30 março 2015

helena maltez / mulher



mulher em todas as horas
dás amor que liberta do teu peito.
és liberdade no saber querer ou dizer,
gritas às ilusões
navegas nas palavras,
és ancora em todos os mares.
mulher acreditas no verbo.
conjugas sentires,
despes-te do tempo,
sabes ser ponte de ligação
E unes as mãos em todos os espaços.
sem remos transmites melodia
onde o lógico é semente
sem garras de miragem
nos espaços conquistados por ti.
apagas os sonhos nefastos
por seres brilho constante,
virtude reflectida na vida
na razão de cada questão.
mulher és dádiva em todos os dias.



helena maltez



28 março 2015

frank o´ hara / ontem lá em baixo no canal



Dizes que tudo é muito simples e interessante
Isso torna-me muito melancólico, como se lesse um grande romance Russo
Estou tão aborrecido
É quase como ver um mau filme
Se não for, mais frequentemente, como ter uma doença aguda no rim
Valha-nos deus que não é nada do coração
Nada relacionado com gente mais interessante do que eu
Yak yak
Que pensamento divertido
Como pode alguém ser mais divertido que o próprio
Como pode alguém não ser
Podes emprestar-me o teu quarenta e cinco
Só preciso de uma bala de preferência de prata
Se não se pode ser interessante pelo menos que seja uma lenda
(mas odeio esta trampa toda)


frank o'hara
vinte e cinco poemas à hora do almoço
trad. josé alberto de oliveira
assírio & alvim
1995




27 março 2015

fernando assis pacheco / com a tua letra



Fala-se de amor para falar de muitas
coisas que entretanto nos sucedem.
Para falar do tempo, para falar do mundo
usamos o vocabulário preciso
que nos dá o amor.

Eu amo-te. Quer dizer: eu conheço melhor
as estradas que servem o meu território.
Quer dizer: eu estou mais acordado,
não me enredo nas silvas, não me enredo,
não me prendo nos cardos, não me prendo.
Quer também dizer: amar-te-ei
cada dia mais, estarei cada dia
mais acordado. Porque este amor não pára.

E para falar da morte; da enorme
definitiva irremediável morte,
do carro tombado na valeta
sacudindo uma última vez (fragilidade)
as rodas acendedoras de caminhos
- eu lembraria que o amor nos dá
uma forma difícil de coragem,
uma difícil, inteira possessão
de nós próprios, quando aveludada
a morte surge e nos reclama.

Porque eu amo-te, quer dizer, eu estou atento
às coisas regulares e irregulares do mundo.
Ou também: eu envio o amor
sob a forma de muitos olhos e ouvidos
a explorar, a conhecer o mundo.

Porque eu amo-te, isto é, eu dou cabo
da escuridão do mundo.
Porque tudo se escreve com a tua letra.


fernando assis pacheco
cuidar dos vivos
1963





26 março 2015

manuel de castro / poema para uma fada do desencanto



mão marfilínea deslizando vagarosa
num gesto perfumado e secular
sincrónico com a voz múrmura
dolente cadenciada distante
leve agitar de palmeiras
em ilhas incógnitas e felizes
  
gesto perfumado vagaroso
indica oceanos percorre continentes
aldeias furtivas de exóticos países
veios d'água subtis porém apenas
no dúbio mapa de navegação

no tempo das gravuras gentis
no tempo dos luares
dos instrumentos musicais longínquos
um leopardo atravessou a cidade
nocturna
silenciosa
onde estátuas assombradas
reflectiam a luz mortal dos astros

indecisos rumores corrosivos
transportaram para o mundo da fácil realidade
a tristeza
a alegria
e a cidade

atravessada por um ágil leopardo
possui a temperatura móbil da beleza
agora inerme
bela e fria
agora lancinante e desesperada
como recordação do que soubemos não ter sido
mas guardamos no coração

 desejo exacto
a distância as coisas e os dias
lançaram-me de mim
à rigidez impávida dos mortos
meu gesto e teu calor e teu olhar

o sol contém a noite a lua e dia
e não procuro amor que agrado seja
mas sombra no teu corpo intocável
sombra esbatimento e a lembrança
que viverei que sofrerei perfeita
do percorrer monótono do tempo
da invenção oferecida apenas a si própria
do semblante variável do sentido
das pedras que muralha se constroem
minha indiferença meu amor distância
areia e mar dormindo sob a lua


                                            (Paralelo W)



manuel de castro
o surrealismo na poesia portuguesa
organização, prefácio e notas de natália correia
frenesi
2002





25 março 2015

arthur rimbaud / meditações




Beijei a madrugada. Era Verão.
Diante do palácio, nada estremecia. A água estava parada. Os maciços de sombra não deixavam os caminhos dos bosques. Caminhei, acordando os hálitos tépidos e vivos; as pedras preciosas olharam, como asas levantaram-se no maior dos silêncios.



arthur rimbaud
meditações
tradução de madalena silva
alma azul
2009




24 março 2015

como se fosse na mesa dum café nos anos 70


Anos 70, muito jovem ainda. Partilhávamos os truques da resistência à ditadura fascista, espreitávamos o mundo pelas brechas do grande muro do fado, de Fátima e do futebol. Fazíamos o que podíamos para ler as grandes obras da literatura universal e conhecer o mundo oculto da ideologia. Comíamos croissants inebriados pelo cheiro da tinta no stencil denunciador dos crimes do fascismo. O pão quente era de madrugada à porta duma padaria de bairro. Líamos Herberto Helder, íamos ao Cascais Jazz, ouvíamos a grande música e tínhamos a certeza firme de que este país um dia seria melhor; limpávamo-nos do bafio das sacristias e livrávamo-nos da culpa da miséria. Nesse tempo as livrarias eram sítios onde se vendiam livros e os livros eram mesmo livros, os escritores mesmo escritores, os poetas mesmo poetas. E, pasme-se, os jornais eram mesmos  jornais  e os jornalistas eram mesmo jornalistas. Nesse tempo, Cultura significava instrução, saber e estudo.

Lembro-me da sensação de modernidade, de ar puro, e do modo tão novo de querermos ser portugueses assim, sentirmo-nos assim portugueses dessa maneira tão livre e tão criativa que se entranhava em nós depois de lermos “Os passos em volta”.  

Hoje, senti-me privilegiado por ter sido contemporâneo dum ser tão imenso, de ter podido conhecer a sua obra  no tempo exacto da sua criação e de poder testemunhar que, por causa dela, a minha geração, e muitas outras, trouxe a este país homens e mulheres muito melhores, muito mais justos e muito mais livres, numa maré libertadora que inundará com certeza a nossa eternidade como povo.

Sim, a grande revolução do século XX português foi a Poesia de Herberto Helder.     



gil t. sousa 



herberto helder / a verdade é que era uma criança




A verdade é que era uma criança, e não se aguentou
quando o médico disse: aguente-se.
E as ruas são tão tristes. Precisam de mais luz.
Mas nesta, por exemplo, já puseram mais luz,
e mesmo assim é triste.
É até mais triste que as outras. Estou tão triste.

Vamos para férias, para o pequeno paraíso. 

Contaram-me que ele tinha uma alegria tão grande
que não podia aguentar um copo na mão: quebrava-o
com a força dos dedos, com a grande força da sua alegria.


Era uma criatura excepcional.



herberto helder / (23-11-1930 /23-03-2015)

          



          Demão

  
          Retorna à escuridão
          o rosto: entre centelhas, ficasse tão maduro quando
          de te tragar
          estremecesses, que o animassem
          os elementos: um interior: um limite do mundo,
          e se afinasse como um galho de marfim
          cheio de lume, que fosse um instrumento
          de crescer na terra: um golpe
          nela, abraço
          com a mão coroada,
          até à bolsa com a lua dentro,
          no ovo está o astro, se pelos dedos
          nesse rosto
          te plantasses todo na riqueza do sono,
          soldado a nervos: osso, feixe de fibras
          tímpanos, e as faíscas saltando pelas unhas
          as deixassem ígneas,
          e a veia arpoasse igneamente a massa
          muscular, ou
          a aorta sorvesse a matéria
          tremenda
          ao seu abismo, e te encharcasse até ás pálpebras
          essa púrpura por válvulas
          contra os dentes. nos fundamentos há
          vezes
          em que és ligeiro ao movimento da água,
          ou nas paredes onde os canos se cruzam
          como um corpo onde se cruzam órgãos
          tubos, um alento das coisas: dos tecidos
          do mundo, e por exemplo se a louça e o inox
          brilhados de dentro: à mesa
          e a madeira respira mais rápida
          e uma grande massa orgânica magnifica
          cercada de membros
          como um homem
          essas  pinças na cabeça entre as meninges
          extraindo uma estrela,
          os canais luminosos da cabeça
          iluminam-te todo, iluminas-te
          quando se arranca a língua e há um soluço da fala,
          levantas-te soberbamente
          ao rosto, como a vara
          do vedor fica acesa
          pelas ramas de água, como que salga
          o aparelho do corpo
          e o torna substância
          alta giratória ou se fulgura a trama
          cristalográfica
          terrifica da musica se levanta
          entre os dedos e cordas
          fundido de sangue e ar no escuro:
          música
          o medo do poder, esta ferida
          tão de um nó de músculos estrangulando
          uma leveza
          o barro violento, a manobra
          das vozes. Fechas os olhos e as
          coisas não te vêem,
          as mãos brilham-te abertas.
  


          herberto helder





23 março 2015

valter hugo mãe / a água recorta as




a água recorta as
cabeças de forma estranha, sobre
o veludo da morte
o atrito do corpo é
seiva, dolente barca, onde
o meu dia passa


valter hugo mãe
três minutos antes de a maré encher
quasi
2000



22 março 2015

rosa alice branco / o aroma da língua



Subimos a rua sob a floresta de plátanos,
o apito do comboio lembra o aroma das árvores
que julgamos sentir
como a tua mão lembra as minhas pernas
e assim todas as coisas acariciadas se parecem
mas não sei onde se passa tudo isto
que se passa connosco.
O próprio sentido de plátano perde-se em mim
pois és tu que soletras a palavra «árvore»
enquanto a rua sobe nos teus passos.

Que faço com as palavras «aqui» e «aí»
por onde vais enquanto a rua caminha?
Por que espaço sem espaço
em que língua impossível
chegamos à palavra «nós»?
Por que magia nos cruzamos no tempo
arrastados por um «aqui» que não pára de dançar,
que não pára. Como?



rosa alice branco
poesia do mundo/2
edições afrontamento
1998




21 março 2015

fátima maldonado / fundo de desemprego


Uma borboleta, um colar de coral
o rapaz não quer saber de competência.
Está por agora aqui
amanhã pode sentar-se noutro lado
não tem opinião sobre coisa nenhuma
e nada nem ninguém o desconvocam
do seu concílio com a indiferença.
Veio de Colónia e na volta é semelhante
suprimiu hamburguers
 com pescadores ao lado.
O resvale da tarde sobre rochas
não lhe prega na alma
precipícios.
Um ocaso onde há melancolia
desperta-lhe a contra-gosto
recessões
e perde tempo a descobrir ao sol
a loura rapariga inanimada
enquanto apalpa
na bolsinha a erva.
No outro dia é com resignação
que se saúdam
e a tarde nos contunde
mineral.


fátima maldonado
sião
organização e notas de
al berto, paulo da costa domingos e rui baião
lisboa
1987




20 março 2015

maria gabriela llansol / um falcão no punho (fragmento)



Levantei-me antes da luz (cedo),
envolvida pela pergunta   como permanecer no conjunto das pessoas do meu sangue. Não dou importância que já vivi com outras pessoas, na mesma casa, que já convivi familiarmente com alguém. São já nove horas da manhã, mas ainda sinto os efeitos da madrugada. Afastei-me do movimento do Augusto, da minha mãe, da minha irmã, que se levantam e, tomando café e comendo fatias com manteiga na mesa da cozinha, procuro perceber os meus sentimentos e ideias, determinar o seu lugar escondido na invocação do labirinto. O canto do galo, a urina de Jade no muro, os gatos de idades diferentes à volta do prato, e o chacal que me faz andar à roda, no interior de mim, e uiva à minha serenidade. Não me reconheço apenas uma mulher, mas um anel, com algumas feridas. Fundada na luz que se eleva na cozinha, e que desce, condensando-se, da bandeira multicor da porta da entrada, junto-me a Spinoza, para subjugar o meu chacal, com a sua geometria; mais uma paixão, mais um momento de ódio, mais uma hesitação, mais saber que se transforma em fio subtil de poder, mais um instante de medo, eis o dia. É o sinal de que a madrugada está a passar, decompondo-se nos seus elementos, e vestígios. Por mais sombrios que sejam os dias, a companhia de Spinoza não me deixa nunca ficar muito tempo sem a terra, o ar, e o fogo.
Arrastador.
Alvor.
Insuflador.

O alvor que se anuncia na parte superior da porta com as outras palavras pertence à minha génese, e impeliu-me para fora do país de uma única língua; é preciso dar várias inteligências à língua reunida num todo, que só tem uma corola.

O meu país não é a minha língua, mas levá-la-ei para aquele que encontrar.


maria gabriela llansol
um falcão no punho
rolim
1985




19 março 2015

carlos de oliveira / dunas



Contar os grãos de areia destas dunas é o meu ofício actual. Nunca julguei que fossem tão parecidos, na pequenez imponderável, na cintilação de sal e oiro que me desgasta os olhos. O inventor de jogos meu amigo veio encontrar-me quase cego. Entre a névoa radiosa da praia mal o conheci. Falou com a exactidão de sempre:

«O que lhe falta é um microscópio. Arranje-o depressa, transforme os grãos imperceptíveis em grandes massas orográficas, em astros, e instale-se num deles. Analise os vales, as montanhas, aproveite a energia desse fulgor de vidro esmigalhado para enviar à Terra dados científicos seguros. Escolha depois uma sombra confortável e espere que os astronautas o acordem».



carlos de oliveira
sião
organização e notas de
al berto, paulo da costa domingos e rui baião
lisboa
1987