05 fevereiro 2015

carlos drummond de andrade / procura da poesia



Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.

Tua gota de bile, tua careta de gozo ou dor no escuro
são indiferentes.
Não me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem de equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.
   
Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.

O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.

Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.   
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.
   
Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação
Que se dissipou, não era poesia
Que se partiu, cristal não era.

Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.
   
Chega mais perto e contempla as palavras
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível que lhe deres
Trouxeste a chave?

Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

  

carlso drummond de andrade





04 fevereiro 2015

hermann hesse / o lobo das estepes



Eu, lobo das estepes, corro, corro,
a neve cobre o mundo,
da bétula levanta voo o corvo,
mas nunca aparece uma lebre, nunca aparece um cervo.
E como eu amo os cervos!
Se acaso encontrasse algum,
prendia-o com garras e dentes:
é a coisa mais bela em que penso.
Com os sensíveis seria também sensível,
devorava-os todos de extremo a extremo,
bebia-lhes até ao fundo o sangue púrpura e espesso,
e solitariamente uivava pela noite dentro.
Contentava-me com uma lebre.
É tão doce à noite o sabor da sua carne quente.
Porventura foi-me negado tudo quanto possa, um pouco,
alegrar a vida, um pouco apenas?
A minha companheira, há muito que a não tenho,
o pêlo da minha cauda começa a ficar cor de cinza,
e só quando há bastante luz é que vejo.
Agora corro e sonho com cervos,
ouço o vento soprar nas grandes noites de inverno,
e a minha alma dolorosa, entrego-a eu ao demónio.



hermann hesse
doze nós numa corda
herberto helder
assírio & alvim
1997




03 fevereiro 2015

ana paula inácio / ó césar


não sou uma mulher moderna
não me ligo à net
gosto de compras ao vivo
cujas listas faço em cadernos de argolas
que depois esqueço
e só me lembro de elixir para aclarar a voz,
tenho tantas embalagens
como Warhol de Tomato Soap
ou de detergente Brillo,
para que ao chegares a casa
te envolva, te abrace e te queira
mas nem só de voz vive o homem
dizes tu,
e então a minha saúda-te
como a daqueles que vão morrer


ana paula inácio
2010-2011
averno
2011




02 fevereiro 2015

eugénio de andrade / há dias em que julgamos



Há dias em que julgamos
que todo o lixo do mundo
nos cai em cima
depois ao chegarmos à varanda avistamos
as crianças correndo no molhe
enquanto cantam
não lhes sei o nome
uma ou outra parece-se comigo
quero eu dizer :
com o que fui
quando cheguei a ser luminosa
presença da graça
ou da alegria
um sorriso abre-se então
num verão antigo
e dura
dura ainda.

  

eugénio de andrade





01 fevereiro 2015

mário sá-carneiro / cinco horas



Minha mesa no Café,
Quero-lhe tanto... A garrida
Toda de pedra brunida
Que linda e que fresca é!

Um sifão verde no meio
E, ao seu lado, a fosforeira
Diante ao meu copo cheio
Duma bebida ligeira.

(Eu bani sempre os licores
Que acho pouco ornamentais:
Os xaropes têm cores
Mais vivas e mais brutais).

Sobre ela posso escrever
Os meus versos prateados,
Com estranheza dos criados
Que me olham sem perceber...

Sobre ela descanso os braços
Numa atitude alheada,
Buscando pelo ar os traços
Da minha vida passada.

Ou acendo cigarros,
- Pois há um ano que fumo -
Imaginário presumo
Os meus enredos bizarros.

(E se acaso em minha frente
Uma linda mulher brilha,
O fumo da cigarrilha
Vai beijá-la, claramente...)

Um novo freguês que entra
É novo actor no tablado,
Que o meu olhar fatigado
Nele outro enredo concentra.

E o carmim daquela boca
Que ao fundo descubro, triste,
Na minha ideia persiste
E nunca mais se desloca.

Cinge tais futilidades
A minha recordação,
E destes vislumbres são
As minhas maiores saudades...

(Que história de Oiro tão bela
Na minha vida abortou:
Eu fui herói de novela
Que autor nenhum empregou...).

Nos cafés espero a vida
Que nunca vem ter comigo:
- Não me faz nenhum castigo,
Que o tempo passe em corrida.

Passar tempo é o meu fito,
Ideal que só me resta:
P'ra mim não há melhor festa,
Nem mais nada acho bonito.

- Cafés da minha preguiça,
Sois hoje - que galardão! -
Todo o meu campo de acção
E toda a minha cobiça.



mário sá-carneiro





31 janeiro 2015

sun tzu / o conflito



O Mestre disse:

Na Guerra,
           O general
           Recebe ordens
           Do seu soberano,
           Reúne as tropas,
           E forma um exército.
           Monta o acampamento
           Do lado oposto ao do inimigo.
           A verdadeira dificuldade
           Começa com
           O conflito em si mesmo.

A dificuldade do conflito
           Reside em tornar
           O que é sinuoso
           Recto
           E em transformar
           O que é adverso
           Em vantajoso.

Escolhe um caminho desviado,
           E seduz o inimigo com a ilusão
           Da vantagem;

Segue no seu encalço,
           Mas chega sempre antes dele;
           Isso é dominar
           O recto
           E o sinuoso.

O conflito pode trazer
           Ganhos;
           Pode trazer
           Perigo.

Envia todas as suas tropas
           Para combate,
           Tentando obter alguma vantagem,
           E ainda assim podes
           Falhar.

Abandona o acampamento e
           Entra em conflito
           Com vista a obter alguma vantagem,
           E ainda assim podes apenas perder
           O teu equipamento.

Ordena aos teus homens que
           Carreguem a sua armadura
           Em marcha forçada,
           Dia e noite,
           Sem parar,
           Marcha vinte quilómetros
           A velocidade redobrada
           Para obter alguma vantagem,
           E irás perder
           Todos os teus comandantes.
           Os homens mais vigorosos
           Estarão na vanguarda;
           Os mais frágeis,
           Na retaguarda.
           Um em cada dez
           Chegará ao destino.

Marcha dez quilómetros
           Para obter alguma vantagem,
           E o líder
           Da vanguarda
           Irá cair;
           Só metade dos homens
           Chegará ao destino.

Marcha cinco quilómetros
           Para obter alguma vantagem,
           E dois em cada três homens
           Chegará ao destino.

Sem o seu equipamento,
           Um exército está perdido;
           Sem provisões,
           Um exército está perdido;
           Sem armazenamento,
           Um exército está perdido.

Sem conhecer os planos
           Dos senhores feudais,
           Não poderás
           Formar alianças.

Sem conhecer a posição
           Das montanhas e florestas
           Das escarpas e precipícios,
           Dos pântanos e charcos,
           Não podes
           Caminhar

Sem recorrer a guias locais,
           Não podes
           Tirar vantagem
           Das características do terreno.

A guerra
           Baseia-se
           No logro;
           Os movimentos determinam-se
           Pela vantagem obtida;
           Divisão e unidade
           São os seus elementos
           De Mudança.

Corre como o vento;
           Sê imponente como uma floresta;
Devasta como o fogo;
           Fica quieto como uma montanha.
Sê impenetrável como a noite;
           Sê ágil como o trovão ou como o relâmpago.

Pilha os campos,
           E divide o saque;
Alarga o território,
           E distribui os ganhos.
Pondera  a situação cuidadosamente
           Antes de dar qualquer passo.

A vitória pertence àquele
           Que domina
           A arte do
           Recto
           E do sinuoso.

Esta é
           A Arte do Conflito.





sun tzu
a arte da guerra
trad. ricardo silva
quasi
2008





30 janeiro 2015

e e cummings / supõe



[ii]

supõe
a Vida um velho carregando flores à cabeça.

a jovem morte sentar-se num café
sorrindo, uma moeda segura entre
o polegar e o indicador

(eu digo “comprará flores” para ti
e “a Morte é jovem
a vida usa calças de veludo
a vida tropeça, a vida tem barbas” eu

digo para ti que estás emudecido. - “Vês
a Vida? está ali e aqui,
ou aquilo, ou isto
ou nada ou um velho 3 terços
adormecido, à cabeça
flores, sempre a gritar
para ninguém alguma coisa sobre les
roses les bluets

          sim,
                 comprará?
Les belles bottes - oh escuta
, pás chéres”)

e o meu amor lentamente respondeu Eu acho que sim. Mas
Eu acho que vejo alguém mais

há uma senhora, cujo nome é Emseguida
está sentada junto da jovem morte, é esguia;
gosta de flores.


e. e. cummings
xix poemas
trad. jorge fazenda lourenço
assírio & alvim
1998





29 janeiro 2015

jorge de sena / os paraísos artificiais



Na minha terra, não há terra, há ruas;
mesmo as colinas são de prédios altos
com renda muito mais alta.

Na minha terra, não há árvores nem flores.
As flores, tão escassas, dos jardins mudam ao mês,
e a Câmara tem máquinas especialíssimas para desenraizar as árvores.

Os cânticos das aves - não há cânticos,
mas só canários de 3º andar e papagaios de 5º.
E a música do vento é frio nos pardieiros.

Na minha terra, porém, não há pardieiros,
que são todos na Pérsia ou na China,
ou em países inefáveis.

A minha terra não é inefável.
A vida da minha terra é que é inefável.
Inefável é o que não pode ser dito.

  

jorge de sena 




28 janeiro 2015

katerina angheláki-rooke / a transcrição do pesadelo



Para que o pesadelo se torne poema
é preciso que o silêncio não tenha rangidos
de alma, de coração ou doutros órgãos
da química inorgânica da existência.
No silêncio permite-se que habitem cores
mas estão proibidos os contrastes gritantes:
negro com carmesim
ou com o tão cantado azul dos olhos.
Talvez um pouco de cor de cobre
terroso de folhas murchas
ou branco com manchas de café na nuca dos cães.
Logo que o pesadelo tenha deitado todo o corpo que tem a deitar
é sujeito a uma série de operações.
Com grande minúcia há que lhe extrair
a suspeita lógica
e depois sem anestesiante
transplantar-lhe algo
da bondade inata dos humanos.
A intervenção mais difícil
consiste em amputá-lo do medo.
Isso consegue-se mergulhando
sem cessar o mau sonho
na santidade da natureza.
E é então que o poema floresce;
folhinha a folhinha
flor a flor
débil a princípio, trémulo,
ergue-se da negra terra que o alimentou
e ousa.

Ousa sonhar
o antídoto da aridez
a palavra.



katerina angheláki-rooke
(grécia, n. 1939)
(de "belo deserto o corpo")
tradução de manuel resende





27 janeiro 2015

abelardo linares / marinha



Alba. Homens do mar
deixavam nas areias
algas e conchas.
E perdiam-se depois,
vacilantes e alegres,
pelas ruas do porto.
Nos ombros os cestos
húmidos da pesca
pareciam oferendas
a um deus desconhecido
e sorridente.

  

abelardo linares
trípticos espanhóis 1º
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1998





26 janeiro 2015

jorge de sousa braga / portugal



    Portugal
    Eu tenho vinte e dois anos e tu às vezes fazes-me sentir como se tivesse
    oitocentos
    Que culpa tive eu que D. Sebastião fosse combater os infiéis ao norte de
    África
    só porque não podia combater a doença que lhe atacava os órgãos genitais
    e nunca mais voltasse
    Quase chego a pensar que é tudo uma mentira
    que o Infante D. Henrique foi uma invenção do Walt Disney
    e o Nuno Álvares Pereira uma reles imitação do Príncipe Valente
    Portugal
    Não imaginas o tesão que sinto quando ouço o hino nacional
    (que os meus egrégios avós me perdoem)
    Ontem estive a jogar póker com o velho do Restelo
    Anda na consulta externa do Júlio de Matos
    Deram-lhe uns electro-choques e está a recuperar
    aparte o facto de agora me tentar convencer que nos espera um futuro de
    rosas
    Portugal
    Um dia fechei-me no Mosteiro dos Jerónimos a ver se contraía a febre do
    Império
    mas a única coisa que consegui apanhar foi um resfriado
    Virei a Torre do Tombo do avesso sem lograr uma pérola que fosse
    das rosas que Gil Eanes trouxe do Bojador
    Portugal
    Vou contar-te uma coisa que nunca contei a ninguém
    Sabes
    Estou loucamente apaixonado por ti
    Pergunto a mim mesmo
    Como me pude apaixonar por um velho decrépito e idiota como tu
    mas que tem o coração doce ainda mais doce que os pastéis de Tentugal
    e o corpo cheio de pontos negros para poder espremer à minha vontade
    Portugal estás a ouvir-me?
    Eu nasci em mil novecentos e cinquenta e sete Salazar estava no poder nada
    de ressentimentos
    um dia bebi vinagre nada de ressentimentos
    Portugal
    Sabes de que cor são os meus olhos?
    São castanhos como os da minha mãe
    Portugal
    gostava de te beijar muito apaixonadamente
    na boca



    jorge de sousa braga






25 janeiro 2015

federico garcia lorca / canção cantada


No gris,
o pássaro Griffón
vestia-se de gris.
E a menina KiKiriKi
perdia a sua alvura
e forma ali.

Para entrar no gris
pintei-me de gris.
E como reluzia
no gris!

  

federico garcia lorca




24 janeiro 2015

konstandinos kavafis / as janelas



Nestas salas escuras, onde vou passando
dias pesados, para cá e para lá ando
à descoberta das janelas ─ Uma janela
quando abrir será uma consolação. ─
Mas as janelas não se descobrem, ou não hei-de conseguir
descobri-las. E é melhor talvez não as descobrir.
Talvez a luz seja uma nova subjugação.
Quem sabe que novas coisas nos mostrará ela.



konstandinos kavafis
poemas e prosas
trad. joaquim manuel magalhães e
nikos pratsinis
relógio d´água
1994