30 maio 2015

mário cesariny / raio de luz



Burgueses somos nós todos
    ou ainda menos.
Burgueses somos nós todos
    desde pequenos.
 
Burgueses somos nós todos
       ó literatos.
Burgueses somos nós todos
      ratos e gatos

Burgueses somos nós todos
    por nossas mãos.
Burgueses somos nós todos
    que horror irmãos.
 
Burgueses somos nós todos
    ou ainda menos.
Burgueses somos nós todos
     desde pequenos.



mário cesariny
nobilíssima visão
assírio & alvim
1991




29 maio 2015

miguel torga / paz


Caldas da Raínha, 11 de Setembro de 1939


Calado ao pé de ti, depois de tudo,
Justificado
Como o instinto mandou,
Ouço, nesta mudez,
A força que te dobrou,
Serena, dizer quem és
E quem sou.

  
miguel torga
diário I
1941



28 maio 2015

joão miguel fernandes jorge / o mar já não era para mim suficiente


2.

O mar já não era para mim suficiente.
Fazia-me falta um rio
um rio sob sombra das árvores.

É difícil a meio da música
suportar a luz do café.

Estávamos juntos
como vejo estar no palco
sob dois projectores.

Os olhos
as mãos
todo o corpo
era só o frio da noite.



joão miguel fernandes jorge
poemas escolhidos,
o roubador de água (1981)
assírio & alvim
1982




27 maio 2015

josé ángel cilleruelo / auto-retrato com olhos ignóbeis



Os olhos enevoados, em silêncio
A rua, as persianas atiradas
Como capotes sobre os ombros;
Amarga a saliva, engulo-a
Enquanto o homem desaparece
Apagado na humidade da noite.
Deixa como única lembrança
Uma gota gelada de esperma
Na comissura dos meus lábios.



josé ángel cilleruelo
trípticos espanhóis 2º
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000




26 maio 2015

jorge de sena / tentações do apocalipse



Não é de poesia que precisa o mundo.
Aliás, nunca precisou. Foi sempre
uma excrescência escandalosa que
se lhe dissesse como é infame a vida
que não vivamos para outrem nele.
E nunca, só de ser, disse a poesia
uma outra coisa, ainda quando finge
que de sobreviver se faz a vida.
O mundo precisa de morte. Não da morte
com que assassina diariamente quantos teimam
em dizer-lhe da grandeza de estar vivo.
Nem da morte que o mata pouco a pouco,
e de que todos se livram no enterro dos outros.
Mas sim da morte que o mate como um percevejo,
uma pulga, um piolho, uma barata, um rato.
Ou que a bomba venha para estas culpas,
se foi para isso que fizemos filhos.
Há que fazer voltar à massa primitiva
esta imundície. E que, na torpitude
de existir-se, ao menos possa haver
as alegrias ingénuas de todo o recomeço.
Que os sóis desabem. Que as estrelas morram.
Que tudo recomece desde quando a luz
não fora ainda separada às trevas
do espaço sem matéria. Nem havia um espírito
flanando ocioso sobre as águas quietas,
que pudesse mentir-se olhando a criação.
(O mais seguro, porém, é não recomeçar.)



jorge de sena
peregrinatio ad loca infecta
1969



25 maio 2015

octavio paz / amor e erotismo



POESIA


Aquilo que o poema nos mostra não o vemos com os nossos olhos de carne mas com os do espírito.

Os sentidos são e não são deste mundo.
Por eles, a poesia traça uma ponte entre o ver e o crer.
Por essa ponte a imaginação adquire corpo e os corpos tornam-se imagens.

A poesia erotiza a linguagem e o mundo porque ela mesma é já erotismo.

Religião e poesia vivem em contínua osmose.



EROTISMO

O erotismo é uma poética corporal e a poesia é uma erótica verbal.

O erotismo não é mera sexualidade animal: é cerimónia, representação, sexualidade transformada: metáfora.

Sexo, erotismo e amor são aspectos do mesmo fenómeno, manifestações daquilo a que chamamos vida.
O mais antigo dos três, o amplo e básico, é o sexo. O sexo é o centro e o fulcro desta geometria passional.

O erotismo é exclusivamente humano.

O erotismo é invenção, variação, incessante; o sexo é sempre o mesmo.

Dupla face do erotismo: fascinação diante da vida e diante da morte.

O erotismo é, antes de tudo e sobretudo, sede de ser outro. E o sobrenatural é radical e supremo ser-se outro.

O sentido religioso de um poema como o Cântico dos Cânticos não pode separar-se do seu sentido erótico profano:
são dois aspectos da mesma realidade. Nos místicos sufis é frequente a confluência da visão religiosa com a erótica.
A comunhão é comparada às vezes com um festim ente dois amantes no qual o vinho corre com abundância.
Ebriedade divina, êxtase erótico.


   
AMOR

A transgressão, o castigo e a redenção são elementos constitutivos da concepção ocidental do amor.

O amor é uma atracção para uma única pessoa: para um corpo e uma alma. O amor é escolha; o erotismo, aceitação.
Sem erotismo, não há amor, mas o amor atravessa o corpo desejado e busca a alma no corpo e, na alma, o corpo.
A pessoa inteira.

A ideia de encontro entre dois amantes exige dois condições contraditórias: predestinação e escolha.

O sexo é a raiz, o erotismo é o caule e o amor a flor.
E o fruto? Os frutos do amor são intangíveis. Este é um dos seus enigmas.

O amor é um nó no qual se atam, indissoluvelmente, o destino e a liberdade.

No amor aparece o mal: é uma sedução mórbida que nos atrai e nos vence.

Há muitos anos escrevi: o amor é um sacrifício sem virtude;
hoje eu diria: o amor é uma aposta, insensata, pela liberdade. Não a minha, a alheia.



octavio paz
a chama dupla: amor e erotismo
trad. josé bento
assírio & alvim
1995






24 maio 2015

álvaro de campos / grandes são os desertos



Grandes são os desertos, e tudo é deserto. 
Não são algumas toneladas de pedras ou tijolos ao alto 
Que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo. 
Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes 
Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas, 
Grandes porque de ali se vê tudo, e tudo morreu. 
Grandes são os desertos, minha alma! 
Grandes são os desertos. 


Não tirei bilhete para a vida, 
Errei a porta do sentimento, 
Não houve vontade ou ocasião que eu não perdesse. 
Hoje não me resta, em vésperas de viagem, 
Com a mala aberta esperando a arrumação adiada, 
Sentado na cadeira em companhia com as camisas que não cabem, 
Hoje não me resta (à parte o incômodo de estar assim sentado) 
Senão saber isto: 
Grandes são os desertos, e tudo é deserto. 
Grande é a vida, e não vale a pena haver vida, 


Arrumo melhor a mala com os olhos de pensar em arrumar 
Que com arrumação das mãos factícias (e creio que digo bem) 
Acendo o cigarro para adiar a viagem, 
Para adiar todas as viagens. 
Para adiar o universo inteiro. 


Volta amanhã, realidade! 
Basta por hoje, gentes! 
Adia-te, presente absoluto! 
Mais vale não ser que ser assim. 


Comprem chocolates à criança a quem sucedi por erro, 
E tirem a tabuleta porque amanhã é infinito. 


Mas tenho que arrumar mala, 
Tenho por força que arrumar a mala, 
A mala. 


Não posso levar as camisas na hipótese e a mala na razão. 
Sim, toda a vida tenho tido que arrumar a mala. 
Mas também, toda a vida, tenho ficado sentado sobre o canto das camisas empilhadas, 
A  ruminar, como um boi que não chegou a Ápis, destino. 


Tenho que arrumar a mala de ser. 
Tenho que existir a arrumar malas. 
A cinza do cigarro cai sobre a camisa de cima do monte. 
Olho para o lado, verifico que estou a dormir. 
Sei só que tenho que arrumar a mala, 
E que os desertos são grandes e tudo é deserto, 
E qualquer parábola a respeito disto, mas dessa é que já me esqueci. 


Ergo-me de repente todos os Césares.   
Vou definitivamente arrumar a mala.   
Arre, hei de arrumá-la e fechá-la;  
Hei de vê-la levar de aqui, 
Hei de existir independentemente dela. 


Grandes são os desertos e tudo é deserto, 
Salvo erro, naturalmente. 
Pobre da alma humana com oásis só no deserto ao lado! 


Mais vale arrumar a mala. 
Fim.





álvaro de campos





23 maio 2015

e e cummings / a minha miúda é alta e de olhos duros e longos


[iii]

a minha miúda é alta e de olhos duros e longos
assim de pé, com suas longas e duras mãos guardando
silêncio no seu vestido, bom para dormir
é o seu longo e duro corpo cheio de surpresas
qual branco arame electrificado, quando sorri
um duro e longo sorriso isso às vezes faz
crescer alegremente em mim ardentes comichões,
e o frágil ruído dos seus olhos facilmente aguça
a minha impaciência até à ponta ─  a minha miúda é alta
e tesa, com pernas finas tal qual uma trepadeira
que passou a vida inteira num muro de jardim,
e vai morrer. Quando carrancudos vamos para a cama
com estas pernas começa a lançar-se e a enroscar-se
à minha volta, e a beijar-me o rosto e a cabeça.


e. e. cummings
xix poemas
trad. jorge fazenda lourenço
assírio & Alvim
1998




22 maio 2015

paulo da costa domingos / averbamento



Um cordão policial, na socialização
da falência, debrua as sanefas.
Julga-se que a lógica é
salvar os ricos e esperar

que eles deixem cair,
dos seus sacos a abarrotar
de dinheiro, algum
na praça pública.


paulo da costa domingos
averbamento
& etc
2011




21 maio 2015

manuel de freitas / 5 601036 307313



Dizem que ressuscitou o rock
numa pose de vampiro. Não sei.
Pelas olheiras, sobre o cabedal
tão velho, mais parece um agarrado,
desses que costumo encontrar
no 42. Mau hálito tem - quase tanto
como a voz. Mas leva sempre
suminhos, cremes de beleza, fiambre.
Dá-me a ideia que nele até o olhar
cansado é uma mentira cosmética,
que depois usa em voz alta contra o tal
"sistema". Eu talvez gritasse melhor.

  

manuel de freitas
isilda ou a nudez dos códigos de barras
black son editores
2001




20 maio 2015

sebastião alba / no meu país



No meu país
dardejado de sol e da caca dos gaios
só há estâncias
(de veraneio) na poesia.
Nossos lábios
a um metro e sessenta e tal
do chão amarelecido
dos símbolos
abrem para fora
por dois gomos de frio.
Nossos lábios outonais, digo,
outonais doze meses.
No entanto
à flor da possível
geografia
um frémito cinde
as estações do ano.

  
sebastião alba
o ritmo do presságio
edições 70
1981




19 maio 2015

konstandinos kavafis / antes de o tempo os mudar



Entristeceram grandemente     no momento da sua separação.
Eles não a queriam;     foram as circunstâncias.
Necessidades vitais     fizeram um deles
ir embora para longe ─      Nova Iorque ou Canadá.
O seu amor não era     por certo como dantes;
tinha diminuído     a atracção gradualmente,
tinha diminuído     muito a sua atracção.
Mas separar-se,     não o queriam.
Foram as circunstâncias. ─      Ou porventura artista
foi a Sorte     separando-os agora
antes de apagar-se o sentimento deles,     antes de o Tempo os mudar;
o um para o outro     ficará para sempre como se fosse
esse belo rapaz     dos vinte e quatro anos.



konstandinos kavafis
poemas e prosas
trad. joaquim manuel magalhães e
nikos pratsinis
relógio d´água
1994



18 maio 2015

rui costa / os turistas



Estes são os turistas e vêm da Grécia
para me ver.
Não sabem que estou extinto
há um milhão de anos
e que me transplantei no vértice de uma
estrela perdida no futuro
luzindo à nossa imagem.
Eis os turistas, com suas rodas de fogo,
como eles chegam afoitos
e estacam diante das pedras
desta cidade que apodrece junto ao rio
porque não sabe distinta forma de amar.
São os turistas,
eles limpam as unhas às gaivotas
e comem pasta de atum
enquanto apertam as sandálias,
e olham para mim,
e levantam-se com o saco a tiracolo e
empunham o arpão
e perguntam se eu sou Herodes e eu
respondo-lhes que não,
nem Platão,
nem o seu vizinho acidental que
dominou a Lídia,
nem o cavalo que decidiu morrer para
ocultar a fuga do Mestre rumo a estâncias
balneares que não devem ser menosprezadas,
mas que posso carregar, sim,
no botão da máquina fotográfica,
e eu caminho os passos necessários e
diante dos séculos que o universo
não contempla
decepo-lhes a cabeça – e volto
para junto de mim
enquanto eles começam a escovar
o cabelo das gaivotas
e entrando num tubo que César
construiu caminham às cegas
para bem longe
da cidade que apodrece junto ao rio.


rui costa
mike tyson para principiantes
2012