem como cossacos).
Saberás dissimular tanto descaro,
porque pensas que elas já te entendem,
que te explicas inteiro ao observá-las.

Não é tão fácil, não é baixa excitação
se as contemplas.
É algo muito mais para além disso,
é algo muito mais para alem delas.
E é tão fácil, contudo, é tão fácil
como um desejo. E como poderias
explicar o amor assim de súbito?
E não será o amor qualquer coisa
de essencial natureza
feminina, palpável de verdade
unicamente num corpo de mulher?

A tal ponto que desejarias
ser essa rapariga que desperta nervosa
para o desejo que cumpre entre outras companheiras,
com outras companheiras…
Olha-as, já se vão. De todos esses dias
que são para elas um feliz segredo,
que brilham como vertigem nos seus olhos,
como caídos do céu, nem a um só
estás tu convidado. Melhor assim.
Cúmplices te dedicam um último beijo cúmplice.

Ninguém lhes diga o que é o amor,
elas de boa fé já o sabem.


marcos tramón
poesia espanhola anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000



03 agosto 2016

ana paula inácio / duas chávenas




Tínhamos duas chávenas
em forma de meia lua
e uma triangular.
Quando alguém ia lá a casa
bebíamos os dois pelas meias luas
o convidado pela triangular.
Era uma regra da casa
nem escrita
nem pronunciada
apenas pressentida.
Até que alguém apareceu
e trocou o sítio das chávenas
a mim coube-me a triangular.
As regras eram mesmo assim
para quebrar
como as tartes
como as chávenas.
Será que ainda as podemos colar?


ana paula inácio
2010-2011
averno
2011




02 agosto 2016

ingeborg bachmann / canções em fuga



XV

Tem seu triunfo a morte, o amor é festejado,
e o grande Tempo e o tempo futuro.
A nós nenhum triunfo é dado.

À nossa volta só um afundar de astros. Eco de luz, sem voz.
Mas, sobre o pó, a canção do futuro
soará para além de nós.


ingeborg bachmann
o tempo aprazado
trad. judite berkemeier e joão barrento
assírio & alvim
1992



01 agosto 2016

pedro spigolon / meteorologia dos corpos





Nenhum dilúvio limpará esse ódio
haverá sempre uma vingança justa
sempre uma revolta necessária.
Qualquer apelo é inútil
rezar nem se fala.
Não há onde esconder esse desespero.
As crianças não cabem nos bolsos
e ainda precisam empilhar corpos
como os brinquedos de uma guerra.
Um olho nunca será uma bolinha de gude,
uma amarelinha não se pula sobre cadáveres.
O único céu é o da boca
quieta como um dia nublado
em que a chuva encontra o silêncio
que abandonou a carne.
Sangue não é urucum
para pintar o rosto da cidade
com pavor e medo.
Nem tente recostar seu rosto
nessas bochechas que desmancham,
qualquer carinho é um crime
toda empatia uma cumplicidade.
Do telhado do país
a vertigem das gotas,
em vão esfrega essas mãos:
água não lava o horror.
No Jornal Nacional tudo será
paz e progresso
e a previsão do tempo
indicará estiagem
seca das lágrimas
racionamento da saudade.
A vida escorre confundindo
Choro com chorume…
Daqui algum tempo,
quando o sol evaporar o medo
o ódio grudará nas nuvens
escurecendo  céu
e novamente seremos
mortos
órfãos
ou cúmplices.


pedro spigolon
espanto
editora medita
2015



31 julho 2016

álvaro de campos / começa a haver



Começa a haver meia-noite, e a haver sossego, 
Por toda a parte das coisas sobrepostas, 
Os andares vários da acumulação da vida... 
Calaram o piano no terceiro andar... 
Não oiço já passos no segundo andar... 
No rés-do-chão o rádio está em silêncio... 
Vai tudo dormir... 

Fico sozinho com o universo inteiro. 
Não quero ir à janela: 
Se eu olhar, que de estrelas! 
Que grandes silêncios maiores há no alto! 
Que céu anticitadino! - 
Antes, recluso, 
Num desejo de não ser recluso, 
Escuto ansiosamente os ruídos da rua... 
Um automóvel - demasiado rápido! - 
Os duplos passos em conversa falam-me... 
O som de um portão que se fecha brusco dói-me... 

Vai tudo dormir... 

Só eu velo, sonolentamente escutando, 
Esperando 
Qualquer coisa antes que durma... 
Qualquer coisa.

  

álvaro de campos





30 julho 2016

herberto helder / tríptico


  
     I

     «Transforma-se o amador na coisa amada» com seu
     feroz sorriso, os dentes,
     as mãos que relampejam no escuro. Traz ruído
     e silêncio. Traz o barulho das ondas frias
     e das ardentes pedras que tem dentro de si.
     E cobre esse ruído rudimentar com o assombrado
     silêncio da sua última vida,
     O amador transforma-se de instante para instante,
     e sente-se o espírito imortal do amor
     criando a carne em extremas atmosferas, acima
     de todas as coisas mortas.


     Transforma-se o amador. Corre pelas formas dentro.
     E a coisa amada é uma baía estanque.
     É o espaço de um castiçal,
     a coluna vertebral e o espírito
     das mulheres sentadas.
     Transforma-se em noite extintora.
     Porque o amador é tudo, e a coisa amada
     é uma cortina
     onde o vento do amador bate no alto da janela
     aberta. O amador entra
     por todas as janelas abertas. Ele bate, bate, bate.
     O amador é um martelo que esmaga.
     Que transforma a coisa amada.


     Ele entra pelos ouvidos, e depois a mulher
     que escuta
     fica com aquele grito para sempre na cabeça
     a arder como o primeiro dia do verão. Ela ouve
     e vai-se transformando, enquanto dorme, naquele grito
     do amador.
     Depois acorda, e vai, e dá-se ao amador,
     dá-lhe o grito dele.
     E o amador e a coisa amada são um único grito
     anterior de amor.


     E gritam e batem. Ele bate-lhe com o seu espírito
     de amador. E ela é batida, e bate-lhe
     com o seu espírito de amada.
     Então o mundo transforma-se neste ruído áspero
     do amor. Enquanto em cima
     o silêncio do amador e da amada alimentam
     o imprevisto silêncio do mundo
                                                        e do amor.




herberto helder
poesia toda
assírio & alvim
1996



29 julho 2016

tiago d. oliveira / temporã



a cara da recepcionista
tem um desejo de morte.
em cada segundo de sua fala
a repulsa me sobe à garganta.
cada sonho negado, como quem goza,
peida. suas mãos carregam a lembrança
da última encosta que cedeu na chuva,
de vez em vez até respondem
aos espasmos musculares que emanam taciturnos
bom dia! em que posso ajudar?
em seu nariz os corpos putrefatos,
a língua queimando na acidez
que deve ao alimento a digestão,
os bicos dos seios em paz
com o clitóris, vencidos pelos dias
bom dia! em que posso ser útil?
(queria socar a sua cara)
mas tive pena,
não dela – de mim
por ter cá esta inveja
vestida de saudade







28 julho 2016

josé manuel / transfigurações



A Eduardo Viana

«Le rossignol chante mal. »
Jean Cocteau


1
Nevou no Congo
ninguém viu

2
o sol queimou a paisagem
todos os homens cegaram

3
Entre a multidão a dor uníssona
— Senhor ilumina-nos

4
Noite verde
a paisagem azul

5
Um cacto no poio

6
Tudo é possível
dentro da alma

7
Porque dizes estamos mortos?
Começaste a viver sabendo-o

8
Sonha outro mundo outra vida
recomeça desde dentro
— a salvação és tu

9
Espelhos paralelos
nos bastidores o clown reflectido infinitamente

10
o público sorriu
sentindo-se nu sem saber exactamente porquê sorriu

11
Sozinho no grande palco do mundo
o poeta encontrou o seu destino
escrevendo-o
12
Ao princípio era o verbo

13
Entretanto a presença contínua dos homens
— Senhor tem piedade de nós pecadores

14
Silêncio de salto mortal

15
A vertigem do amor
todos os vícios todas as perversões

16
Um dia serás feliz no fim do mundo
 para além do equador
nas ilhas do mar do sul

17
É preciso que creias no milagre

18
As catedrais subterrâneas
cada vez mais próximas do céu

19
O perfil das cidades suspensas
sem anúncios luminosos
simples românico

20
A vida sem ansiedade
tam calma tam serena tam humilde

21
A hora redimida
terceiro dia do mundo

22
Meu amor não sei porquê
tudo isto dói

23
Não importa há outros ritmos
 outras paisagens ao longe

24
Acelerem o tempo

25
É preciso viver infinitamente
cores e sons sucessivos sobrepostos
cada vez mais

26
Hão-de dizer-te a vida tem limites
Que importa se a alma é imensa?

27
Tu sabes o céu é azul objectivamente azul
sonha-o de todas as cores

28
Liberta-te do mundo
o teu único o teu verdadeiro caminho és tu

29
A arte não é jogo é vida

30
Todos os dias são eternos

31
O tempo girafa de três cabeças
multiplicou-se indefinidamente

32
Por toda a parte nasceram monstros
homens máquinas em série

33
O grande crime somos nós
 escravos mártires do progresso

34
O mundo
brinquedo de um deus criança
nós não somos deste mundo

35
Bonecos articulados
exigimos

36
O espectáculo da vida
monótono às vezes sórdido

37
Imagens sobrepostas sempre as mesmas

38
O trágico quotidiano
um menino a dizer obscenidades

39
Merda para os primeiros
merda para os últimos

40
Perdemos o ritmo
desde o princípio dos tempos

41
Eu sou a hora eu sou o mundo
o único ritmo sou eu

42
Os outros podem sorrir
nasceram longe tam longe num outro mundo

43
Ignoram o dia estéril
o dia estéril são eles

44
Dissonâncias
um íbis descobriu o polo norte

45
Jazz movimento perpétuo
monótono trágico
documento apócrifo

46
Desnudem a paisagem
é preciso acabar com o verde

47
Abram o ventre a todas as mulheres
 é preciso quebrar com o futuro

48
Ao menos sejamos
qualquer cousa de póstumo

49
Farsa ou tragédia
a vida é isto

50
o clow entrou na catedral
e ajoelhou-se

51
O menino Jesus fugiu do céu
entrou no circo e ajoelhou-se

52
Nossa Senhora sorriu

53
No dia seguinte os jornais de todo o mundo
garantiram — o poeta enlouqueceu

54
Talvez a hora cor-de-rosa
decididamente a hora cor-de-rosa

55
É preciso destruir o cor-de-rosa

56
Um dia saberás porquê

57
Entretanto és presente
e o mundo é presente em ti

58
O espectáculo cinzento escuro do mundo

59
O caminho da esperança é o heroísmo ou o sacrifício
os deuses todos esperam-te

60
Eu sei talvez isto seja absurdo
Não importa é preciso




josé manuel
«eros» — 5-6
1953



27 julho 2016

mário cesariny / o navio de espelhos



O navio de espelhos
não navega, cavalga

Seu mar é a floresta
que lhe serve de nível

Ao crepúsculo espelha
sol e lua nos flancos

Por isso o tempo gosta
de deitar-se com ele

Os armadores não amam
A sua rota clara

(Vista do movimento
dir-se-ia que pára)

Quando chega à cidade
nenhum cais o abriga

O seu porão traz nada
nada leva à partida

Vozes e ar pesado
é tudo o que transporta

E no mastro espelhado
uma espécie de porta

Seus dez mil capitães
têm o mesmo rosto

A mesma cinta escura
o mesmo grau e posto

Quando um se revolta
há dez mil insurrectos

(Como os olhos da mosca
reflectem os objectos)

E quando um deles ala
o corpo sobre os mastros
e escruta o mar do fundo

Toda a nave cavalga
(como no espaço os astros)

Do princípio do mundo
até ao fim do mundo



mário cesariny
a cidade queimada
assírio & alvim
2000




26 julho 2016

josé maria valverde / madrigal do emigrado



Terra mínima e fiel, mulher de sempre,
és a minha pátria arada e fértil, levas
minha linguagem, minha gente, meu diálogo;
em ti acampo no novo, lar errante
com o mesmo ruído de filhos e de pratos;
colonizas o aberto, sem temores,
torna-lo amigo e nosso, oh peregrina
suavemente cambiante pelos anos,
pela luz diferente dos países;
tu, minha vida na mão até ao fim.


josé maria valverde
antologia da poesia espanhola contemporânea
selecção e tradução de josé bento
assírio & alvim
1985